Voltando à análise dos votos na ADI 3510, merece destaque a leitura do princípio da dignidade humana feita pela Min. Cármen Lúcia. Também é interessante destacar certos aportes à compreensão de categorias ligadas à teoria do risco (solidariedade inter geracional, precaução e regulação das pesquisas científicas).
Um dos principais argumentos dos que pediam a declaração de inconstitucionalidade da pesquisa com células-tronco embrionárias era a violação do princípio da dignidade humana na dimensão que o liga ao direito à vida. Com uma lógica argumentativa muito bem estruturada, a Min. Cármen Lúcia afastou essa alegação:
“Não há violação do direito à vida na garantia da pesquisa com células-tronco embrionárias, menos ainda porque o cuidado legislativo deixou ao pesquisador e, quando vier a ser o caso, ao cientista ou ao médico responsável pelo tratamento com o que da pesquisa advier, a exclusiva utilização de células-tronco embrionárias inviáveis ou congeladas há mais de três anos. Se elas não se dão a viver, porque não serão objeto de implantação no útero materno, ou por inviáveis ou por terem sido congeladas além do tempo previsto na norma legal, não há que se falar nem em vida, nem em direito que pudesse ser violado.”
Mais do que a ausência de violação do direito à vida, a Min. Cármen Lúcia sustentou que a pesquisa com células-tronco promove a dignidade humana, seja por valorizar um embrião que teria o lixo por destino, seja por promover a vida das pessoas potencialmente beneficiárias da pesquisa.
“A utilização de células-tronco embrionárias para pesquisa e, após o seu resultado consolidado, o seu aproveitamento em tratamentos voltados à recuperação da saúde não agridem a dignidade humana, constitucionalmente assegurada. Antes, valoriza-a. O grão tem de morrer para germinar. Se a célula tronco embrionária, nas condições previstas nas normas agora analisadas, não vierem a ser implantadas no útero de uma mulher, serão elas descartadas. Dito de forma direta e objetiva, e ainda
que certamente mais dura, o seu destino seria o lixo. Estaríamos não apenas criando um lixo genético, como, o que é igualmente gravíssimo, estaríamos negando àqueles embriões a possibilidade de se lhes garantir, hoje, pela pesquisa, o aproveitamento para a dignidade da vida.”“A utilização das células-tronco embrionárias, não aproveitadas no procedimento de implantação, travada assim para a sua potencial transformação em vida futura de alguém, poderá ter o destino da indignidade, que é a sua remessa ao lixo. E o mais nobre e o mais grave: lixo de substância humana. O seu aproveitamento, guardado o respeito às condições afirmadas na legislação enfocada, permite a dignificação da célula-tronco embrionária, que não será então descartada, antes, será transformada em matéria dada à vida, se bem que não ao viver.”
“Há que se cuidar de sempre e sempre respeitar e resguardar o princípio da dignidade da pessoa humana. Nem se cogita do contrário em qualquer situação. Mas há que se compreender esse princípio para o fim de se esclarecer se estaria ele sendo agravado na espécie em pauta e como aplicá-lo em face das múltiplas possibilidades abertas, por exemplo, pela liberdade humana, que com as suas pesquisas científicas podem conduzir à melhoria de sua condição, o que é uma forma de dignificação da vida.”
Para os que acompanham a teoria do risco, observem que a Min. Cármen Lúcia faz uma diferente aproximação aos princípios da solidariedade geracional e da precaução. Sobre a solidariedade geracional, anoto o seguinte excerto:
“O art. 225, § 1º, inc. II, da Constituição brasileira estabelece o princípio da solidariedade entre as gerações, como forma de garantir a dignidade da existência humana, quer dizer, não apenas a dignidade do vivente (agora), mas a dignidade do viver e a possibilidade de tal condição perseverar para quem vier depois.”
