segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

A entrevista do Ministro Cesar Peluso

O professor Daniel Giotti envia a seguinte entrevista do Min. Cesar Peluso ao Consultor Jurídico de 2 de fevereiro de 2009.

Cezar Peluso - Por mais nobres que sejam os objetivos, não se pode
atropelar a lei para atingi-los. Muitas decisões judiciais - principalmente
as do Supremo Tribunal Federal - são bastante contestadas exatamente por
analisar as causas sob o ponto de vista de que os fins não justificam os
meios. Para o vice-presidente do Supremo, ministro Cezar Peluso, isso é
muito preocupante.

Peluso completou 40 anos de magistratura - cinco deles no STF - no ano
passado. É desse posto de observação privilegiado que traça um diagnóstico
da carreira à qual dedicou a vida. "Se a magistratura não se voltar um pouco
para dentro de si mesma, a longo prazo pode ter sua imagem irremediavelmente
comprometida", analisa.

Para o ministro, os juízes, principalmente da nova geração, vêm perdendo
algumas das mais importantes qualidades que fizeram a magistratura ganhar
respeito no país. Recato e prudência são predicados que, segundo ele, estão
deixando de pertencer à carreira.

A raiz do problema, afirma, é a forma de recrutamento. "O universo de
candidatos à magistratura restringe-se a jovens recém-formados, que não têm
experiência profissional, não têm experiência de vida ou equilíbrio e
maturidade suficientes para ser juiz. E nosso processo de recrutamento não
permite apurar a vocação."

Em entrevista à Consultor Jurídico, o ministro falou também da falta da
cultura da legalidade no país - que se torna mais grave quando parte de
operadores do Direito acredita que, para pegar bandidos, vale atropelar o
ordenamento jurídico -, das tensões criadas entre os poderes com as decisões
do Supremo, de escutas telefônicas, mas, sobretudo, de Justiça. O ministro
considera que, em 2008, o Estado brasileiro subiu alguns degraus graças ao
STF.

Cezar Peluso recebeu a revista Consultor Jurídico em seu gabinete, no
Supremo, na segunda-feira (26/1). A entrevista foi marcada para fazer o
perfil do ministro para o Anuário da Justiça 2009, que será lançado em
março.

Leia a entrevista

ConJur - Como o senhor vê o Poder Judiciário hoje?

Cezar Peluso - Com certa preocupação. Sobretudo com as novas gerações de
magistrados, que vêm perdendo algumas das qualidades que tornaram a
magistratura uma instituição respeitada no país. Tem-se deixado de lado as
chamadas virtudes tradicionais do magistrado.

ConJur - Quais virtudes?

Peluso - Certa reserva no comportamento, a circunspecção, a gravidade, a
prudência. É fundamental ter um pouco de recato na vida privada. Esses
predicados da magistratura estão sendo subvalorizados. Sob o pretexto de
democratização, modernização ou abertura do Judiciário, juízes passaram a
expor-se demais e a falar muito fora dos autos. Hoje, dão opinião sobre
tudo, manifestam-se até sobre processos em andamento na mão de outros
colegas, fazem críticas públicas e não acadêmicas a decisões de outros
magistrados, a decisões de tribunais. Isso não é saudável porque cria na
magistratura um clima e uma presunção de liberdade absoluta, de que o
magistrado pode fazer qualquer coisa. Se alguém reage contra esse tipo de
comportamento, é taxado de retrogrado, antidemocrático, autoritário.

ConJur - Mas o fato de os juízes se abrirem não é uma evolução?

Peluso - É, mas hoje há certo exagero. A democratização da magistratura não
é como a democratização de outras instituições, que dependem de
relacionamento muito próximo com o público. Os políticos, por exemplo, vivem
do contato com o público. Os juízes devem ser mais recatados nesse ponto.
Minha experiência como magistrado, principalmente nas cidades do interior
pelas quais passei, sempre me mostrou que o juiz que cultivava as virtudes
mais tradicionais era mais respeitado.

ConJur - Ou seja, o problema não é o juiz falar, é sobre o que falar?

Peluso - Sobre o que falar, como falar e quando falar. E não é só o falar. É
o comportar-se. Só para dar um exemplo, hoje há juízes processados por dar
tiros a esmo em lugares públicos. Há processos disciplinares contra juízes
por uso indevido de arma de fogo em vários tribunais. Isso mostra que há um
afrouxamento dos limites que a magistratura tem de se impor e que são
altamente importantes para a imagem pública do juiz e do Judiciário. Se a
magistratura não se voltar um pouco para dentro de si mesma, a longo prazo
pode ter sua imagem irremediavelmente comprometida. Os magistrados estão
muito mais preocupados com coisas externas, que não são típicas de suas
funções. Isso abala a confiança da população no Judiciário.

