quinta-feira, 19 de junho de 2008

Qual é o papel do STF - legislador?

Fortalecendo o espírito desse blog no sentido de consolidar um espaço público de discussão sobre o papel do STF ou numa visão kelseniana (legislador negativo) ou de uma postura como de seu Presidente Ministro Gilmar Ferreira Mendes de ter uma "legitimidade argumentativa" (justificando a substituição do processo parlamentar como protagonista na elaboração de leis), segue o artigo de Leonardo de Paola, Professor da Estação-Ibmec, sob o título "Juízes ou Legisladores" publicado no jornal O Valor Econômico na sua edição de 18 de junho de 2008. O articulista defende, citando autores da Ciência Política brasileira postados nesse blog, a postura mais para o STF de legislador negativo.



Sejamos francos: a separação de poderes, um dos pilares do Estado de Direito, nunca valeu grande coisa no Brasil. Artefato estrangeiro, mal digerido e mal assimilado. Primeiro, o Executivo veio ocupando o espaço de um Legislativo inerte, paralisado por sucessivos escândalos, incapaz de processar e dar solução a demandas sociais e ao mesmo tempo refém de interesses especiais.


Agora, o Judiciário segue a mesma trilha. Tivemos, em 2007, a polêmica decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em torno da fidelidade partidária. Não que a exigência de fidelidade seja má, bem ao contrário, mas, e esta é a questão, caberia ao Judiciário, sem expressa previsão legal, estabelecer a sanção de perda do cargo para o infiel, e, pior, com base em critérios vagos e frouxos, os quais, na prática, lhe outorgam um arbítrio que faz recordar a "degola" da República Velha? Mais recentemente, o presidente do STF, que aliás é a maior autoridade doutrinária brasileira em matéria de controle da constitucionalidade, vem afirmar que a Corte é a Casa do Povo e que cabe a ela suprir as deficiências do Legislativo (Valor, 09/06/08). Isso na esteira do caso das células-tronco, em que, por muito pouco (6x5), o próprio STF não fez "emendas" e "melhorias" à lei que autoriza as pesquisas.


O Judiciário vem legislando, sim, ainda que raramente o reconheça. A retórica das Cortes dissimula esse fato com a invocação de princípios, ideais e valores inscritos na Constituição ou no "espírito" jurídico da atualidade. Mas o preenchimento de conteúdo desses princípios, ideais e valores e a extração de suas conseqüências e efeitos - o que, no fundo, equivale à criação de regras jurídicas -, é, amiúde, pura construção judicial. Aliás, em outra entrevista ao Valor (18/10/07), o ministro Gilmar Ferreira Mendes reconheceu a atuação regulatória do STF nas decisões que denominou, eufemisticamente, de "perfil aditivo".


As razões para que isso esteja acontecendo e ganhando maior dimensão são múltiplas e não podem ser reduzidas a um simples voluntarismo dos juízes (ainda que este também ocorra, em maior ou menor medida). Há o desencanto com o velho positivismo, com a idéia de que o juiz é autômato jurídico, a mera boca que pronuncia as palavras da lei - mas tampouco é o oráculo da Justiça. Há a própria Constituição de 1988, abundante não apenas em regras, mas também em princípios e em garantias para torná-los efetivos. Há a legítima aspiração por maior justiça social, pela redução das desigualdades extremas, miasma que envenena a sociedade brasileira desde seu nascedouro e que tolhe suas potencialidades. Mas há, sobretudo, a desfuncionalidade do Poder Legislativo, seu desprestígio e inoperância, que só fazem crescer. Lutas partidárias, CPIs intermináveis e sucessivas, escândalos, tudo isso e muito mais tem contribuído para a paralisia legiferante do Congresso. Ora, o vácuo funcional deixado por um Poder é ocupado pelos demais: fraqueza de uns, força de outros.



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O ativismo judicial quer-se formulador de políticas públicas, mas desprovido da legitimidade outorgada apenas pelo voto popular
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O juízo de valor sobre esse avanço do Judiciário é, e não poderia deixar de ser, ambivalente. De um lado, seria um retrocesso histórico-involutivo apregoar-se a volta ao positivismo modelo século XIX. A Carta de 1988 atribuiu direitos sociais aos cidadãos e, correlatamente, impôs deveres ao Estado, que podem e devem ser implementados pelo Judiciário quando os demais Poderes se omitem. É o caso, por exemplo, do direito à saúde, efetivado pelos Tribunais mediante ordens para fornecimento de remédios e adoção de procedimentos clínicos. Também nesse sentido, a revitalização do mandado de injunção pelo STF deve ser saudada. Porém, de outro, tomando gosto pela coisa, multiplicam-se os magistrados "decisionistas", "justiceiros", "engajados", "modernos", que desprezam os textos legais, os contratos e a própria jurisprudência, para, no lugar deles, impor seu "sentimento do justo" (o único "critério" ao qual se sentem efetivamente amarrados). E, sob os holofotes da imprensa, muitos tornam-se "celebridades", prontos a dar sugestões sobre qualquer assunto e a antecipar seu posicionamento acerca de matérias que possivelmente irão julgar no futuro.


