Graças ao Doutorando de Direito da Puc-rio e Juiz Federal, a quem agradeço muito, responsável pelo Grupo de Risco e Direito da referida IES resgristado devidamente no Diretório do CNPq que se apresentará no nosso ´Forum do dia 20 temos esse artigo hoje publicado no Valor e será bloggado
Opinião Jurídica: A governança dos riscos no Supremo
Alceu Mauricio Jr. e José Ribas Vieira
27/05/2009
Um dos pontos de maior inquietação para os que tentam compreender a natureza do Estado regulatório contemporâneo é da governança dos riscos. A sociedade atual está encharcada pela ideia de riscos. Fala-se de riscos ecológicos, riscos à saúde humana, riscos à segurança física e nacional, riscos econômicos. Riscos são geralmente associados com percepções negativas sobre as possíveis consequências das atividades humanas e, portanto, como algo que deve ser evitado. Por outro lado, dificilmente é possível traçar estratégias em que não haja cenário de potencial risco. Se temos de conviver com os riscos, a grande questão da atualidade é determinar o que é aceitável.
O problema reside no controle das decisões sobre a geração dos riscos. Tomar decisões sobre riscos faz parte da nossa vida cotidiana, mas os conflitos surgem quando esses são impostos por terceiros, sejam estes as corporações, o Estado ou outros indivíduos. Em diversos casos, as decisões sobre riscos são tomadas por pequenos grupos, mas com efeitos a serem suportados por um grande número de pessoas. Como a crise econômica atual nos demonstra, esse processo pode ser potencializado em grande escala em virtude do fenômeno da globalização.
O Estado, mais do que nunca, continua a ser o protagonista desse processo, mas a natureza e a dinâmica dos riscos contemporâneos impõem uma mudança no tradicional paradigma regulatório. Em primeiro lugar, não se está diante de um simples embate entre indivíduos, mas de conflitos coletivos e, muitas vezes, globais. Segundo, os problemas ligados ao risco tendem a se desenvolver em um campo de complexidade técnica e incerteza que não raramente inviabilizam um consenso entre os especialistas. A ciência, que já teve o status de produtora de verdades, vê seu poder de legitimação reduzido pela crítica interna. Terceiro, a rápida evolução tecnológica impede que a lei formal dê conta de todo o processo de controle das decisões de risco. Poderes regulatórios são repassados a agências e corpos burocráticos que buscam a legitimação pela técnica, porém, pela falta de consenso científico, as questões se tornam novamente políticas. Quarto, o já mencionado caráter global dos riscos provoca a internacionalização das discussões, enfraquecendo a capacidade do Estado de tomar decisões absolutamente soberanas.
A crise paradigmática provocada pelos riscos contemporâneos conduz à transição da ideia de regulação estatal para a de governança. A governança dos riscos impõe pluralidade de atores, combinando a produção de normas estatais com a auto-regulação privada e maior participação dos afetados pelas políticas públicas. O Estado, apesar de manter um status privilegiado, reparte competências com entes não-governamentais, entidades de classe, partidos, sindicatos, associações. As decisões sobre risco são conformadas por órgãos políticos, pela participação popular direta e indireta, pela manifestação da comunidade científica e da sociedade civil, e pela intervenção de organismos internacionais. A governança dos riscos flexibiliza o dogma da divisão de poderes e competências. Isto ocorre tanto na dimensão horizontal - divisão de competências entres os entes da Federação - quanto na vertical, atribuindo um papel na formação de políticas públicas a órgãos que originalmente não foram pensados para essa função, como o Judiciário.
A participação do Supremo Tribunal Federal (STF) na governança dos riscos tem sido crescente e pode ser observada em pelo menos três áreas: na delimitação de competências regulatórias, na repartição dos custos e responsabilidades decorrentes dos riscos, e na própria definição dos riscos aceitáveis.
A delimitação de competências regulatórias do risco vem sendo trabalhada ao redor das controvérsias sobre os poderes da União, Estados e municípios para estabelecer normas limitadoras da atividade econômica. O foco das divergências está no artigo 24 da Constituição, que estabelece competências concorrentes para Estados, União e DF legislarem sobre direito econômico, produção e consumo, responsabilidade por dano ao meio ambiente e ao consumidor, dentre outros tópicos. A competência concorrente é estruturada pelo estabelecimento de normas gerais pela União, suplementadas pelas normas estaduais. Daí surgem dois grandes problemas. O primeiro é que a fronteira entre normas gerais e suplementares é tênue, gerando um campo fértil para conflitos de competência. O segundo reside no fato de que os principais tópicos da regulação do risco, como saúde, meio ambiente, e segurança (ou seguridade) social também estão listados nas competências comuns dos entes federados, previstas no art. 23 da Constituição.
