segunda-feira, 27 de abril de 2009

A Ciência Política e as crises institucionais no STF e no Congresso Nacional

A Profa Margarida Camargo da UFRJ/UGF envia a seguinte notícia publicada no jornal Valor Economico de 27 de abril de 2009
STF, UNIVERSALISMO E REPRESENTAçãO
Fábio Wanderley Reis
27/04/2009
Há, a meu ver, diferença relevante entre a crise do Congresso,
culminando com as denúncias relacionadas às passagens aéreas, e
a aparente crise do Judiciário que o enfrentamento entre os
ministros Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa no STF aponta. No caso
do Congresso, é possível dizer que se trata de mais do mesmo,
não obstante os indícios a sugerir que as coisas teriam
alcançado um ponto extremo, com a insensibilidade revelada até por
parlamentares supostamente "éticos" (e não obstante, igualmente,
a necessidade de alguma concessão aos que enxergam exagero nas
cobranças da imprensa e da chamada opinião pública no que se
refere às passagens). No caso da briga no STF, contudo, trata-se
de algo sem dúvida grave, cuja aspereza, à parte os ingredientes
pessoais envolvidos, explicitou de modo dramático divergências
doutrinárias sobre os próprios princípios a serem invocados na
atuação de uma aparelhagem judiciária que se tem mostrado, em
diversos níveis, francamente ativista.

Não sendo viável aderir sempre a um princípio "deliberativo"
que remete ao debate entre os cidadãos e à produção racional
de consenso, ou mesmo exclusivamente ao expediente da
representação e da regra da maioria como substitutos mais ou
menos precários para aquele princípio, a sociedade democrática
trata de criar nichos em que se privilegia um critério de
competência e em que as decisões são deixadas a cargo de
pessoas vistas como qualificadas para, ao decidir, ponderar com
acuidade os argumentos relevantes - ou seja, pessoas supostamente
capazes de se envolver com sucesso num hipotético debate de
desfecho unânime. O Judiciário é a esfera institucional mais
nitidamente distinguida, em princípio, por essa orientação.


Ocorre, porém, que ele não pode escapar à impregnação por
um componente de "representação", e essa impregnação surgiu
com força no bate-boca dos ministros. Não se pode esperar que o
cidadão aceite que alguém mais decida em seu nome (ou o
represente) em questões nas quais seus interesses ou valores se
acham em jogo senão com base na suposição de que esse alguém
de alguma forma se identifica com ele e terá seu "melhor
interesse" diante dos olhos, o que prevalece mesmo sobre a
exigência de que o representante seja um perito dotado dos
conhecimentos relevantes na área em que ocorre a decisão: num
exemplo negativo extremo, os conhecimentos médicos de um Josef
Mengele dificilmente seriam razão para que o prisioneiro num campo
de concentração se entregasse confiante em suas mãos. Mas
como esperar que essa cláusula de "representação" seja bem servida
por órgãos judiciais numa sociedade complexa, composta de
categorias diversas e potencialmente antagônicas, ou, em
particular, marcada por intensa desigualdade?

Em abstrato, há uma resposta de certa forma simples: a da
"representação virtual", em que o juiz, como o parlamentar de
Edmund Burke, supostamente servirá melhor ao interesse de cada
qual ao identificar-se universalisticamente com a coletividade
como um todo e buscar decidir de maneira imparcial com os olhos
tecnicamente competentes postos na lei. Embora de maneira não de
todo consistente com o reclamo de uma equívoca responsabilidade
"política" para o STF e seu presidente, o ministro Gilmar Mendes,
como já notei aqui, tem falado de uma "representação
argumentativa" que iria nessa direção - e que ecoa numa das
primeiras manifestações desagradáveis do bate-boca da semana
passada, a de que "esse discurso de classe não cola".

Contudo, cabe contar aqui com divergências, e a conexão entre
particularismo e universalismo se mostra mais complicada do que
sugere a perspectiva da representação virtual. O ativismo do
STF, que tem tido em Gilmar Mendes um agente empenhado e que
Maria Cristina Fernandes passava em revista em coluna de 3 de
abril no Valor, tem dado alguns bons frutos (liberação da
pesquisa com células-tronco, proibição do nepotismo nos três
poderes, distribuição gratuita do coquetel contra o vírus da
Aids), ao lado de outros discutíveis. Mas o desafio de conciliar o
universalismo com a atenção para a diferença e a desigualdade dá
origem a ativismos de outra orientação, que o presidente do STF
tem hostilizado, mas cujo alcance não se esgota no desfrutável
sentido de missão e no tosco esquerdismo de alguns integrantes
dos vários escaninhos de nossa aparelhagem jurisdicional. O
próprio desenvolvimento da socialdemocracia, como, entre muitos
outros, assinala Thomas Meyer em volume recente ("The Theory of
Social Democracy", 2007), mostra o desdobramento da lógica do
universalismo em termos que levam à redefinição dos direitos
civis e políticos fundamentais em direitos sociais, num embate
que envolve reconstrução legal (e que inclui, vale registrar,
episódios dramáticos de ativismo judicial). Sem falar de
experiências de convívio de diferenças étnicas e identidades
diversas, menos ou mais associadas com relações de
desigualdade, em que a bem sucedida resposta institucional do
chamado "consociativismo" tem imposto a "discriminação"
deliberada contida em lidar igualitariamente, em termos legais e de
representação, com os diferentes e os desiguais.

De toda forma, trata-se de problemas difíceis e fatalmente
envoltos em conflitos sociais potenciais ou reais. Não é de
estranhar, assim, que as tensões que temos visto nas relações
do STF com outras instâncias do poder judiciário e do poder do
Estado em geral acabem irrompendo dentro do próprio STF. E, em vez
da aposta claramente excessiva na competência e na capacidade
dos juízes para exercitar o equilíbrio adequado entre isenção
social e política e compromisso "representativo", é com certeza
preferível apostar no recurso explícito ao debate baseado na
representação direta dos interesses e identidades no
Legislativo, tratando de fortalecê-la e de contornar, até onde
possível, as limitações e distorções nela envolvidas.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor
emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às
segundas-feiras

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