terça-feira, 26 de agosto de 2008

Análise sobre o ativismo judicial (ou jurisdicional) do Supremo Tribunal Federal

O Professor Farlei Martins envia-nos uma sintese dos textos publicados sobre o ativismo judicial (ou jurisdicional no sentido este de alargamento dos poderes do STF) pela revista Veja na sua edição de 27 de agosto de 2008.


CONTRA O VÁCUO
Sessão plenária do STF: com desembaraço, os ministros preenchem omissões
da legislação e agem no lugar do Congresso

Os líderes partidários da Câmara dos Deputados gastaram uma boa fatia de sua
reunião semanal, na terça-feira passada, tentando encontrar uma forma de
escapar de um vexame anunciado. Sabiam que, no dia seguinte, os ministros do
Supremo Tribunal Federal (STF) decidiriam um caso sobre nepotismo (a prática
odiosa de aboletar-se num cargo administrativo e dali distribuir sinecuras à
parentalha), provavelmente o baniriam da vida pública brasileira e, com isso,
deixariam desmoralizado o Congresso, que nunca se mobilizou para votar uma lei
contra esse mal. O acordo não foi possível, sobretudo pela resistência do PTB,
do DEM e de parte do PMDB, e o mundo seguiu seu curso. Na quinta-feira, o STF
editou uma "súmula vinculante" (decisão que não pode ser desrespeitada pelas
instâncias inferiores da Justiça) e proibiu o nepotismo nos três poderes.
Fechou também a porta ao "nepotismo cruzado", em que um político contrata
parente de outro, para disfarçar a malandragem.
Depois disso, restou aos parlamentares a reação desenxabida exemplificada pelo
presidente do Senado, Garibaldi Alves Filho, que declarou: "Vou ter de
dispensar um parente que trabalha no gabinete. Não esperava que a decisão a
ser adotada tivesse a amplitude que teve. Agora é cumprir". O julgamento do
Supremo, por sua vez, foi saudado como histórico, por tocar numa mazela que
historiadores e antropólogos costumam descrever como um dos pecados de origem
da sociedade brasileira. Ainda pôs em relevo, novamente, o papel de
protagonista que o tribunal assumiu e que não vai abandonar, por três motivos:
porque a paralisia do Congresso não terminará de súbito; porque, ao estilo da
Suprema Corte americana, tem em sua pauta de curto prazo temas polêmicos e de
influência direta no cotidiano dos brasileiros, como o debate sobre o
casamento homossexual; e porque, dentro da corte, consolida-se rapidamente uma
cultura de "ativismo judiciário".
Um sistema político-jurídico é como a natureza, na frase de Nicolau Copérnico:
abomina o vácuo. Se um dos três poderes não exerce o seu papel, os outros
ocupam o espaço (veja o artigo de Reinaldo Azevedo). O Congresso brasileiro é,
hoje, o poder apequenado. Sua pauta se vê trancada, em média, três semanas por
mês, pela avalanche de medidas provisórias editadas pelo governo Lula e que
precisam ser avaliadas com prioridade. Parlamentares vivem falando em limitar
a edição de MPs, mas o fato é que a única restrição a essa prerrogativa do
Executivo saiu justamente do Supremo, que vetou o uso do instrumento em
matéria orçamentária. À tibieza para enfrentar essa batalha que lhe diz
respeito diretamente, soma-se a omissão de longa data do Congresso em suprir
lacunas da legislação. Passados vinte anos, o Congresso ainda não regulamentou
54 artigos da Constituição de 1988. Diz o cientista político Octaciano
Nogueira, da Universidade de Brasília: "Em qualquer país, se o Congresso não
regulamenta logo uma nova Constituição, exime-se de sua principal tarefa". A
legislação infraconstitucional também está cheia de buracos e, diante deles, o
STF pode se ver na posição de legislar. Os ministros se mostram dispostos a
realizar essa tarefa, e acreditam ter uma boa razão para isso. "Não é por
razões ideológicas ou pressão popular. É porque a Constituição exige. Nós
estamos traduzindo, até tardiamente, o espírito da Carta de 88, que deu à
corte poderes mais amplos", diz o presidente do STF, Gilmar Mendes.
Tasso Marcelo/AE