ConJur - Mas a confiança não está abalada já, principalmente pela lentidão
processual?Peluso - Recentemente, algumas pesquisas mostraram que o grau de
confiança da população no Judiciário baixou. Para mim, esse é um sintoma
claro de que algo não está bem dentro da magistratura. A causa de a
confiança ter caído não é só o atraso na marcha dos processos porque esse
problema sempre foi crônico e não é exclusivo do Brasil. Em todos os lugares
do mundo, há lentidão processual, até nos Estados Unidos. Para mostrar isso,
eu costumo citar o caso do O.J. Simpson [ex-jogador de futebol americano e
ator acusado de matar a mulher e absolvido da acusação]. Só o processo para
a realização do júri criminal durou mais de um ano. Se tivesse acontecido
aqui no Brasil, iriam dizer que o tempo que levou é absurdo. Então, o
problema da lentidão é antigo e mundial. Se fosse essa a causa da perda de
prestígio da magistratura, decerto não haveria essa queda recente no grau de
confiança do povo.

ConJur - Há outras causas para a perda de prestígio?

Peluso - Há uma perda de rigor no processo de recrutamento de juízes. Essa é
a raiz do problema. Qual é o fato objetivo? Há centenas de vagas abertas
para a magistratura que não conseguem ser preenchidas. Faz-se um concurso
para preencher cem cargos e são aprovados, no máximo, 30 candidatos. Diante
da necessidade de preencher esses cargos e do fato de que advogados com mais
experiência não trocam a advocacia pela carreira de juiz, a qualidade da
seleção cai. Antigamente, o grosso da magistratura era formado de advogados
com experiência. Quando entrei na carreira, havia vários juízes e
desembargadores que haviam sido advogados famosos no interior.

ConJur - E por que isso não acontece hoje?

Peluso - Por uma série de fatores. Um dos mais importantes é o fator
econômico. Ninguém larga uma advocacia que vai economicamente bem pela
magistratura, para ganhar menos, exceto em caso de forte vocação. O universo
de candidatos à magistratura está diminuindo. Está-se restringindo a jovens
recém-formados, que não têm experiência profissional, não têm experiência de
vida ou equilíbrio e maturidade suficientes para ser juiz. Nosso processo de
recrutamento não permite apurar o caráter, a personalidade, a vocação, como
a pessoa se comportará no exercício do cargo. Então, o jovem faz concurso,
já é nomeado juiz e depois vai para a escola de magistrados. Na escola, não
se observa muito bem. O resultado disso se revela depois: o número de
processos disciplinares contra juízes com poucos anos na magistratura é
muito grande. As pessoas se revelam como tais pouco tempo depois de
vitaliciadas e aí os tribunais têm muita dificuldade para as excluir da
magistratura.

ConJur - Há uma inversão de valores nos concursos. Mais de 90% dos
candidatos são reprovados no teste de conhecimento e todos são aprovados no
estágio probatório.

Peluso - Tudo isso é preocupante, mas não podemos dizer que a magistratura
brasileira está em estado caótico. Não é isso. Só que é necessário estudar
os limites do comportamento do juiz. Analisar o que podemos admitir como
evolução dos tempos e o que é desvio de função e de comportamentos.

ConJur - Isso tem a ver com a falta de cultura da legalidade que o senhor
citou em um julgamento?

Peluso - A cultura da legalidade é o sobretudo que falta neste país, de
baixo para cima e de cima para baixo. Não somos educados na cultura da
legalidade. As pessoas não querem saber se determinado ato é legal ou não.
Podemos ver isso todos os dias, por exemplo, no trânsito, mas também em
quase todos os setores. Os diálogos exemplificativos são mais ou menos
assim: "Isso aqui precisa ser feito". "Sim, mas há uma lei que diz que não
se pode fazer assim". "Não tem importância. Faz e depois a gente vê". É o
completo desprezo pela legalidade. E não importa o objetivo. Hoje, há muita
gente que acha válido passar por cima da lei para pegar supostos criminosos.
Não pode. Causou-me perplexidade uma pesquisa feita há alguns anos, na qual
os jovens responderam que para progredir na vida valeria tudo, até
desrespeitar a lei e tomar atitudes antiéticas. Isso é um desastre. E é
nesse caldo de cultura que estamos vivendo, recrutando os juízes.

