Folha de São Paulo de 08 de fevereiro de 2009
Para americana descendente de afegãos que trabalhou na prisão em base militar dos EUA, maioria dos detentos é inocente
Uma das poucas capazes de falar com os presos em sua língua, Mahvish Khan diz que tribunais imparciais devem julgar detentos
"Havia alguns homens muito maus na baía de Guantánamo", conta a jovem advogada norte-americana de ascendência afegã Mahvish Rukhsana Khan em seu "Diário de Guantánamo".
E lista os exemplos de Khaled Sheik Mohammad, considerado o cérebro dos ataques de 11 de Setembro, e Ramzi Binalshibh, colega de quarto do líder do sequestro dos aviões na ocasião, Mohammad Atta.
Porém, os primeiros detentos com quem teve contato, ao ser aceita como advogada num grupo que representava prisioneiros do campo americano em Cuba, não pareciam uma ameaça aos EUA ou ao mundo.
Entre as histórias que recolheu, estão a do pediatra que trabalhara na reconstrução política do Afeganistão com o regime de Hamid Karzai e a de um idoso que mal conseguia se movimentar, mas, ainda assim, era mantido algemado ao chão.
Os pais de Khan, 30, são afegãos residentes nos EUA, e ela foi criada de modo conservador. Apesar de ter nascido em Michigan e cursado direito na Universidade de Miami, seguia as tradições que regram a vida das mulheres no país dos pais.
Idealista, interessou-se em ver de perto Guantánamo para investigar até que ponto o governo de seu país desrespeitava os direitos humanos ao manter ali presos sem julgamento.
Juntou-se a um grupo de advogados e iniciou uma série de visitas à prisão. Entre eles, destacava-se por ser praticamente a única pessoa que podia falar com os detentos afegãos, pois dominava a língua pashtu.
Percebeu que um dos principais problemas do lugar era que, justamente, ninguém se entendia. Nem oficiais e prisioneiros, tampouco estes e seus advogados. Sua atuação, assim, foi muito importante em diversos processos. Agora, ela conta algumas de suas histórias em livro recém-lançado no Brasil pela Larousse.
Leia abaixo trechos da entrevista que ela concedeu à Folha.
FOLHA - Além da vigilância e da desconfiança por parte do Exército dos EUA, os advogados americanos que trabalham em Guantánamo ainda têm de fazer com que os detentos confiem neles. O que há de gratificante nesse duplo esforço?
MAHVISH RUKHSANA KHAN - É natural que os presos, inicialmente, não confiem em alguém que é pago para defendê-los pelo mesmo governo que os mantêm ali. Muitos estão há mais de sete anos sendo interrogados e torturados por indivíduos do mesmo país de onde nós viemos. Há os que inclusive creem que seus advogados são interrogadores disfarçados.
O esforço vale a pena. Não só porque nós, advogados, sejamos, talvez, a única face positiva da América e do Ocidente que esses homens vão encontrar em suas vidas. Mas também porque podemos convencê-los de que nosso trabalho é a única chance que têm de fazer suas histórias serem ouvidas fora do campo e de questionar sua detenção ilegal.
FOLHA - Por que você se interessou em trabalhar com Guantánamo?
KHAN - Quando estudava direito, me chamou a atenção o processo por meio do qual Washington desviara tecnicamente de princípios constitucionais para criar o campo de detenção. Meu senso de indignação com relação ao fato de que ali pessoas eram presas sem serem formalmente acusadas foi crescendo. Percebi que era algo criminoso e medieval.
A cadeia foi construída em Cuba para excluí-la do território em que os fundamentos da América vigoram. Tornou-se um buraco negro.
Eu não sabia se os homens ali eram bons ou maus, mas tinha a convicção de que não deveriam ser tratados fora da lei, com desrespeito aos direitos humanos. Apenas um julgamento imparcial pode separar uns dos outros.
FOLHA - Ter ascendência afegã e falar pashtu a fez mais sensível que os ocidentais ao julgar a situação? Ou a proximidade cultural pode ter comprometido seu senso crítico?
KHAN - Minha percepção sobre a inocência ou a culpa dos detentos não foi influenciada por minha origem. Fui a Guantánamo esperando encontrar terroristas. Na primeira viagem, em 2006, estava assustada. Achava que veria fabricantes de bombas, membros da Al Qaeda e do Taleban. Porém, o primeiro homem com quem falei era um pediatra que estava tão nervoso quanto eu. Era Ali Shah Mousovi, 43. Os militares alegavam que ele era do Taleban, embora houvesse provas de que ele tinha trabalhado para a ONU na instalação do regime democrático de Hamid Karzai.
Mousovi era xiita (minoria muçulmana perseguida pelo Taleban) e ainda assim era acusado de ter ligações com o Taleban. Sua mulher era uma economista e ambos tinham três crianças pequenas que haviam levado para o Irã quando fugiram justamente do regime opressor do Taleban. Depois de três anos em Guantánamo, ele foi solto sem jamais receber uma condenação.
Minha proximidade cultural e linguística me permitiu interagir de modo mais pessoal com os prisioneiros. Mas, assim como os outros advogados, meu interesse não era descobrir quem era culpado ou inocente. Só pedíamos que todos os prisioneiros fossem levados a julgamento. Nenhum dos presos que encontrei em Guantánamo foi formalmente acusado. A prisão tinha cerca de 770 em seu momento mais ativo [hoje são 245]. Deles, apenas 20 foram realmente condenados.
FOLHA - Por que você considera que provavelmente a maioria dos presos de Guantánamo é inocente?
KHAN - A questão das recompensas oferecidas pelos militares americanos é um fato que não pode ser subestimado. Foram jogados sobre o Afeganistão milhares de anúncios que ofereciam US$ 25 mil para quem indicasse alguém que tivesse relação com a Al Qaeda ou o Taleban. É uma quantia assombrosa para a economia de uma família afegã média.
Criou-se logo um mercado negro de denúncias, agravado pelo fato de que se trata de um país que tem um histórico de lutas tribais antigo. Quase nunca o Exército americano investigava as acusações. Só 5% dos presos em Guantánamo resultam de investigações dos serviços de inteligência dos EUA.
Essas informações me levaram a concluir que grande parte dos presos lá é inocente.
FOLHA - Que conselho você daria a Barack Obama para fechar a prisão? KHAN - Eu diria que ele deve seguir a lei, só isso. Julgar e condenar os culpados e libertar os inocentes. Os condenados devem ser julgados por tribunais imparciais, e não por militares. E não se deve temer realizar esses processos em solo americano.
FOLHA - Se todos os prisioneiros de Guantánamo forem soltos hoje, sem julgamento, qual a chance imediata de novos atentados?
KHAN - Um pequeno número responde a acusações de atividades criminosas. Sem julgamento, os bons estão injustamente detidos, e há risco de se libertarem criminosos.
domingo, 8 de fevereiro de 2009
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