Os casos envolvendo a produção e comercialização do amianto são um exemplo da atuação do Supremo na delimitação de competências regulatórias. As ações levadas à corte contestavam leis estaduais que vetaram a industrialização e a comercialização do amianto crisotila ou asbesto branco, atividades permitidas pela Lei Federal nº 9.055. Na ADI 2396, questionando lei do Mato Grosso do Sul, o Supremo evitou adentrar à questão dos debates científicos sobre o risco inerente à utilização do asbesto branco, atendo-se à questão das competências legislativas. Afirmou que não caberia àquela corte dar a última palavra a respeito das propriedades técnico-científicas do amianto e dos riscos de sua utilização para a saúde da população, e que o Estado excedeu a margem de competência concorrente que lhe é assegurada para legislar, considerando que a lei federal regulamentava exaustivamente a matéria. O mesmo entendimento foi utilizado na ADI 2656, referente à lei paulista do amianto. Também houve atuação do STF na delimitação de competências nas ações que questionaram leis estaduais restritivas da produção ou comercialização de organismos geneticamente modificados (OGM). Na ADI 3645, por exemplo, declarou-se a inconstitucionalidade de lei paranaense que estabeleceu exigências, procedimentos e penalidades relativos à rotulagem informativa de produtos transgênicos.
Há casos, porém, em que o STF vai além da simples definição de competências para definir os riscos que são constitucionalmente aceitáveis. Os casos mais recentes do amianto têm seguido essa linha. Nas ADIs 3356 e 3937, o tribunal desprendeu-se da questão meramente formal para analisar se a Lei Federal nº 9.055 promove suficientemente a proteção dos valores garantidos nos artigos. 196 e 225 da Constituição. A mesma questão foi colocada na ADI 4066 e, recentemente, na ADPF 109, na qual foi negada liminar para suspender lei do Município de São Paulo. Podemos ainda citar a ADI 3510, que abordou os riscos da pesquisa com células-tronco embrionárias, e a ADPF 101, em que a Ministra Cármen Lúcia considerou que a importação de pneus usados impõe risco inaceitável à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Os riscos, mesmo na acepção clássica e civilista, sempre estiveram ligados ao instituto da responsabilidade. No paradigma contemporâneo, e frente aos riscos tecnológicos, surgem novas e complexas interconexões entre responsabilidade e os princípios da precaução, do poluidor-pagador, da proporcionalidade e da solidariedade. O STF também atua na governança dos riscos através da distribuição da responsabilidade, seja quanto ao custo de prevenção e reparação, seja na definição do ônus probatório. Na repartição dos custos, destacam-se a ADI 3378, questionando a compensação cobrada por projetos de significativo impacto ambiental, o RE 416.601, em que se declarou a legitimidade da Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental, e o RE 343446, sobre Seguro de Acidente do Trabalho. Quanto à distribuição do ônus probatório, um interessante exemplo é a ACO 876, tratando dos riscos relativos à transposição do Rio São Francisco.
Podemos concluir provisoriamente que a atuação do STF em diversas dimensões ligadas dos riscos é uma consequência da própria ideia de governança e da constitucionalização de valores ligados ao meio ambiente, à saúde e à segurança. Isto, porém, não afasta algumas questões de suma importância. Quando está em jogo a distribuição de riscos, os julgadores são obrigados a olhar os fatos não somente sob uma ótica retrospectiva, mas também prospectiva, voltada para o futuro e para as possíveis consequências da decisão. Os problemas surgem na questão da legitimação, pois se enfraquece a tese de que os juízes estão apenas interpretando a lei ou a constituição. Pior ainda, como sustentar a simples aplicação do direito legislado - ou mesmo dos princípios fundamentais do direito - quando não há certeza ou possibilidade de determinação científica dos eventos futuros?
Alceu Mauricio Jr. é juiz Federal e doutorando em Direito da PUC-Rio, José Ribas Vieira é professor das faculdades de direito da UFRJ, do IBMEC/RJ e da PUC-Rio
Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações
terça-feira, 26 de maio de 2009
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