ConJur - Os fins não justificam os meios...

Peluso - Não. As decisões do Supremo são muito questionadas por isso.
Determinadas CPIs têm objetivos extraordinários, então muitos acham que vale
tudo para que eles sejam alcançados. Todo mundo está de acordo com os
objetivos. Ninguém é favor da corrupção ou de interceptações telefônicas
para baixo e para cima. Sou contra tudo isso. Agora, para combater isso é
preciso respeitar o ordenamento jurídico. Há outros valores jurídicos
envolvidos na questão. Para atingir um objetivo necessário e legítimo, eu
não posso admitir que se comprometa um mundo de garantias fundamentais dos
cidadãos. Os fenômenos, sobretudo os fenômenos políticos, quando são objeto
de decisão do Judiciário, são julgados a partir desse ponto de vista, de que
não se pode fazer qualquer coisa a qualquer titulo só porque o escopo final
é valido, aceito e todo mundo quer.

ConJur - Houve certos momentos de tensão entre o Judiciário e o Legislativo
no ano passado. Um deles foi por causa dos efeitos da fidelidade partidária.
Outro foi provocado por uma decisão do senhor, que não permitiu que a CPI
das Escutas tivesse acesso a dados telefônicos sigilosos. O senhor foi
bastante criticado na ocasião. Como recebe essas críticas?

Peluso - Como manifestação de inconformismo própria da democracia, onde as
pessoas, em princípio, falam o que querem. Não posso guiar-me pelo que
dizem. Todos nós aqui no Supremo sabemos que, se tomarmos uma decisão em
determinado sentido, haverá muitas críticas de pessoas que se sentirão
atingidas, prejudicadas, inconformadas. Mas isso não pode guiar nenhum juiz,
muito menos um ministro do STF. As decisões do Supremo estão aí para serem
respeitadas e, depois, criticadas. Mas, no Brasil, diferentemente de outros
lugares do mundo, a crítica é pessoal, não é do teor da decisão. Muitas
vezes se critica a pessoa do ministro, não a decisão que ele tomou. Isso é
um problema primário de educação e de civilidade, não propriamente de
democracia. Há certas críticas que chegam a tipificar crime contra a honra
dos juízes.

ConJur - Seria o caso de processar os autores das críticas?

Peluso - Será que valeria a pena que um ministro do Supremo descesse à arena
do processo penal para responder a afrontas?

ConJur - O senhor considera que a denúncia contra o ministro Paulo Medina,
do STJ, foi o mais importante processo que relatou no ano passado?

Peluso - Eu diria que foi o mais rumoroso, mas não sei se foi o mais
importante. É um processo complexo, com quase cem volumes e que versa sobre
temas delicados, ligados à magistratura. Mas o Supremo tomou outras decisões
que, no plano nacional, foram muito mais importantes. E é preciso ressaltar,
sobre esse processo do Medina, que nós apenas recebemos a denúncia. O caso
ainda está sendo processado. Não há culpados por enquanto nesse processo.

ConJur - O Supremo fixou alguns precedentes importantes nesse processo, não?
Por exemplo, que não é necessária a transcrição integral das escutas
telefônicas nos autos e que, se a decisão estiver bem fundamentada, as
interceptações podem ser prorrogadas por mais de 30 dias.

Peluso - Sim. São precedentes importantíssimos. O Supremo deixou duas
orientações. Primeira: medidas de investigação que implicam, de certo modo,
restrição às liberdades pessoais têm de ser tomadas com muita cautela e
rigorosamente dentro dos limites legais. Esse é o ponto de vista de
resguardo das garantias individuais que a Constituição preserva. A segunda é
que o Estado tem de ter certa margem de liberdade para apurar crimes. A
criminalidade hoje é muito competente no seu mau ofício. Portanto, o Estado
tem que contar com instrumentos de eficácia maior do que aqueles que a
criminalidade cria para fugir das regras. Se o Judiciário, sem prejuízo de
respeito das liberdades individuais, não permite ao Estado avançar no
combate à criminalidade, então fica difícil conviver em sociedade.

ConJur - Por isso se permitiu interceptação telefônica por mais de 30 dias?

