O Prof. Farlei Martins, da Ucam, doutorando em direito da Puc-rio, prosseguindo no esforço de consolidarmos uma rede sobre o constitucionalismo latino-americano, envia para a postagem a entrevisa do cientista político argentino Guillermo O´Donnell. Na entrevista, cabe destacar o uso determiadas categorias sobre democracia na América Latina e as consequências para o sistema presidencialista. Essa postagem reforça o nosso esforço de termos uma rede sobre o constitucionalismo latino-americano conforme foi preconizada pelo Prof. Ruben Martinez Dalmau na sua palestra de 11 de maio de 2009 bloggada em www.supremoemdebate.blogspot.com quando discorreu sobre o tema citado.
Estado de São Paulo, 17.05.2009
Poderosas tentações
ENTREVISTA - GUILLERMO O´DONNELL, Advogado, cientista político, professor da
Universidad Nacional de San Martín, em Buenos Aires; Ideia de perpetuação no
poder seduz quem acredita ser imprescindível. Mas, em política, ninguém o é
Laura Greenhalgh e e Flávia Tavares - O Estado de S.Paulo
O tema, de tão sério, é tratado de forma distraída, minimizada, camuflada.
Estariam os ouvidos de Lula emprenhados de "conselhos" que o incentivam a se
manter no poder? Entre o estapafúrdio e o perigoso, circula uma ideia que
vez ou outra se torna audível. Como na passagem do presidente pelo Sindicato
dos Metalúrgicos do ABC, dias atrás, na festa dos 50 anos da entidade.
Companheiros de lutas operárias pregaram a tese. Lula desconversou, claro. E
manteve seu compromisso com a candidatura presidencial da ministra Dilma
Rousseff, hoje em luta contra o câncer. Enquanto isso, na Colômbia... sim,
Lula e seus interlocutores devem estar acompanhando atentamente as manobras
políticas com o intuito de levar o presidente Álvaro Uribe a se reeleger
pela segunda vez, em 2010. Até tu, Uribe.
É o poder e as tentações. Para o cientista político argentino Guillermo
O?Donnell, que fez da democracia o foco de seus estudos mais recentes, esses
dois elementos se atraem. "Qualquer mandatário está sujeito à tentação de
acreditar quando lhe dizem que é imprescindível, indispensável e, se deixar
o poder, vai ser um desastre para o país", afirma, desejando que Lula
resista a essa conversa tão cara aos bajuladores e interesseiros de plantão.
Nesta entrevista ao Aliás, concedida de sua casa em Buenos Aires, O?Donnell
faz uma análise do quadro político latino-americano valendo-se de duas
categorias distintas de democracia, desenvolvidas em seus estudos: a
democracia representativa, que ele consegue ver em evolução positiva no
Brasil, e a democracia delegativa, que ele situa em países vizinhos como
Argentina, Equador, Bolívia, Venezuela. Trata-se de uma democracia meio
estranha que embute o entendimento de que, por ter sido eleito, o presidente
pode escolher o que é melhor para o país, sem dar muita trela às
instituições e poderes constituídos. Caminho para o autoritarismo? "Com
Chávez, certamente."
Guillermo O?Donnell, advogado de formação, fez doutorado em Ciência Política
na Universidade Yale, foi professor da Cátedra Hellen Kellog da Universidade
de Notre Dame - além dessas duas instituições americanas, passou também por
Stanford -, lecionou na USP e atuou no Centro Brasileiro de Análise e
Planejamento (Cebrap). Hoje leciona e pesquisa na Universidad Nacional de
San Martín, em Buenos Aires. Tem uma filha brasileira e, até por conta dos
laços afetivos, torce para que o País continue construindo uma democracia de
causar inveja no continente latino-americano: "O Brasil está vacinado contra
as tentações".
Como avaliar a qualidade das democracias latino-americanas?
São muito irregulares. Alguns países alcançaram um patamar democrático, mas
outros ainda têm dívidas a saldar para completar e aperfeiçoar o processo.
