quinta-feira, 30 de abril de 2009

O ativismo judicial

O Professor Igor Abreu envia a seguinte notícia do jornal Valor Econômico




Ativismo judicial ganha cada vez mais força


Cristine Prestes, de São Paulo
30/04/2009















No fim do ano passado, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) começou a dar
fim a um longo inferno astral vivido pelos banqueiros no Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul (TJRS). Durante quase duas décadas, desembargadores
gaúchos impuseram derrotas definitivas às instituições bancárias no Estado,
só reversíveis em tribunais superiores. Provenientes do extinto Tribunal de
Alçada, esses magistrados formaram lá um núcleo de direito alternativo - em
uma época de poucos direitos e Judiciário nada independente - disposto a
interpretar a lei de forma a favorecer os mais fracos, julgando em prol da
justiça social. Batizado de "ativismo judicial", esse tipo de conduta
proveniente da Justiça esteve, até pouco tempo atrás, restrito ao extremo
sul do Brasil. Agora, dá sinais de disseminação pelo país e por outras
searas do direito.

Os casos mais recentes de ativismo judicial, como era de esperar, surgiram
na esteira da crise econômica - que desde o seu início contrapõe bancos,
empresas e trabalhadores no Poder Judiciário. Em um dos vários litígios
decorrentes da crise, a Justiça trabalhista determinou a reintegração de
4.720 trabalhadores demitidos pela fabricante de aviões Embraer em fevereiro
- decisão só revertida no Tribunal Superior do Trabalho (TST). A mesma
situação foi vivida pela Usiminas, em Minas Gerais, impedida de dispensar
trabalhadores por uma liminar - que caiu diante de um acordo fechado na
semana passada.

Em comum, as decisões fundamentam-se no princípio da dignidade da pessoa
humana previsto na Constituição Federal. "Ainda que a Consolidação das Leis
do Trabalho (CLT) tenha sido feita com o objetivo claro de proteger os
trabalhadores, os juízes não estão mais satisfeitos com ela", diz o advogado
Luciano Timm, sócio do escritório Carvalho, Machado, Timm & Deffenti
Advogados e um estudioso da relação entre o direito e a economia.










Decisões como essas são novidade até mesmo na Justiça trabalhista, que
historicamente carrega a justificada fama de favorecer a parte mais fraca da
relação de emprego. Ao recente "ativismo judicial" dos juízes do trabalho
somam-se outras modalidades - algumas já experimentadas no Brasil em um
passado não muito remoto. Um exemplo recente vem de Mato Grosso. No fim do
ano passado, na véspera do início da colheita de grãos, a Federação da
Agricultura e Pecuária do Estado (Famato) conseguiu na Justiça uma liminar
que impediu os bancos de arrestar máquinas e equipamentos dados em garantia
em contratos de financiamento da safra até 30 de junho deste ano e de
inscrever os nomes dos devedores em cadastros de proteção ao crédito. A
decisão, dada em uma ação civil pública, beneficia todos os produtores
rurais filiados à federação e aos sindicatos rurais de 84 municípios
mato-grossenses.

Ainda que o juiz José Zuquim Nogueira, que concedeu a liminar, tenha
fundamentado sua decisão no princípio da razoabilidade - segundo ele, para
assegurar a continuidade da atividade econômica e permitir que os produtores
façam a colheita e possam quitar suas dívidas -, a decisão preocupa. "É como
um 'subprime' vindo pelo direito: se a garantia é esvaziada, o financiamento
enfraquece", diz Timm.

A prática demonstra que a teoria é verdadeira. No passado, as consequências
de decisões semelhantes foram desastrosas. Um dos maiores exemplos vem de
Goiás, no episódio que se tornou conhecido como "caso da soja verde".
Durante as safras de 2002/2003 e de 2003/2004, o preço da saca atingiu picos
elevados no mercado à vista, muito acima do definido nos contratos de venda
antecipada da soja fechados com tradings ou com as indústrias esmagadoras.

Diante da expectativa de receber menos do que poderiam na época da colheita,
os produtores foram à Justiça com o objetivo de romper os contratos - e em
alguns casos, a Justiça, fundamentada no princípio da função social do
contrato, entendeu que eles teriam se tornado injustos para uma das partes.
No ano seguinte, em 2004, a comercialização antecipada da safra esperada de
soja em Goiás caiu imensamente, comprometendo o financiamento da produção do
grão. "Os contratos futuros desapareceram", afirma Bruno Salama, professor
de direito e economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Apenas em 2006, após
algumas decisões desfavoráveis aos produtores no STJ, os contratos voltaram
a ser celebrados, financiando 20% da safra de 2005/2006 - antes do episódio,
esse índice chegou a 80%.

"Partir para uma grande socialização tem um efeito perverso", diz Salama. "É
um efeito bumerangue: ao privilegiar uma parte de um contrato, o juiz cria
um desincentivo para todo um mercado."