Peluso - O Supremo foi comedido. Admitiu interceptação por mais de 30 dias
apenas quando haja justificação adequada. Não se pode permitir escuta
indefinida, mas também não se pode restringir de modo a torná-la inútil na
investigação de organizações criminosas. Um valor fundamental não pode
anular o outro. De certo modo, entendo que o Supremo encontrou o equilíbrio
entre essas exigências constitucionais.

ConJur - O senhor considera que há exagero no número de interceptações
telefônicas?

Peluso - Eu estou perdido quanto aos números. A CPI tem um número, o
Conselho Nacional de Justiça fala em outro e eu, pessoalmente, não tenho
dados para dizer qual está correto. Agora, se os números da CPI forem
aproximadamente verdadeiros, é um descalabro. Isso seria uma revelação
terrível do ponto de vista do funcionamento do Estado no seu aparato
policial: significaria que já ninguém investiga inteligentemente nada e
prefere ficar gravando para ver se surge alguma nas conversas telefônicas.

ConJur - É correto começar investigação a partir de escuta telefônica?

Peluso - A escuta telefônica tem de servir apenas para auxiliar a
investigação. Não há o menor propósito nem sentido em começar uma
investigação com escutas. As interceptações devem ser usadas quando sejam a
única forma de se provar um fato sobre o qual já haja indícios muito fortes.
Se há outro meio de provar o delito, não cabe escuta. A Polícia tem de
investir em inteligência, até para fortalecer suas investigações. Porque eu
posso dizer ao telefone que fiz uma transação ilegal. Isso não prova nada se
a Polícia não tenha documentos que mostrem que a transação foi, de fato,
feita e é ilegal. Ou seja, temos de reconhecer que as interceptações
telefônicas são um instrumento útil de investigação policial, mas que são
apenas auxiliares da investigação. Existem muitos outros meios de
investigação e de provas que, na maioria dos casos, são suficientes para
apurar prática de delitos.

ConJur - É preciso repensar a investigação?

Peluso - Tudo depende da orientação que se dê aos órgãos policiais. Ninguém
pode deixar de reconhecer que houve um investimento muito grande na Polícia
Federal nos últimos anos e que isso é muito bom. Quando surgiu, a PF era
considerada polícia de segunda classe. Hoje, sem dúvida, é a mais bem
equipada das instituições policiais, com gente nova, inteligente, preparada,
com cursos aqui e no exterior.

ConJur - Nós vivemos em um Estado policialesco?

Peluso - Não. Dizer que vivemos em um Estado Policial é figura de retórica.
Todos temos medo de chegar lá, mas hoje não vivemos essa condição. Eu
acredito que estamos passando daquela fase de receio, de medo dos excessos
policiais. Houve excesso de marketing em certas atividades e operações
policiais. Mas, agora, a própria imprensa passou a dar notícias de operações
policiais tão frutíferas quanto outras do passado recente, mas sem igual
estardalhaço.

ConJur - O senhor considera que o Supremo tem um papel importante nesse
quadro?

Peluso - O Supremo teve um peso importante nesse processo. A corte foi
ponderada. Não disse que vivemos em um Estado policial. As decisões foram
pontuais. Um bom exemplo é o episódio da súmula das algemas. O piloto
brasileiro Hélio Castro Neves agora está sendo processado nos Estados Unidos
por problemas de impostos. Ele é conhecidíssimo lá, campeão de
automobilismo. Noticiaram que foi preso e algemado, não apenas pelas mãos,
mas também pelos pés. A pergunta é: para quê? O que os órgãos policiais, o
Estado e a sociedade ganharam com isso? Nada. Se ele tinha que ser preso,
provavelmente teria acompanhado o policial da captura andando normalmente ao
seu lado. O que o Supremo quis reprimir, com aquela súmula vinculante, foi
exatamente isso: o excesso ou abuso. A pessoa apresentar-se à Polícia para
ser presa não é uma situação em que se justifique o uso de algemas. O STF
adotou essa postura para coibir atos extremamente abusivos, que tinham pouco
a ver com a segurança dos policiais e das suas operações.

ConJur - Os policiais reclamaram...

Peluso - Fui juiz em São Paulo por mais de 30 anos e não me lembro de nenhum
caso em que vieram reclamar de que a Polícia de São Paulo botou algemas em
alguém desnecessariamente. Depois que aprovamos a súmula, recebi telefonemas
de amigos da Polícia, delegados e investigadores, que me diziam: "Mas,
ministro, isso é um absurdo". E eu respondi: "Gente, continuem fazendo o que
sempre fizeram. Algemem o cidadão quando haja necessidade, como sempre foi
feito". Não mudou nada. Só coibimos os abusos.

