O artigo do sociológo português Boaventura de Sousa Santos (abaixo) sob o título"A bifurcação da Justiça" publicado pela Folha de São Paulo em 10 de junho de 2008 conceitua o significado de bifurcação da justiça como "num sistema instável em que uma altração mínima pode causar efeitos imprevisíveis e de grande porte". Assim, diante de questões sociais como ocorrem,hoje, no Brasil, as decisões do STF nunca serão formais!
Bifurcação na Justiça
Data: 05/06/2008Autor: Boaventura de Sousa Santos
Entende-se por bifurcação a situação de um sistema instável em que uma alteração mínima pode causar efeitos imprevisíveis e de grande porte. Penso que o sistema judicial brasileiro vive neste momento uma situação de bifurcação. O Brasil é um dos países latino-americanos com mais forte tradição de judicialização da política. Há judicialização da política sempre que os conflitos jurídicos, mesmo que titulados por indivíduos, são emergências recorrentes de conflitos sociais subjacentes que o sistema político em sentido estrito (Congresso e Governo) não quer ou não pode resolver. Os tribunais são, assim chamados a decidir questões que têm um impacto significativo na recomposição política de interesses conflituantes em jogo.
Neste momento, o país atravessa um período de judicialização da política. Entre outras ações, tramitam no STF a demarcação do território indígena da Raposa Serra do Sol, a regularização dos territórios quilombolas e as ações afirmativas vulgarmente chamadas quotas. Muito diferentes entre si, estes casos têm em comum serem emanações da mesma contradição social que atravessa o país desde o tempo colonial: uma sociedade cuja prosperidade foi construída na base da usurpação violenta dos territórios originários dos povos indígenas e com recurso a sobre-exploração dos escravos que para aqui foram trazidos. Por esta razão, no Brasil, a injustiça social tem um forte componente de injustiça histórica e, em ultima instância, de racismo anti-índio e anti-negro. De tal forma, que resulta ineficaz e mesmo hipócrita qualquer declaração ou política de justiça social que não inclua a justiça histórica. E, ao contrário do que se pode pensar, a justiça histórica tem menos a ver com o passado do que com o futuro. Estão em causa novas concepções do país, da soberania e do desenvolvimento.
Desde há vinte anos, sopra no continente um vento favorável à justiça histórica. Desde a Nicarágua, em meados dos anos oitenta do século passado, até a discussão, em curso, da nova Constituição do Equador, têm vindo a consolidar-se as seguintes idéias. Primeira, a unidade do país reforça-se quando se reconhece a diversidade das culturas dos povos e nações que o constituem. Segunda, os povos indígenas nunca foram separatistas. Pelo contrário, nas guerras fronteiriças do século XIX deram provas de um patriotismo que a história oficial nunca quis reconhecer. Hoje, quem ameaça a integridade nacional não são os povos indígenas; são as empresas transnacionais, com sua sede insaciável de livre acesso aos recursos naturais, e as oligarquias, quando perdem o controlo do governo central, como bem ilustra o caso de Santa Cruz de la Sierra na Bolívia. Terceira, dado o peso de um passado injusto, não é possível, pelo menos por algum tempo, reconhecer a igualdade das diferenças (interculturalidade) sem reconhecer a diferença das igualdades (reconhecimentos territoriais e ações afirmativas). Quarta, não é por coincidência que 75% da biodiversidade do planeta se encontra em territórios indígenas ou de afro-descendentes. Pelo contrário, a relação destes povos com a natureza permitiu criar formas de sustentabilidade que hoje se afiguram decisivas para a sobrevivência do planeta. É por essa razão que a preservação dessas formas de manejop do território transcende hoje o interesse desses povos. Interessa ao país no seu conjunto e ao mundo. E pela mesma razão, o reconhecimento dos territórios tem ser feito em sistema contínuo, pois doutro modo desaparecem as reservas e, com elas, a identidade cultural dos indígenas e a própria biodiversidade.
Estes são os ventos da história e da justiça social no actual momento do continente. Ao longo do século XX não foi incomum que instancias superiores do sistema judicial actuassem contra os ventos da história, e quase sempre os resultados foram trágicos. Nos anos trinta, o ST dos EUA procurou bloquear as políticas do New Deal do Presidente Roosevelt, o que impediu a recuperação económica e social que só a segunda guerra mundial permitiu. No inicio dos anos setenta, o ST do Chile boicotou sistematicamente as políticas do Presidente Allende que visavam a justiça social, a reforma agrária, a soberania dos recursos naturais, fortalecendo assim as forças e os interesses que ganharam com seu assassinato.
Em momento de bifurcação histórica, as decisões do STF nunca serão formais, mesmo que assim se apresentem. Condicionarão decisivamente o futuro do país. Para o bem ou para o mal.
Boaventura de Sousa Santos é diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
* Texto gentilmente cedido pelo autor como contribuição especial ao Seminário "Povos Indígenas, Estado e Soberania Nacional", promovido pelo "Observatório da Constituição e da Democracia" - C&D, do Grupo de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito - STD, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília - UnB, e Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas - FDDI, evento realizado em 28 de Maio de 2008, no auditório "Dois Candangos" da Faculdade de Educação da UnB.
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terça-feira, 10 de junho de 2008
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Um comentário:
Com toda a vênia ao Prof Boaventura, é preciso ter cautela ao ler sua contribuição ao problema da demarcação das terras indígenas. Seguindo Schopenhauer (dialética erística) podemos identificar o uso do argumento "rótulo odioso" (reduzir os argumentos contrários a uma categoria geralmente detestada, no caso, ser contrário à demarcação contínua é racismo contra os índios) ou o argumento "ad hominem" (quem é contrário à demarcação contínua pertence à classe dominante ou está submetido ao interesse das corporações internacionais).
Também me parece apelar para uma premissa falsa querer igualar o STF atual ao tribunal chileno contra-Allende, ou a corte americana contrária ao new Deal, principalmente quando a maioria dos atuais ministros foi indicada pelo atual Presidente da República.
A questão indígena deve ser tratada como algo além do debate esquerda/direita. Nossa Constituição protege os interesses indígenas, mas há outros valores em jogo, como o meio-ambiente, a segurança nacional, e a redução das desigualdades sociais e regionais, bem como o direito ao desenvolvimento dos demais brasileiros que habitam aquela região ou que futuramente nela pretendem habitar. Nessa questão, é preciso analisar os interesses conflitantes com moderação, evitando-se o recurso a rótulos diversos que ofuscam o verdadeiro debate.
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