Há os que têm se movido na direção de uma democracia representativa, ainda
que imperfeita, como o Brasil. E outros que seguem o que chamo de
"democracia delegativa". Esse conceito diz respeito a regimes em que o
presidente eleito se sente no direito e na obrigação de fazer o que achar
melhor para o país, sem obstáculos do Congresso, do Judiciário ou de
organizações civis.
Caminho para o autoritarismo?
Não necessariamente. Pensando, por exemplo, na Argentina: em comparação com
os horrores e abusos de poder já vividos no país, a democracia delegativa de
hoje não é pior do que o que se viu no passado. Não houve regressão
democrática. Mas o país ainda está distante de consolidar a representação na
política. E isso acontece não só na Argentina. Outros países da América
Latina andam testando os limites da democracia delegativa: o Equador,
certamente a Venezuela, que flerta com o autoritarismo, e, com suas
particularidades, a Bolívia.
Trata-se de uma democracia esvaziada de princípios?
É um sistema em que o presidente eleito acha que o eleitorado delegou a ele
autoridade para tomar as decisões que achar melhor para o país, sem
impedimentos institucionais. Ele só fica sujeito ao crivo de uma futura
eleição, num contexto, por sinal, hiperpresidencialista e hipermajoritário.
Instituições da democracia representativa são percebidas como um obstáculo
que esse presidente tem que domesticar, cooptar, subordinar, para fazer com
que sua ambição de "salvador da pátria" seja atingida. Ainda assim, persiste
nesse jogo o componente democrático, porque esses mandatários estão
dispostos, em princípio, a se sujeitar a eleições futuras e não suprimem
inteiramente liberdades clássicas da democracia, como a liberdade de opinião
e o direito à livre associação. É um tipo estranho de democracia, que pode
ir ao encontro do autoritarismo. Alberto Fujimori, no Peru, começou como
presidente delegativo, Vladimir Putin, na Rússia, também, e ambos se
tornaram claramente autoritários. Hugo Chávez segue esse percurso.
Como ?nascem? os presidentes na democracia delegativa?
Uma constatação empírica é a de que esses presidentes nascem de profundas
crises de seu país, quando cresce a demanda por algum tipo de ordem e poder.
Alguns presidentes chegam ao topo e fracassam rapidamente. Um exemplo claro
disso é Fernando Collor de Mello, no Brasil. Outros têm sucesso ao dar
respostas, pelo menos aparentes, a muitas das urgências da população. Isso
lhes dá uma popularidade temporária e a chancela para governar como bem
entendem. Eu acho que o Brasil ficou vacinado contra tudo isso, depois de
Collor. A Argentina, não: insiste nessa linha com Carlos Menem, Néstor
Kirchner e, agora, com Cristina.
No quadro das democracias delegativas em regimes presidencialistas, vemos
que os Parlamentos podem funcionar como balcão de negócios e defesa de
interesses de grupos. O que leva ao esvaziamento político do próprio
Legislativo. No Brasil, diz-se que o Judiciário hoje está mais ativo que o
Legislativo. Como o senhor vê isso?
Presidentes "delegativos" consideram que o Congresso tem a obrigação de
aprovar qualquer lei enviada pelo Executivo. Aqueles que têm a sorte de
conseguir maioria no Congresso fazem a fórmula funcionar bem, e até por
longo tempo. Sei que o Judiciário no Brasil é muito ativo, o que é
obviamente consequência da Constituição do País, que deu proeminência a esse
poder. Pior que isso são os países onde o Judiciário é subordinado ao
Executivo. Daí as consequências são gravíssimas. O ponto de equilíbrio entre
um Judiciário subordinado e um independente demais é o dilema.
No jogo da delegação de poder, o povo se desinteressa da política?
As democracias contemporâneas não pressupõem grande participação do chamado
"povo". Há participação de grupos sociais, entidades, organizações da
sociedade civil e o grau desse envolvimento varia de país para país. Tivemos
exemplos de forte mobilização, como as "Diretas Já!", no Brasil, mas isso
depende da conjuntura política, é algo muito flutuante.
Hoje o eleitor segue votação de leis contra o fumo, que regulamentam o uso
de bebidas, que falam das regras de trânsito, enfim, leis que normatizam sua
vida. E existe uma agenda de reformas de Estado parada. É tempo da política
miúda?