ConJur - Se a Polícia Federal é polícia judiciária, ela não deveria se
subordinar ao Judiciário, e não ao Executivo?

Peluso - No exercício da atividade, sim. Administrativamente, não. A
atividade de investigação da polícia judiciária é que deve ficar sob a
supervisão do Judiciário. Se a Polícia, enquanto organização, fosse
subordinada ao Judiciário, teríamos, entre muitos outros inconvenientes, o
problema de separar o juiz que supervisiona a Polícia do juiz que julga a
ação penal. As duas coisas não podem, em princípio, ficar nas mesmas mãos.
Quem colhe as provas ou supervisiona o inquérito não pode julgar. Eu já
ofereci sugestões ao presidente do STF e do CNJ, ministro Gilmar Mendes,
para que se adote, por meio do Conselho Nacional de Justiça, o modelo do
Dipo (Departamento de Inquéritos Policiais) de São Paulo, onde for possível.

ConJur - Qual é o modelo?

Peluso - Os juízes do Dipo só supervisionam os inquéritos. Nenhum deles
recebe denúncia, nem julgam. Eles trabalham exclusivamente no controle da
atividade da polícia judiciária e do Ministério Público, dentro do
inquérito. Quando há denúncia, ela é distribuída para os juízes das varas
criminais, que são outros. É uma ótima sugestão para aperfeiçoar não apenas
o funcionamento da polícia judiciária, mas também o controle dela.

ConJur - Ainda há razão para manter em vigor a Súmula 691 do STF, que impede
o tribunal de analisar pedido de Habeas Corpus contra decisão monocrática de
tribunal superior?

Peluso - Fui eu quem propôs a revogação ou atenuação dessa súmula porque o
Supremo não tem escapatória: se o ato praticado pelo relator de tribunal
superior, ainda que seja em liminar, configura constrangimento
manifestamente ilegal, o STF tem de sanar a ilegalidade. Agora, é preciso
levar em conta o argumento dos outros ministros. Para eles, se cancelarmos a
Súmula 691, o Supremo ficará entupido com o volume de pedidos de Habeas
Corpus que irá subir.

ConJur - Mas já não sobe, porque os advogados sabem que há a chance de a
súmula ser superada?

Peluso - Minha avaliação é que a existência ou a inexistência da Súmula 691,
hoje, não muda nada, exatamente porque o tribunal está superando a súmula
naqueles casos em que fica provado haver patente ilegalidade, como, por
exemplo, quando se contrariou a jurisprudência do Supremo a respeito.

ConJur - Na última sessão do ano da 2ª Turma, o senhor, visivelmente
irritado, pediu para julgar um processo penal que não estava na pauta, de um
sujeito que entrou com embargos infringentes e de declaração. Os embargos
foram rejeitados e o senhor determinou a imediata certificação do trânsito
em julgado e a intimação por telex. Por quê?

Peluso - Porque a punibilidade seria extinta, por prescrição, agora em
fevereiro, pois estavam apresentando recursos francamente protelatórios só
para alcançar a impunidade por meio de consumação da prescrição penal.

ConJur - Além de atitudes como essa que o senhor tomou, o que mais o
Judiciário pode fazer para evitar que as pessoas usem a Justiça para
protelar o cumprimento de obrigação?

Peluso - Os juízes têm de usar os poderes de repressão da deslealdade
processual. O Judiciário não leva a sério o poder que tem para reprimir a
deslealdade processual.

ConJur - Que poderes? Multa, por exemplo?

Peluso - Multa é uma medida. Há outras. Estamos amadurecendo a ideia de
introduzir no Brasil institutos semelhantes aos que existem nos Estados
Unidos. A repressão à deslealdade processual lá é bem retratada nos filmes,
em que o juiz adverte o advogado que transpõe a lealdade no processo: "Eu
mando cassar sua habilitação na Ordem se o senhor continuar com essa
atitude". O desrespeito à autoridade da corte é reprimido nos Estados Unidos
de modo muito rigoroso, muito severo. Não precisamos, talvez, adotar nada
tão violento, mas é preciso tomar medidas que reforcem esse poder do
Judiciário de reprimir a deslealdade processual, o uso da máquina judiciária
para satisfazer interesses ilegítimos. A maioria dos juízes não usa os
instrumentos que já temos. É raro ver o juiz aplicar multa ou tomar atitude
mais drástica dentro do processo, sobretudo na área penal onde recursos
protelatórios tendem apenas a conseguir a prescrição e a impunidade, o que
ajuda muito a abalar a imagem do Judiciário.