Há quem tema que o ativismo judicial experimentado no campo se dissemine
para as cidades e atinja outro tipo de garantia: os imóveis, no caso dos
contratos de financiamento por meio do mecanismo da alienação fiduciária. De
acordo com o advogado Rodrigo Bicalho, sócio do escritório Bicalho e Mollica
Advogados e especialista em mercado imobiliário, já começam a aparecer
decisões mais conservadoras em relação à concessão de liminares que permitam
a retomada de imóveis financiados por meio da alienação fiduciária em casos
de inadimplência.

Conforme a Lei nº 9.514, de 1997, a alienação fiduciária permite que o bem
financiado seja a própria garantia do financiamento - ou seja, o consumidor
tem a posse, mas não a propriedade do bem. Em caso de não pagamento das
parcelas, a legislação prevê a reintegração de posse em 60 dias por meio de
uma liminar concedida pela Justiça. Até então, a retomada dos imóveis, pelo
sistema da hipoteca, demorava anos - e impedia a expansão do crédito
imobiliário no país. "Agora começam a aparecer decisões, ainda que sejam a
minoria, que determinam um exame mais detalhado do caso antes da retomada da
posse" diz Bicalho.

Embora tenha um impacto importante na concessão de crédito - um dos maiores
entraves ao desenvolvimento econômico do país -, o ativismo judicial não se
limita a relações contratuais ou trabalhistas entre as partes. Segundo o
advogado Luciano Timm, há manifestações no mesmo sentido em questões que
envolvem direitos sociais e direitos de propriedade - e exemplos não faltam
para ilustrar o comportamento de juízes em ambas as searas.

Tema que desperta reações passionais, seja no mais simplório dos
brasileiros, seja no titular do mais alto posto do Poder Judiciário - o
ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) -, a
atuação do Movimento dos Sem-Terra (MST) tornou-se ainda mais polêmica do
que sua própria natureza em algumas decisões judiciais recentes. Nelas,
juízes de primeira e segunda instâncias de Estados como Rio Grande do Sul,
Mato Grosso, Paraná ou Goiás têm negado liminares de reintegração de posse
de áreas invadidas pelo movimento sob o argumento de que, se a propriedade
tem uma função social, como prevê o Código Civil de 2002, a posse também a
tem - logo, o proprietário deve comprovar que usa a terra com essa função,
de acordo com critérios estabelecidos pelo Instituto de Colonização e
Reforma Agrária (Incra).

Se o novo Código Civil deu subsídios aos juízes para aplicarem princípios
como o da função social do contrato e da propriedade, a Constituição Federal
de 1988 fez o mesmo no que se refere às políticas públicas ao incluir em seu
texto princípios como o da dignidade humana e o da justiça social. O
resultado é uma série de decisões judiciais garantindo direitos individuais
que acabam, na prática, por prejudicar políticas públicas - ou seja,
coletivas.

O maior exemplo, e talvez o mais contundente em número de decisões
judiciais, é o das ações que pedem o fornecimento de medicamentos de alto
custo que não estão na lista do Sistema Único de Saúde (SUS). As liminares,
que determinam o bloqueio das contas dos governos estaduais e municipais
para custear os remédios, proliferam no país inteiro, desestruturando as
contas do poder público e comprometendo o custeio do sistema de saúde. A
avalanche de decisões é tanta que o Supremo deu à causa status de
repercussão geral - que suspende todas as ações em tramitação no país até um
julgamento definitivo do pleno da corte em casos considerados de relevância
política, econômica, social ou jurídica - e fará uma audiência pública, a
terceira na história da corte, para debater o tema antes de proferir sua
decisão.

"Qualquer política pública prevista na Constituição Federal e que serve para
todo o país tem que ser julgada somente pelo Supremo", diz o advogado e
professor Arnoldo Wald. Segundo ele, ainda que a Carta brasileira seja
moderna e ampla, não prevê todas as possibilidades, que também variam
conforme a época e as necessidades da sociedade. "O ativismo judicial,
então, é apenas um preenchimento das lacunas da lei", afirma.

Wald defende, no entanto, que essa regulamentação da legislação pela via
judicial seja feita apenas pelo Supremo e não por magistrados de instâncias
inferiores no julgamento de casos individuais. E o Supremo tem,
recentemente, cumprido esse papel ao criar regras para situações ainda não
definidas da Constituição - como no caso da greve do funcionalismo público.
Prevista na Carta, mas nunca regulamentada pelo Congresso Nacional, a greve
dos servidores foi julgada constitucional pelo Supremo, que, na ausência de
regras, definiu a aplicação da lei de greve do setor privado até que haja
uma legislação própria. Para Bruno Salama, porém, ainda que a lei "criada"
pelos juízes seja, em geral, melhor que a criada pelos legisladores, esbarra
no problema da falta de legitimidade democrática da Justiça - motivo maior
das atuais críticas sobre a atuação do Poder Judiciário brasileiro.

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