Sim, mas essa pequenez é responsabilidade das lideranças políticas. Elas é
que têm de recolocar as preocupações maiores na agenda nacional. É
importante perguntar que ambições nos levam a essa visão política
privatizada e desinteressada da população. Culpar este ou aquele pode ser
perigoso e injusto.
Relativizam-se os limites do mandato presidencial pela América Latina, com
tantos mandatários tentando se perpetuar no poder. No Brasil, embora a ideia
de propor um terceiro mandato ao presidente seja uma espécie de tabu, o tema
tem aparecido de forma camuflada. O que o senhor acha disso?
O poder carrega enormes tentações. Qualquer pessoa que esteja na cúpula está
sujeita à tentação de acreditar quando alguém lhe diz que ela é
imprescindível, indispensável e que, se deixar o poder, haverá um desastre
no país. Isso é uma constante. Aqui mesmo, na Argentina, temos um exemplo: o
Menem fabricou sua reeleição com uma reforma constitucional e depois tentou
um terceiro mandato que, felizmente, foi impedido pela mobilização da
sociedade civil e de parte da classe política. Já Patricio Aylwin, o
primeiro presidente da transição chilena, ia governando muito bem quando
seus aliados tentaram convencê-lo a promover uma reforma constitucional para
poder ser reeleito. Ele teve um comportamento exemplar ao dizer: "Jurei
cumprir uma Constituição que estabelece o tempo de mandato, portanto, não
posso agir contra isso". Ricardo Alfonsín, da Argentina, também foi tentado
e se recusou. Acho que seria gravíssimo para a democracia de alta qualidade
que vem sendo construída no Brasil, democracia que nós, argentinos,
invejamos como padrão de funcionamento institucional, se o presidente Lula e
seus aliados caírem nessa tentação demoníaca. Como amigo do Brasil,
sinceramente espero que isso não aconteça.
Mas sabemos que a política também é feita de circunstâncias. Agora há uma
situação adversa, que é a candidata do presidente ter de lutar contra uma
doença grave. Dependendo da evolução de seu estado de saúde, poderá vir daí
uma ação coordenada de apoio à ideia do terceiro mandato.
A doença da candidata é uma coisa triste e motiva a solidariedade de todos.
Mas as circunstâncias não podem ser tão fortes para abalar os pilares
constitucionais. É impossível crer que um partido invejado pela esquerda de
todo o continente, como é o PT, não tenha outra pessoa que possa
representá-lo competentemente em uma eleição, caso a ministra Dilma Rousseff
não siga adiante na disputa.
O presidente Lula nega pretender ficar no poder. Mas temos o precedente do
presidente Fernando Henrique Cardoso, que construiu a aprovação do projeto
da reeleição, que o beneficiou.
Morei no Brasil e tive o privilégio de conhecer o presidente Fernando
Henrique, por quem tenho a maior admiração. Mas quando se aventou a
possibilidade de sua reeleição, discordei. Também tive o privilégio de
conhecer o presidente Lula, ainda que brevemente, e o respeito muito tanto
como pessoa quanto como presidente. Mas justamente pelo seu peso na
consolidação da democracia no Brasil e por ser personagem de destaque na
política latino-americana será essencial que se mantenha dentro das normas.
O presidente Lula tem o privilégio, e a obrigação, de se converter no
estandarte da realidade democrática que ajudou a construir. Como
latino-americano, espero que ele não ceda às tentações. Se ceder, será uma
terrível sedução sobre os Kirchners, e mesmo sobre Chávez, que poderão
pensar: "Se o Lula faz, por que eu não posso fazer?"
Hoje parece que o desempenho dos países é mais avaliado por padrões
econômico-financeiros do que por padrões políticos.
Acho que não. Países capazes de lidar com importantes crises econômicas são
aqueles governados com padrões normais de sucessão, de eleição, de
alternância de poder. Sempre haverá algo para justificar a violação das
normas quando o governante se sente tentado a ficar. Pode ser a
justificativa econômica, pode ser outra. O Brasil não é assim. E muitos
países têm sobrevivido a crises graves em plena normalidade. Não aceitam a
condição da exceção, pois isso não cabe numa democracia.
