domingo, 8 de junho de 2008

A Decisão Vital

Para a nossa reflexão, estamos circulando o texto de José A. Giannotti comentado na postagem abaixo. A circulação do texto tornou-se possível graças ao trabalho de pesquisa de Daniela Pessanha integrante do grupo "Ativismo Judicial" (ativismojudicial@yahoogrupos.com.br) do Ibmec-rj.

Folha de São Paulo 08-06-08

Decisão vital
Julgamento sobre uso de células-tronco pelo Supremo Tribunal Federal embaralha as esferas jurídica e política
Lula Marques - 29.mai.08/Folha Imagem
Deficientes comemoram a aprovação do uso de células-tronco em pesquisas no país, em sessão no STF, em Brasília
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI COLUNISTA DA FOLHA
Não há novidade nenhuma no fato de a Suprema Corte terminar legislando. Essa é uma necessidade inscrita no corpo da lei. Em direito, como em tantas outras disciplinas, nunca a regra é completamente determinada a tal ponto que o caso apenas se ajustaria a ela mecanicamente. Julgar se uma ação é legal ou ilegal encontra um espaço aberto para a decisão do juiz. O ato jurídico como tal não consiste simplesmente em peneirar fatos para verificar quais aqueles que ficam presos na malha. O juiz também amolda a transgressão segundo a tradição dos tribunais e os ditames de sua própria consciência. Não é estranhável, pois, que, ao ser incitado a declarar inconstitucional o artigo nº 5 da Lei de Biossegurança de 2005, justamente aquele que trata da pesquisa com células-tronco embrionárias, cinco ministros tentaram legislar, isto é, completar o sentido do artigo atribuindo-lhe um conteúdo que não estava implícito nele. Esse ponto de vista não prevaleceu, seis deles simplesmente votaram pela negativa -e uma negação simples não determina- , assegurando sem mais a constitucionalidade do artigo. Mas não é significativa a diferença de um voto? É no Supremo Tribunal Federal que o sistema jurídico se cruza com o político. Se até mesmo uma norma constitucional comporta indeterminações, para que ela possa ser aplicada é preciso tomar certas decisões que configurem seu sentido. Isso é feito principalmente tendo a política do país como pano de fundo, o tribunal quase sempre resolvendo um impasse que o jogo político não pode resolver. É de esperar ainda que o tribunal legisle muito mais quando as instituições do Poder Legislativo se travam, se atolam em picuinhas e se esgotam em investigações policiais inconclusas, como está acontecendo atualmente. Floreios bizantinosTendo a oportunidade de discutir e decidir sobre uma questão de alta relevância e de grande apelo midiático, o tribunal se esbaldou. Foram necessários três dias para que os ministros lessem seus longos discursos, recheados de direito, filosofia, teologia, ciência etc., as teses carregadas de floreios bizantinos. (Dizem que, no momento em que os turcos tomaram Constantinopla (Bizâncio), em 1453, os intelectuais da cidade disputavam sobre o sexo dos anjos e se perguntavam quantos anjos poderiam se apoiar na ponta de uma agulha.) Muitos ministros não deixaram por menos, só que, em vez de anjos, falaram de células, da fertilização e, sobretudo, da Vida (com V bem maiúsculo), como se uma decisão jurídica fosse capaz de elucidar todos os mistérios da existência. Parece-me evidente que esse palavrório era jogo para a platéia. Desde que as sessões do STF passaram a ser televisionadas, alguns ministros viraram pop stars, aproveitando ainda do jogo de cena para transmitir seus recados. A discussão sobre a vida tem servido de pano de fundo para que se decida que tipo de controle social queremos ter sobre o ciclo vital humano, diante das enormes possibilidades de manipulação abertas pela biologia contemporânea. E todos sabemos que, por trás desse novo panorama, reside a velha questão do aborto. Quem admite matar uma célula fecundada não terminará aceitando a morte de um feto de três meses? Quase todos os ministros dialogaram principalmente com a comunidade científica e com a Igreja Católica, mas poucos queriam se indispor com elas. E, para que a questão de fundo -como controlar socialmente a vida?- não aparecesse na sua dureza, valeram os ornamentos bizantinos. Era impossível, entretanto, evitar a questão do controle e, sobretudo, que tipo de controle devemos exercer sobre os excessos dos cientistas e a ganância dos laboratórios. Há anos que os cientistas se preocupam com esse problema, e não é à toa que se tem ampliado a discussão sobre as relações entre ética e ciência. No entanto, se quanto mais se discutem esses problemas, maiores são as divergências, considerando ainda que a ciência não pode parar nem deixar espaço para cientistas malucos, uma solução prática precisou ser inventada e implementada. Formou-se assim uma enorme rede de comitês de bioética, todos inscritos no Ministério da Saúde. Ora, a característica notável desses comitês é que não dão margem para discussões acadêmicas, mas firmam decisões que resultam de um acordo entre seus membros, sendo eles representantes das mais diversas correntes de pensamento. A decisão é coletiva sem que necessariamente o caso seja apresentado diante de uma regra definida. Em vez da vontade geral, funciona a boa vontade em assumir riscos e garantir o máximo de transparência nas decisões tomadas. Deixando de lado o palavrório dos três dias de discussão, logo se percebe que o STF se dividiu em dois partidos. Códigos de éticaDe um lado, aqueles que simplesmente declararam a constitucionalidade do artigo nº 5, mantendo-se assim no estrito campo do direito formal, mas deixando transparecer sua boa vontade em relação ao controle já exercido pelos cientistas. De outro, colocaram-se aqueles que tentavam arrochar esse controle, subordinando-o a instituições puramente burocráticas. Aventou-se mesmo um controle centralizado, cada pesquisador sendo obrigado a obter nele uma licença, o que obviamente implicava admitir a pesquisa em princípio para inviabilizá-la no fato. O resultado foi muito interessante. Ao derrotar os ministros legisladores, os vencedores terminaram por reconhecer a validade dos comitês de ética, por conseguinte de uma prática ética que se situa além das disputas teóricas. O que vale para esses comitês é a decisão institucionalizada, que, se por certo é influenciada pela disputa sobre os valores éticos, vai além deles na medida em que transpassa sua irremediável diversidade. Notável é que também na administração da Justiça aparecem momentos decisionistas, como o tribunal de júri. Este supõe que jurados chegam à "verdade", embora os advogados nem sempre ajam moralmente. Mas a prática do comitê de ética não é uma maneira de revelar que os códigos de ética contemporâneos valem menos pelo que eles codificam e muito mais pelo tipo de sociabilidade moral que produzem? Não é o fim da moral determinante?
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito da USP e coordenador da área de filosofia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais! .

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