segunda-feira, 16 de junho de 2008

A Ciência Política brasileira rides again sobre o ativismo judicial

O Prof. Farlei Martins Riccio envia para a postagem essa importante matéria do jornal O Valor Econômico do dia 16 de junho de 2008 sob o título "Constutivismo jurídico e substrato social" de autoria do cientista político Fábio Wanderley. Estamos retomando o debate postado em outubro de 2007 a respeito sobre a visão da Ciência Politica a respeito do ativismo judicial por parte do Supremo Tribunal Federal.


Recentemente, temos tido o TSE e o próprio STF, em várias decisões e
em manifestações dos ministros, a optar expressamente por um
"construtivismo" que redunda em legislar, em vez de limitar-se a aplicar a
lei segundo as intenções presumidas do legislador. "O Fim do Liberalismo",
de Theodore J. Lowi, um clássico da ciência política moderna aparecido em
1969, permite explorar certas ambiguidades aí envolvidas, além de mostrar-se
relevante para as agências reguladoras como tema também saliente de debate
entre nós.


Lowi toma como objeto de crítica cerrada o que designa como
"liberalismo de grupos de interesse" ("interest-group liberalism"), que
marcaria, nos Estados Unidos do pós-guerra e especialmente dos anos 1960,
séria crise da autoridade pública. Esse liberalismo negativo é ligado por
ele ao "paradigma pluralista", em que, na crítica do autor, se santificariam
os grupos de interesse e se pretenderia ver avanços da democracia no
acoplamento do aumento do ativismo governamental em geral com a
intensificação do papel dos grupos organizados de interesse em condicionar a
atuação das agências especializadas do governo em qualquer área de
problemas. Tal papel, que alguns, como John Kenneth Galbraith, pretenderam
descrever em termos de "competição" entre poderes que se equilibram (grandes
associações de trabalhadores e empresários, de compradores e vendedores),
resultaria na verdade em acomodação, oligopólio e corporativismo - ou seja,
nos traços que, mais tarde, os estudiosos do "neocorporativismo" viriam a
opor, curiosamente, à idéia de pluralismo.



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Ativismo estatal, leis e fluidez
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Seja como for, a crise da autoridade pública proviria do entendimento
prevalecente a respeito da ação que cumpriria ao Estado e às políticas
públicas nesse quadro. Galbraith é citado como propondo (em "American
Capitalism: The Concept of Countervailing Power") que "sustentar o sistema
de poderes em contrapeso se tornou modernamente talvez a principal função,
em tempos de paz, do governo federal". A essa perspectiva Lowi contrapõe a
visão clássica de James Madison, que, tomando a idéia de grupo em termos de
"facção" e contrapondo-a "aos interesses permanentes e agregados da
comunidade", vê "a principal tarefa da atividade legislativa moderna" na
"regulação desses vários interesses que interferem uns com os outros". E um
desdobramento crucial coroa o diagnóstico de Lowi: o de que a atuação do
próprio Judiciário estadunidense, em especial da Suprema Corte, viria não só
a compor o quadro de intensificado ativismo geral do aparelho do Estado, mas
a fazê-lo através de uma atividade "construtiva" e legislativa peculiar.
Nela, a Suprema Corte se empenharia sempre em encontrar interpretações
aceitáveis para delegações de poder por parte do Congresso a agências
diversas, delegações estas que, como parte da dinâmica e da filosofia
"pluralista", se fariam de maneira imprópria pela amplitude, redundando na
abdicação do Legislativo de que tanto se tem falado entre nós e acabando por
convidar as agências que recebem as delegações (incluídas expressamente as
agências reguladoras) a simplesmente fazerem política. Na fórmula sintética
de alguém mais citado por Lowi (Kenneth Davis), é como se o Congresso
dissesse: "Eis o problema; cuide dele".


Lowi parte daí para propor o que chama de "democracia jurídica", com a
"restauração do império da lei". A proposta salienta, em particular, o fato
de que a atuação "pluralista" da Suprema Corte se dava contra jurisprudência
firmada em decisão de 1935 e jamais revertida (o "caso Schechter"), na qual
o tribunal se opunha ao que via como exagero de delegação congressual ao
próprio presidente da República. Donde a eventual invalidação total pela
Suprema Corte de uma delegação congressual poder ser lida por Lowi como
equivalendo a "uma ordem da Corte para que o Congresso faça o trabalho que
lhe compete".


Claro, há mil questões envolvidas aqui. Abrindo mão das complicações
quanto a pluralismo ou corporativismo, por exemplo, cabe lembrar que a
decisão quanto ao caso Schechter foi o ponto de partida dos esforços de
Roosevelt para alterar a composição da Suprema Corte - e que as análises
recentes (como em P. Pierson e T. Skocpol, "The Transformation of American
Politics", de 2007) apontam agora os "perigos" envolvidos na gradual
recomposição conservadora da mesma Suprema Corte no período de hegemonia dos
republicanos. Parte importante do problema consiste, no caso dos Estados
Unidos, na politização e partidarização da Justiça, atribuível a certa
"ossificação" institucional do sistema partidário, que ficou particularmente
clara na eleição de 2000 (quando, contra a impressão inicial de alguns, foi
possível antecipar com precisão o teor das decisões sobre o problema criado
na disputa presidencial de acordo com o predomínio das nomeações de um ou de
outro partido nas diversas instâncias judiciárias que se viram envolvidas).


Sobretudo pela própria fraqueza dos partidos, não parece haver razão
para que se fale, no caso brasileiro, de partidarização da Justiça. No
entanto, essa fraqueza é ela mesma uma das razões da inconsistência da
atividade legislativa do Congresso brasileiro. Por seu turno, nosso
Judiciário em princípio apartidário tem deixado ver a ligação de sua
disposição "construtivista" com a abertura e a sensibilidade à "opinião
pública". Ora, esta é marcada por sua própria fluidez e inconsistência,
cujas razões são em algum grau, em nosso caso, afins às da fraqueza dos
partidos. Nessas condições, cabe esperar que nossa Justiça exprima e defenda
valores nobres, aos quais não há por que presumir que a opinião pública
seja, como tal, contrária. Mas provavelmente faltam garantias mais seguras
contra a simples confusão legal que um "construtivismo" a um tempo aberto,
carente de lastro orgânico no substrato social e pouco propenso a uma
sociologia realista poderia acarretar.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da
Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

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