Quanto ao princípio da precaução, nos parece que a Min. Cármen Lúcia não o adotou como postulado para tratar das pesquisas científicas ou, pelo menos, em relação às pesquisas com células-tronco. Para a Ministra, é melhor correr o risco da pesquisa, pois a não-pesquisa representaria a ausência de resultados:
“A pesquisa com células-tronco embrionárias não é certeza de resultados terapêuticos promissores. Mas a não pesquisa é a certeza da ausência de resultados, pois sem a tentativa não há a conquista no campo científico”
Nessa mesma linha, defende-se o princípio da liberdade da pesquisa científica:
“Daí também porque o saber científico que somente poderá atingir resultados concretos em benefício da espécie humana se persistir em sua labuta, de maneira livre e responsável, compõe o complexo de dados que tornam efetiva a dignificação do viver e, portanto, a sua garantia de continuidade não agride, tal como posto nas normas em foco, antes permite que se venha a realizar o princípio constitucional”
Ao invés da precaução, a Min. Cármen Lúcia adota, para a regulação dos riscos com a pesquisa, os princípios da necessidade, da integridade do patrimônio genético, da avaliação prévia dos potenciais e benefícios, e o princípio do conhecimento informado:
“Daí a importância em se afirmar que as pesquisas e o tratamento devem pautar-se pelos princípios da necessidade, segundo o qual deve haver comprovação real de que o experimento científico a ser realizado no material genético humano é necessário para o conhecimento, a saúde e a qualidade de vidas humanas; da integridade do patrimônio genético, proibindo-se a manipulação em genes humanos voltada para mudanças na composição do material genético com o fim de melhorar determinadas características fenotípicas; da avaliação prévia dos potenciais e benefícios a serem alcançados; e, ainda, o princípio do conhecimento informado, que impõe a garantia de manifestação da vontade, livre e espontânea, das pessoas envolvidas, com a divulgação de informações precisas sobre as causas, efeitos e possíveis conseqüências da intervenção científica.”
No voto, não se descarta a necessidade de controle e fiscalização das pesquisas, mas a Min. Cármen Lúcia enfatiza a importância de respeitar-se a margem de cognição empírica e normativa do legislador:
“Ao legislador infraconstitucional conferiu-se a competência para estabelecer o cuidado com as pesquisas, incluídas aquelas que decorressem da remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas. E é nessas que se incluem os embriões, como matrizes de que poderia decorrer a vida, mas que para essa não segue pela sua não implantação no útero de uma mulher, conforme antes enfatizado.”
“Mas é atenta a tudo isso que legislação brasileira - em especial a de que agora se cuida - estabelece a necessidade de controle e fiscalização das pesquisas e procedimentos efetivados com células-tronco - adultas ou embrionárias - por órgãos e instituições responsáveis pela avaliação do cumprimento dos princípios éticos (art. 5º, § 3º, da Lei n. 11.105). É bem certo que esse dispositivo não deixa suficientemente claro e afirmado o rigor do controle determinado naquelas normas para a constituição e o desempenho das atividades destes comitês de ética e pesquisa. Porém, não parece caber aqui uma declaração de inconstitucionalidade. Talvez se pudesse afirmar declaração de déficit de constitucionalidade, pois o atendimento do disposto no art. 225, § 1º, inc. II, que outorga ao poder público o dever de “fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético” reclama maior severidade no regramento das formas de controle das instituições de pesquisa e dos serviços de saúde que as realizem.”“Mas esta competência é conferida ao Congresso Nacional, no qual já tramita o Projeto de Lei n. …, de 2008, apresentado pelo Deputado José Aristodemo Pinotti, que busca estabelecer maior rigor legislativo na matéria. Naquele projeto se definem condições para a habilitação das instituições especificamente voltadas às pesquisas mencionadas no caput do art. 5º, da Lei n. 11.105/2005, e da autorização especial a ser concedida pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). A aprovação daquele ou de outro projeto que restrinja e torne mais seguros os mecanismos de controle de ética nas pesquisas e nos tratamentos com células-tronco obviamente suprirão aquele déficit de constitucionalidade e tornarão mais seguros os direitos constitucionalmente afirmados.”
Leia a íntegra do voto da ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha
Originalmente publicado em O Estado de Risco
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