segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Adensando o conhecimento sobre os integrantes do STF

A Folha de São Paulo de 25 de agosto de 2008 publica essa entrevista do Ministro Joaquim Barbosa. A entrevista é importante porque há uma cobrança a respeito do entendimento do papel do STF. Este só poderá avançar se tivermos, também, fundamentados num perspectiva comportamental de seus integrantes.


ENTREVISTA DA 2ª
JOAQUIM BARBOSA
Enganou-se quem esperava um negro submisso no STF
Ministro nega que seja "encrenqueiro", mas diz que não se cala quando vê algo errad
"ENGANARAM-SE os que pensavam que o Supremo Tribunal Federal iria ter um negro
submisso, subserviente", diz o ministro Joaquim Barbosa, ao comentar os
desentendimentos com alguns de seus pares -como Marco Aurélio, Gilmar Mendes e Eros
Grau. Ele atribui os atritos à defesa que faz de "princípios caros à sociedade",
como o combate à corrupção. Barbosa entrou em choque com ministros tidos como
"liberais" em julgamentos da Operação Anaconda. Ficou conhecido popularmente como
relator do inquérito do mensalão e recentemente discutiu com Eros Grau sobre a
liberação de um preso da Operação Satiagraha.

Joaquim Barbosa nega que seja "encrenqueiro" e diz não se sentir isolado no
tribunal, onde "não costuma silenciar quando presencia algo errado". Ele critica,
por exemplo, os advogados de "certas elites" que monopolizam a agenda do Judiciário
-inclusive no Supremo-, marcando audiências para pedir que seus processos sejam
julgados com prioridade, na frente de outros que entraram na Corte há mais tempo.
Barbosa recebeu a Folha quarta-feira, em seu gabinete, onde concedeu entrevista em
pé, durante cerca de uma hora. Ele sofre de dores crônicas na coluna, incômodo que
se agrava quando fica sentado nas cinco sessões semanais na Corte.