O que dizer da China, um país fora da normalidade democrática, com o qual o
mundo quer negociar?
Para mim é mais um exemplo de que um regime autoritário pode ser
bem-sucedido, mas por algum tempo. A imensa população e a economia pujante
dos chineses convidam o mundo a negociar com eles. Porém, o mundo aceita
conviver com isso por saber que a China não vai mudar de fora para dentro.
Daí a importância de frisarmos, sempre, os terríveis abusos dos direitos
humanos cometidos pelo regime chinês.
O avanço e o aperfeiçoamento das democracias têm futuro incerto?
Há democracias fracas, completamente delegativas. Há regimes autoritários
que fazem eleições para se disfarçar de democracias. Como há
intervencionistas achando que produzem democracia, mas agem de maneira
ignorante, até reproduzindo padrões imperialistas. A democracia é uma tarefa
que carrega desafios enormes. É produto autóctone, resultado de experiências
históricas e, uma vez que sua semente exista de fato, então sua evolução
poderá ser ajudada por fatores externos, que não se resumem a governos, mas
abrangem relações entre atores sociais.
Nos anos 60 e 70, a esquerda latino-americana tinha um discurso muito ácido
em relação aos Estados Unidos e sua hegemonia no continente. Como isso está
hoje?
O termo hegemonia é muito forte, indica um poder quase absoluto e uma
situação em que os outros atores ficam completamente subordinados. É um
conceito que ajuda pouco a entender as relações internacionais.
Poderíamos falar em liderança?
Prefiro influência. Claramente a influência dos EUA tem decrescido no mundo.
Mas, em termos políticos, ideológicos e militares, os EUA continuam tendo
enorme influência na América Latina. Porém o Brasil, pela confiança
crescente em sua democracia representativa, cujas bases foram construídas
nos governos FHC e Lula, surge também como o poder mais influente na América
do Sul. A visita de Hillary Clinton ao Brasil, nos próximos dias, é sinal
disso. Ela não vem para visitar o Chile ou a Argentina. É o Brasil.
O Chile deve continuar a transição democrática desenhada pela Concertación,
ou poderá haver uma volta da direita ao poder?
Acredito que a Concertación será vitoriosa nas eleições, mas o candidato da
direita, Sebastián Piñera, expressa um campo que tem se democratizado, com
um partido mais respeitável (Renovação Nacional). Algo semelhante ao Partido
Popular (PP) espanhol que, ao ganhar as eleições com José María Aznar, não
retomou o franquismo e fez um governo que conservou a democracia. No Chile,
não há tragédias a vista.
O presidente Barack Obama nomeou Arturo Valenzuela, um chileno, para
assessorá-lo em assuntos da América Latina. Significa alguma coisa?
Valenzuela não é chileno... Nasceu no Chile, mas foi naturalizado americano
aos 16 anos. Eu o conheço bem, é ótima pessoa, tem tido uma posição
consistente pró-América Latina e conhece os países da região, com excelentes
contatos no mundo político e acadêmico. Escolha acertada. O que não está
claro é o peso da América Latina entre as prioridades de Obama. Por
enquanto, ele tem dado sinais de que deseja pôr fim à administração Bush por
aqui também.
México e Cuba serão prioridades americanas?
México é tema importante e o governo americano sabe que Cuba tem grande
valor simbólico para a América Latina, pelas políticas sociais que
implantou, pelo enfrentamento a um bloqueio duríssimo. Mas a situação de
Cuba, do ponto de vista da repressão e do autoritarismo, é insustentável.
Não tenho a mais vaga ideia do que vai acontecer. Nem se a transição
democrática já começou por lá. Em termos de prioridades americanas, o que
posso afirmar é que o Brasil se firmou como uma delas. Por sua importância
na região e no mundo.
EXEMPLO
"Lula tem obrigação de se converter no estandarte da democracia que ajudou a
construir"
FIRMEZA
"As circunstâncias não podem ser tão fortes para abalar os pilares
constitucionais"
domingo, 17 de maio de 2009
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