SEM ALGEMAS
Neste mês, o STF regulou o uso do acessório. Em audiência recente, o
traficante Beira-Mar teve as mãos atadas apenas no caminho para o
tribunal
A mudança de cultura no STF fica clara quando se relembra o julgamento sobre o
direito de greve no serviço público realizado em outubro de 2007. Onze anos
antes, em 1996, um processo sobre o mesmo tema havia chegado ao tribunal.
Naquela ocasião, os ministros decidiram que os servidores públicos não
poderiam exercer a greve antes da edição de uma lei regulamentando o assunto.
Ou seja, a sentença jogou a bola para o Congresso. No ano passado, observou-se
uma guinada dramática. Em vez de apenas conclamar o Congresso a agir, o STF
decidiu que o sistema jurídico não podia mais ficar incompleto e fez com que
se aplicasse a lei de greve da iniciativa privada sobre os casos do serviço
público.
Uma outra ferramenta, sobre a qual até agora pouco se chamou atenção, vem
sendo utilizada pelos ministros. É a "interpretação conforme a Constituição".
Aqui, não se trata de cobrir uma lacuna legal, mas de mudar o sentido de uma
norma infraconstitucional já existente por meio de uma sentença. Essa
estratégia é largamente empregada em países como Itália e Alemanha, e os
ministros do STF estão se apoderando dessa novidade técnica. Ela apareceu com
destaque, em maio, no julgamento sobre o uso científico das células-tronco. Em
vez de declarar a lei sobre o assunto inconstitucional, cinco ministros com
voto vencido – Carlos Direito, Ricardo Lewandowski, Eros Grau, Cezar Peluso e
Gilmar Mendes – disseram que ela poderia ser válida, desde que recebesse
acréscimos sugeridos por eles e assim ficasse "conforme a Constituição". Os
acréscimos iam da criação de um conselho federal para cuidar de reprodução
humana à determinação do número de óvulos que podem ser fertilizados numa
clínica. A sentença do ministro Gilmar Mendes, em particular, foi um manifesto
em favor desse tipo de sentença "aditiva", por meio da qual o Supremo "atua
como verdadeiro legislador positivo". Em breve, quando a corte decidir sobre a
possibilidade de aborto legal no caso de fetos com cérebro malformado, o mesmo
tipo de voto deve aparecer. Dentro do próprio STF, há quem veja com ressalvas
o uso desse tipo de interpretação, pelo risco (real) de se transformar num
mecanismo sutil para modificar boas normas com base apenas em supostas
"ambigüidades" de linguagem. Marco Aurélio Mello levantou uma objeção desse
tipo no caso das células-tronco.


À MANEIRA AMERICANA
Nos EUA, a Suprema Corte julga casos que repercutem no cotidiano. Agora,
a pauta do STF está repleta de temas desse tipo
Até recentemente, o STF era uma corte dominada por juristas conservadores,
indicados para o cargo antes da redemocratização. Estavam acostumados a outra
Constituição e a uma tradição jurídica que pedia um Supremo discreto. Hoje,
todos os ministros do STF foram indicados já no período democrático e parecem
ter descoberto a latitude que a Constituição de 88 lhes oferece: mais
liberdade para interpretar as leis – e para agir nos vazios jurídicos. A
muitos não desagrada, tampouco, a projeção pública que julgamentos ferventes
como o dos políticos mensaleiros oferecem. Alguns parlamentares, contrariados
com o ativismo do Supremo, concordam que, ao criar mecanismos como a ação
direta de inconstitucionalidade e o mandado de injunção, a Carta de 88 deu
força ao STF. Assim, para frear o tribunal, imaginam mudanças constitucionais.
O líder do PT na Câmara, Maurício Rands (PE), pensa em apresentar uma emenda
que defina claramente a área de atuação do Judiciário e o impeça de atuar em
matérias que estejam pendentes no Congresso. Márcio França (PSB-SP) propõe a
eleição direta de ministros de tribunais superiores. "Não acho errado que
ministros do Supremo interpretem as leis e acabem legislando, desde que tenham
respaldo popular para isso", diz.
Contudo, é improvável que a corte retorne a um figurino anódino. Para Marcos
Paulo Veríssimo, professor da faculdade de direito da Fundação Getulio Vargas,
que está concluindo neste momento um trabalho sobre o "ativismo judicial" do
STF, isso não é ruim. Diz ele: "Não conheço nenhuma ditadura em que o
Judiciário tenha sido fundamental. O papel político da Justiça e o embate
entre os poderes são fenômenos das democracias". Uma certa dose de ativismo
judicial talvez seja impossível evitar num sistema constitucional como o
brasileiro. O essencial é que ele seja informado pela razão jurídica, e não
pela ideologia ou pelas crenças particulares de cada ministro. Isso, a
sociedade precisa vigiar.

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