O ativismo judicial, outro nome para esse fenômeno, quer-se formulador de políticas públicas, mas desprovido não só da legitimidade para tanto, como também dos instrumentos necessários. A legitimidade fundamental em uma sociedade democrática é a outorgada pelo voto popular. Não se pode admitir que essa legitimidade seja posta em segundo plano com base em idéias importadas e fora do lugar do tipo "representação argumentativa" ou "legitimidade performática". Aliás, não deixa de ser irônico que o próprio STF - com toda razão - tenha começado a restringir o abuso na edição de Medidas Provisórias, justamente por ver nisso uma usurpação de poderes legislativos pelo Executivo, mas, ele próprio, STF, venha fazendo o mesmo, com outros meios.


Haveria remédios jurídicos efetivos contra os excessos? Para as decisões das instâncias inferiores e intermediárias, existe o sistema de recursos, que propicia o controle de sua correção pelos Tribunais Superiores. Que fazer, porém, se as decisões partem do STF? Serão os ministros dessa Corte os reis-filósofos sonhados por Platão, aqueles entre os mortais a quem foi dado ver o mundo das idéias? Há quem sugira um novo mecanismo de controle para as decisões que extrapolem a competência do STF, invadindo o campo legislativo (Wanderley Guilherme dos Santos, Valor, 30/11/07). Mas e quem controlaria o novo controlador? Se os ministros do STF não respondem perante ninguém - eis a dura verdade - restam a autocontenção e a crítica contundente da sociedade como os únicos remédios aos excessos.


E, por fim, um conselho aos magistrados decisionistas: não se escondam sob a toga, façam jogo político aberto e limpo, ou seja, entrem claramente na arena política, por meio de seu veículo régio, que são as eleições. Nessa linha, exemplo a ser seguido é o do ex-juiz federal e hoje deputado federal Flávio Dino. Enfim, se querem ter a desenvoltura de políticos, abandonem a blindagem judicial.

2 comentários:

Tiago Bambu disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Tiago Bambu disse...

É notório que passamos por um momento de transformação no quadro republicano de nosso país. A clássica tripartição de Poder, se verdadeiramente importada, nesse momento passa por mudanças que visam a sua adaptação à realidade social interna. Diante dessa possível mudança de paradigma, magistrados e legisladores perdem um pouco os limites de sua atuação, e acabam gerando um debate sobre a sociedade.
No caso em análise, alguns magistrados tentam adequar sua atuação à realidade na qual estão inseridos, de um país marcado pela desigualdade social e miséria. Eles tentam realizar o que se chama de justiça com as próprias mãos. Eles se valem das próprias razões ou justiça para preencher supostos vácuos deixados pelo Legislativo. Em um primeiro momento sua atuação nos parece honrosa e benéfica. No entanto, a atuação dos magistrados é dada expressamente pela Carta Constitucional de 1988 e, mormente, por princípios de teoria constitucional. Não cabe aos membros do Poder Judiciário "ocupar espaços" de outros poderes, pelo menos pela ordem constitucional vigente. É evidente que devemos parabenizar a iniciativa daqueles magistrados que coadunam sua atuação à realidade social na qual estão inseridos; é verdade que nossa ordem jurídica é ultrapassada e injusta; todavia, os membros do Legislativo retiram sua legitimidade do próprio povo, não pode uma iniciativa individual burlar esta realidade.
A ferramenta que todos possuem é promover um debate na sociedade, até pelo próprio espírito da política, da democracia e da República.
É um importante momento político o que atravessamos agora. Muito oportuno para a realização de debates sobre o tema em questão.
Concluo confirmando a posição de que qualquer atuação legislativa promovida por membros do Poder Judiciário deve ser considerada com reservas. Mas parabenizo a atuação social engajada de muitos magistrados, que não ficam paralizados frente à uma ordem jurídica injusta e ultrapassada.

20 de Junho de 2008 13:05