ConJur - O senhor é a favor de uma reforma processual mais profunda?

Peluso - Sou. O sistema brasileiro é um sistema bom para um Cantão da Suíça.
Há uma infinidade de recursos, de coisas inúteis. Estão-se fazendo reformas
pontuais que não surtem efeito prático. As medidas que produziram
perceptível efeito prático foram a Súmula Vinculante e a Repercussão Geral.
Estas, sim, se traduzem em números. As outras, nada ou quase nada. Mudou um
pouco a execução, mas demora do mesmo jeito. Criou-se uma penhora online,
muito usada na Justiça do Trabalho e que ajuda em algumas coisas, mas parece
que embaraça em outras. Os empresários reclamam muito. Fala-se que
empresários estão criando contas apenas para penhora, para não ficar sem
capital de giro e dinheiro de investimento. Mas parece que a reforma do júri
foi acertada do ponto de vista prático porque concentra todos os atos do
processo em uma audiência, passando-se imediatamente para o júri. Acho que
deveria ser reunida uma comissão de alto nível para repensar o Código de
Processo Civil e o de Processo Penal. Não adianta reformar o Código Penal,
por exemplo. A maioria acha que resolve problema criar figuras de crime.
Isso é equívoco grave. As figuras e penas de crime que nós temos são mais
que suficientes.

ConJur - Aumentar pena não diminui a criminalidade.

Peluso - Não adianta nada. Só atrapalha. A exacerbação de certas penas leva
os juízes a terem problemas de consciência para aplicar a punição que seja
muito severa. Há um exemplo ótimo disso que me foi dado por um professor da
Universidade de Ottawa, que esteve aqui no Supremo recentemente. Nós
conversamos sobre o problema de se fixar penas mínimas - a
constitucionalidade da pena mínima ainda não foi, mas, dias menos dias, será
discutida aqui. Ele contou o seguinte caso. Uma moça sem nenhum antecedente
criminal viajava do Canadá para a Europa e encontrou um conhecido no
aeroporto. Ele pediu-lhe que levasse um pacote até determinado país. Era
droga. Ela foi pega e processada. Um tribunal do Canadá encontrou-se em um
dilema terrível porque a pena mínima prevista para tráfico internacional de
drogas é alta e foi considerada exagerada para o caso da moça, dadas as
circunstâncias do fato. O tribunal esteve inclinado a não aplicar a pena
mínima porque era desproporcional ao fato.

ConJur - O Supremo já discutiu algo parecido?

Peluso - O Supremo tem jurisprudência firme no sentido de que não se pode
aplicar pena menor que a mínima, salvo nos casos de causas especiais de
diminuição. Mas não podemos considerar atenuantes comuns, em casos como o
dessa moça canadense? Ela poderia ser equiparada a um profissional que vive
de levar drogas para outros países, só porque foi imprudente ou muito
leviana? O STF, algum dia, certamente discutirá isso.

ConJur - É justo tratar igualmente o profissional e a moça que foi enganada?

Peluso - O fato típico abstratamente considerado é o mesmo. Mas o histórico,
o fato da vida, não é o mesmo. Portanto, eu não posso ter uma pena mínima
igual para os dois casos. É isso que me parece jurídico e sensato.



ConJur - O senhor considera que o quinto constitucional ainda é uma forma
válida para os tribunais?

Peluso - Eu acho que o quinto constitucional é uma invenção brasileira, mas
que, se fosse tão boa assim, seria adotada no mundo inteiro. Historicamente,
teve um bom propósito. Mas, do ponto de vista prático, se fosse suprimido,
não alteraria em nada a condição da magistratura. Não falo da composição do
Supremo, que é coisa completamente diferente. Mas, nos outros tribunais,
temos tido muitos problemas na formação do quinto, como se sucedeu no TJ de
São Paulo e no STJ, casos que o Supremo julgará. É claro que muitos juízes,
ou a maioria dos juízes, do quinto se tornam juízes extraordinários. Mas não
me parece instituto fundamental para a qualidade da magistratura, nem muito
justo para com os magistrados de carreira. No entanto, acho que não há quem
acabe com o quinto constitucional!

ConJur - Como o senhor resume o ano de 2008 para o Supremo Tribunal Federal?

Peluso - Diria que o Estado brasileiro, em termos de cidadania e
consolidação democrática, subiu alguns degraus com as decisões do Supremo.

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