terça-feira, 19 de maio de 2009

Lei de Imprensa e o vazio legal

Folha de São Paulo 19 de maio de 2009

Fim da Lei de Imprensa joga milhares de ações no vácuo
Especialistas discutem se processos devem ser extintos ou julgados a partir de outras leis

Para Marcelo Nobre, do CNJ, processos concluídos não podem voltar à discussão, mas os demais são passíveis de questionamento judicial



Com a revogação total da Lei de Imprensa, discute-se hoje o destino de milhares de ações contra jornalistas, espalhadas por tribunais de todo o país.
Enquanto uns pregam a extinção de todos os processos, outros defendem a aplicação de dispositivos correlatos existentes em outras leis e códigos.
Especialistas ouvidos pela Folha concordam que a decisão dos ministros do Supremo Tribunal Federal de abolir, por 7 votos a 4, a Lei de Imprensa (criada pelo regime militar, em 1967), deixou um vácuo jurídico. Não está claro como devem ser conduzidos pelos juízes os casos iniciados na antiga lei.
Como o STF apontou a incompatibilidade entre a lei especial, de 1967, e a Carta, de 1988, criou-se uma dúvida sobre a legalidade de ações sentenciadas nos últimos 21 anos.
"Com a decisão do STF, não existe mais a Lei de Imprensa e, portanto, as ações baseadas nas antigas regras devem ser extintas. A simples recapitulação da lei com base em outras leis gerais é ruim. A Lei de Imprensa tinha regulamentações e prazos muito específicos. Em razão de o Supremo não ter modulado os efeitos de sua decisão, não há alternativas e [a ação] deve ser extinta", diz Marcelo Nobre, conselheiro do Conselho Nacional de Justiça.
Processos concluídos, mesmo após a promulgação da Constituição, não podem voltar à discussão, diz Nobre. Mas os que estão em andamento são passíveis de questionamentos na Justiça. Foi o que aconteceu recentemente em São Paulo. Uma emissora de TV foi condenada a divulgar o direito de resposta de um promotor. A TV recorreu dizendo que não cabe o cumprimento da ordem, já que a Lei de Imprensa foi abolida. O caso ainda não foi julgado.

Cautela
Para o advogado Manuel Alceu Affonso Ferreira, que representa, entre outros, o jornal "O Estado de S. Paulo", a tendência é a de os juízes agirem com cautela, suspendendo o julgamento de uma ação sem extingui-la de pronto, até uma definição mais clara do STF.
Apesar de a Corte já ter julgado o caso, o PDT, por meio do deputado federal Miro Teixeira (PDT-RJ), que iniciou o debate, pode apresentar recurso pedindo mais detalhes aos ministros.
"O fim da lei especial criou um vácuo jurídico muito grande, a ponto de hoje ninguém saber direito como os processos serão julgados, se com base em um paralelismo com as leis existentes ou com o arquivamento", diz Manuel Alceu. Para ele, outras decisões de ministros do STF têm demonstrado que, em casos em que existe uma correlação com outras leis, estas deverão ser aplicadas.
Exemplo: os crimes contra a honra (difamação, injúria e calúnia) extintos na Lei de Imprensa também existem no Código Penal, mas com diferentes penas e prazos de prescrição.
"A diferença de tratamento é um problema. Na Lei de Imprensa havia a prova da verdade [que mostra não haver crime se o fato noticiado é real], se o suposto ofendido fosse funcionário público ou autorizasse a produção da prova. No código só existe para a autoridade pública", afirma Manuel Alceu.

Direito de resposta
Situação mais complexa é a questão do direito de resposta concedido a quem se sinta injustamente atingido pelo noticiário. No lugar das detalhadas regras da Lei de Imprensa, há agora uma única menção ao instrumento na Constituição.
"O direito de resposta, que era muito utilizado, não existe no direito comum. A citação na Constituição é muito genérica. Não há mais uma regulamentação específica que fale sobre o cabimento ou como deve ser aplicada", diz o advogado Lourival J. Santos, diretor jurídico da Aner (Associação Nacional dos Editores de Revistas).
Esse foi o ponto mais debatido pelo presidente do STF, Gilmar Mendes, na sessão de 31 de abril: ele defendeu a manutenção do direito de resposta, dizendo que os "problemas serão enormes e variados" para os juízes de primeiro grau por falta de regras claras. Mas a maioria da Corte não concordou.
A decisão do STF tem estimulado uma discussão sobre o fim dos crimes de imprensa ou sua redefinição legal. Em uma queixa-crime que tramita em Matão (SP), um radialista, processado por injúria e difamação pela Lei de Imprensa, pediu a extinção do caso alegando que a ofensa deixou de ser crime com o fim da lei. O juiz suspendeu temporariamente o julgamento, na expectativa de uma definição mais clara da lei.
Para o advogado Roberto Delmanto Júnior, a alegação é descabida. O criminalista sustenta que a revogação da Lei de Imprensa pelo Supremo não muda o que já era definido como crime no Código Penal.
"Os crimes não foram criados pela Lei de Imprensa. Eles já existiam com o Código Penal, desde 1940. Com o fim da lei especial, esses fatos simplesmente voltam a ser julgados pelo código", afirma Delmanto Júnior.
O advogado José Roberto Leal compartilha da mesma opinião. "Quando foi criada, a Lei de Imprensa revogou a lei normal. Agora, com a revogação da lei especial, volta a prevalecer a lei normal. O ordenamento jurídico prevê isso."
Para Taís Gasparian, advogada da Folha, somente a longo prazo serão sentidas as mudanças. Na área cível, diz ela, a maioria dos processos se baseia na Lei de Imprensa, na Constituição e no Código Civil. "Não houve nenhuma alteração até agora. Contudo, acho cedo para termos essa avaliação, pois a decisão do STF é muito recente, e o Judiciário, lento."
Luiz de Camargo Aranha Neto, advogado das Organizações Globo, afirma que a revogação da lei vai atingir mais os processos criminais. "Nas ações de indenização sempre são citadas a Constituição ou o Código Civil, o que não justificaria a suspensão desses casos."

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