FOLHA - A mídia o aponta como o ministro que mais se desentende com os colegas. O
sr. é uma pessoa de temperamento difícil?
JOAQUIM BARBOSA - Engano pensar que sou uma pessoa que tem dificuldade de
relacionamento, uma pessoa difícil. Eu sou uma pessoa altiva, independente e que diz
tudo que quer. Se enganaram os que pensavam que, com a minha chegada ao Supremo
Tribunal Federal, a Corte iria ter um negro submisso. Isso eu não sou e nunca fui
desde a mais tenra idade. E tenho certeza de que é isso que desagrada a tanta gente.
No Brasil, o que as pessoas esperam de um negro é exatamente esse comportamento
subserviente, submisso. Isso eu combato com todas as armas.
FOLHA - Gilmar Mendes chegou a dizer que o sr. "tem complexo". A ministra Carmen
Lúcia insinuou que haveria um "salto social", com sua evidência no caso do mensalão.
Como o sr. recebe esses comentários?
BARBOSA - A imprensa se esquece de dizer quais foram as razões pelas quais eu tive
certos desentendimentos. Quase sempre foram desentendimentos nos quais eu estava
defendendo princípios caros à sociedade brasileira, como o combate à corrupção no
próprio Poder Judiciário. Sem aquela briga com o ministro Marco Aurélio, o caso
Anaconda não teria condenação e cumprimento de penas pelos réus.
FOLHA - No julgamento de uma ação da Anaconda houve o comentário de que o sr. teria
"complexo"...
BARBOSA - Achei apropriado naquele momento dar uma resposta dura. Falaram que eu sou
encrenqueiro. Eu tenho amigos espalhados pelo Brasil e pelo mundo inteiro. São
pessoas decentes. E eu não costumo silenciar quando presencio algo de errado, ainda
que no âmbito do tribunal ao qual eu pertenço.
FOLHA - O sr. se sente isolado no Supremo?
BARBOSA - Nem um pouco. Eu tenho meu leque de amizades, que são pessoas que têm
afinidades comigo, com aquilo que eu gosto, que não necessariamente coincide com o
gosto da maioria do tribunal. Mas tenho boa relação com ministros.
FOLHA - Uma crítica recorrente é que o Supremo favorece as elites. Como o sr. vê
essa observação?
BARBOSA - Eu ainda não amadureci a minha reflexão sobre isso. Mas há uma coisa que
me perturba, que me deixa desconfortável aqui no tribunal e na Justiça brasileira
como um todo. É o fato de que certas elites, certas categorias monopolizam, sim, a
agenda dos tribunais. Isso não quer dizer que eu esteja de acordo com a frase de que
o tribunal favorece as elites. Monopolizam a agenda.
FOLHA - Como isso ocorre?
BARBOSA - Nós temos na Justiça brasileira o sistema de preferência, tido como a
coisa mais natural do mundo. O advogado pede audiência, chega aqui e pede uma
preferência para julgar o caso dele. O que é essa preferência? Na maioria dos casos,
é passar o caso dele na frente de outros que deram entrada no tribunal há mais
tempo. Se o juiz não estiver atento a isso, só julgará casos de interesse de certas
elites, sim. Quem é recebido nos tribunais pelos juízes são os representantes das
classes mais bem situadas. Eu não posso avalizar inteiramente essa frase [de que o
Supremo favorece as elites], mas acho que um país em que a Justiça está
completamente abarrotada tem que ter atenção muito grande para esse perigo de que a
agenda dos tribunais seja monopolizada por certos segmentos sociais. Basta prestar a
atenção, durante cada ano, no tempo que o STF gasta julgando questões de interesse
corporativo. É enorme.
FOLHA - O sr. costuma receber advogados em seu gabinete?
BARBOSA - Recebo, mas nenhum advogado, por mais importante que ele seja, monopoliza
o meu gabinete [o ministro informa que concedeu 244 audiências, em 2006 e 2007].
FOLHA - Sua decisão de quebrar o sigilo do inquérito do mensalão contribuiu para a
abertura do Supremo à sociedade. Quais os aspectos positivos e negativos dessa
exposição?
BARBOSA - Eu acho que o lado bom é o pedagógico. Aproxima o tribunal da sociedade.
Quebra com uma tradição tipicamente brasileira, ainda forte, de o juiz estar
distante do cidadão. O tribunal entra nos lares dos brasileiros. As questões
importantes da cidadania são debatidas, são absorvidas pelo cidadão. Acho isso muito
positivo. O lado negativo disso é que essa superexposição traz uma carga de pressão
muito grande em cima do tribunal. Essa hiper-exposição atrai cada vez mais demandas
para o Supremo. Uma tendência natural de outros poderes e de segmentos da sociedade
é pensar que tudo pode ser resolvido no Supremo. Não é tão fácil assim vir até o
Supremo, e é extremamente caro.
FOLHA - Diante das decisões recentes do tribunal, alguns juízes dizem que o Supremo
está se distanciando da sociedade, do mundo real.
BARBOSA - Teoricamente, acho que isso possa existir. Não quero falar sobre decisões.
Em tese, o juiz não pode se desgrudar da sociedade. Ele não pode desprezar os
valores mais caros da sociedade na qual opera. Seria suprema arrogância -e isso eu
noto em alguns juízes brasileiros- achar que não interessa o que a sociedade pensa
sobre determinadas decisões. O juiz é fruto do seu meio. Seria o supra-sumo da
arrogância entender que o juiz poderia ter uma escala de valores que não leve em
conta o sentimento da sociedade sobre questões que lhe são trazidas para decidir. Em
um sistema judiciário que não leva em consideração o sentimento da sociedade sobre
determinadas questões, a tendência é ele perder credibilidade e se transformar em
monstrengo inútil, do ponto de vista institucional, a médio ou longo prazo.
FOLHA - O Supremo carece de especialistas em direito penal?
BARBOSA - Eu discordo. O Supremo não precisa de especialistas em direito penal. É
verdade que na atual composição não há especialistas em direito penal. Mas uma
pessoa com uma boa formação em direito público, com uma boa formação humanística,
uma boa visão de mundo, que não seja paroquial, é isso que se espera do membro de
uma Corte Suprema e não uma especialização exacerbada nesta ou naquela matéria. O
que se espera é, sobretudo, prudência. Uma clara visão da sociedade.
FOLHA - Quantos membros do Supremo já interrogaram réus?
BARBOSA - Isso é irrelevante. Eu presido quatro grandes processos criminais, jamais
vistos na história do tribunal. Eu não vou interrogar ninguém. Eu delego. Eu não
preciso interrogar. A lei me dá esse poder. Não é uma corte para resolver questões
pontuais. É um tribunal que julga casos com profunda repercussão na sociedade. Aqui
não se cuida do varejo. Já interroguei réus. Fui procurador da República por 19
anos. Minha especialização é direito público, mas isso é bobagem, não tem a menor
relevância.
FOLHA - Em que medida o foro privilegiado dificulta uma avaliação mais precisa do
Supremo?
BARBOSA - Eu acho o foro privilegiado nefasto. O foro privilegiado e outras medidas
são processos de racionalização da impunidade. Já disse e repito.
FOLHA - O Supremo é mais rigoroso para receber denúncias de crimes de colarinho
branco?
BARBOSA - O Supremo é bem mais rigoroso em matéria penal em geral. O tribunal tem a
tradição de mais rigor, nesses últimos anos. Vejamos o caso do mensalão. Com a
importância do STF, com o número de causas e problemas seríssimos que tem para
resolver, é racional que o tribunal gaste cinco dias inteiros só para julgar o
recebimento de uma denúncia? Com todas as dificuldades que o Brasil inteiro assistiu
ao vivo?
O recebimento de uma denúncia como aquela, no primeiro grau, seria um despacho de
duas páginas.

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