quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Risco, Ciência e Política Corporativa: a Questão da Informação sobre os Transgênicos

Quando o que está em jogo é a segurança do consumidor-cidadão e do meio ambiente, a informação se torna uma peça chave. Em uma sociedade de riscos, na qual os possíveis efeitos indesejáveis de novos produtos e tecnologias são colocados sob a forma de decisões, geralmente há não opções por estratégias de “risco zero”. De uma forma ou de outra, riscos serão impostos e distribuídos a pessoas que não tomaram parte das decisões,i o que vai demandar uma nova fonte de legitimação.


Durante boa parte do processo de modernização da sociedade, o papel legitimador das decisões sobre risco era exercido exclusivamente pelo meio científico. Contudo, a ciência, vista como uma forma neutra de obtenção de conhecimento verdadeiro, foi aos poucos perdendo esse status. A ciência se tornou reflexiva,ii resultado da crítica interna da própria ciência, bem como da crescente desconfiança do público, alavancada por eventos catastróficos, como o acidente nuclear de Chernobyl e a doença da “Vaca Louca”.


Por outro lado, isso não significa que a ciência deva ser abandonada como fonte para decisões informadas da sociedade e substituída por formas pré-modernas de lidar com os riscos (superstições, religião, oráculos etc.). Adotar o paradigma do risco não quer dizer abandonar a ciência, mas encará-la de forma crítica. É preciso notar que decisões sobre o risco vão gerar contingências,iii em que não há alternativa isenta de riscos entre as opções possíveis. E, uma vez que a questão não é saber se haverá ou não riscos envolvidos (geralmente, sempre haverá), o problema se torna político ou jurídico, com suas próprias particularidades no campo da legitimação. Portanto, é importante deixar que as questões políticas ou jurídicas sejam resolvidas em seus próprios campos, guardadas as devidas inter-relações, exercendo a ciência uma papel informativo, mas não dogmático.


Colocadas estas premissas, e respeitados os limites éticos definidos pela sociedade, no paradigma do risco a ciência não deveria ser limitada ou censurada, mas livre e independente de influências governamentais e, principalmente, do controle das corporações econômicas. Regulada, pois a pesquisa em si mesma pode gerar riscos, mas não bitolada por interesses de certos grupos ou corporações.


Isto nos leva ao problema dos cientistas norte-americanos que pesquisam os efeitos de alimentos geneticamente modificados, recentemente reportado no New York Times. Conforme reclamação enviada por um grupo de pesquisadores de universidades à E.P.A., companhias de biotecnologia estariam impedindo esses cientistas de investigar profundamente a efetividade e o impacto ambiental da indústria de sementes geneticamente modificadas. Em sua petição, os cientistas colocaram que “nenhuma pesquisa verdadeiramente independente pode ser legalmente conduzida em muitas questões críticas”.


O problema denunciado pelos pesquisadores norte-americanos reside nas restrições decorrentes do direito de patentes. Os compradores das sementes geneticamente modificadas – inclusive os cientistas – precisam assinar um termo pelo qual se comprometem a não cultivar as sementes para os fins de pesquisa. Para conduzirem as pesquisas, os cientistas precisam de permissões especiais, que nem sempre são concedidas pelas companhias ou então, quando concedidas, demandam que os resultados das pesquisas sejam submetidos às companhias antes de sua publicação.


O problema das informações sobre transgênicos não é estranho à realidade brasileira e já foi objeto de uma ação no STF. Na ADI 3645 / PR, o STF analisou a constitucionalidade da Lei 14.861/2005, do Estado do Paraná, que determinava a informação quanto à presença de organismos geneticamente modificados em alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano e animal. A questão dos transgênicos já fora objeto da Lei Federal 11.105/2005 e dos Decretos 4.680/2003 e 5.591/2005, e, por esse motivo, a lei estadual foi contestada por violação do art. 24, V e XII, da CF. Em suma, foi alegado que a Lei 14.861/2005, do Paraná, extrapolou a competência suplementar estabelecida na CF.


O STF acatou os argumentos do autor da ação – o Partido da Frente Liberal (atual Democratas) – e declarou que: “2. Seja dispondo sobre consumo (CF, art. 24, V), seja sobre proteção e defesa da saúde (CF, art. 24, XII), busca o Diploma estadual impugnado inaugurar regulamentação paralela e explicitamente contraposta à legislação federal vigente. 3. Ocorrência de substituição - e não suplementação - das regras que cuidam das exigências, procedimentos e penalidades relativos à rotulagem informativa de produtos transgênicos por norma estadual que dispôs sobre o tema de maneira igualmente abrangente. Extrapolação, pelo legislador estadual, da autorização constitucional voltada para o preenchimento de lacunas acaso verificadas na legislação federal”.


Como podemos observar, a questão da regulação dos transgênicos no STF não se distancia muito do problema da regulação do amianto. Sobre o amianto, já publicamos um artigo específico sobre o tema (A Evolução Jurisprudencial da Regulação do Amianto no STF), onde destacamos que o STF em várias oportunidades se ateve à questão da divisão formal de competências legislativas, evitando adentrar no problema da regulação material do risco. Todavia, o Tribunal parece estar prestes a alterar sua posição (vide ADI 3397 e ADI 4066), deixando de se prender a questões formais de competência e analisando a legislação de regulação do risco à luz dos princípios constitucionais que resguardam os valores da segurança humana e do meio-ambiente.


É possível, então, que se abra uma porta para o questionamento da regulação do risco como um todo, privilegiando a segurança humana e do meio-ambiente, principalmente para garantir o acesso da população às informações sobre os riscos que ela, de uma forma ou de outra, acabará suportando.


Link para a reportagem no NYT:

Crop Scientists Say Biotechnology Seed Companies Are Thwarting Research


Para citar este post:

MAURICIO JR., Alceu. Risco, ciência e política corporativa: a questão da informação sobre os transgênicos. O Estado de Risco. Disponível em http://estadoderisco.org/, último acesso em DD.MM.AAAA.


iLUHMANN, Niklas. Risk: a sociological theory. Trad. R. Barrett. 2nd printing. New Jersey: Transaction Publ., 2006


iiBECK, Ulrich. Risk Society: Towards a New Modernity. London: Sage Publ., 1992.

iiiLUHMANN, Niklas. Observations on modernity. Trad William Whobrey. Stanford: Stanford University Press, 1998.

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