terça-feira, 24 de junho de 2008

Caso do editor de livros nazistas

Sei que o caso é antigo... Mas fiz um comentário sobre e gostaria de dividir com todos...

Daniel

I - PARTE DA FICHA – DESCRITIVA

1. FATOS
O proprietário da editora Revisão, Siegfried Ellwanger Castan, paciente do presente habeas corpus, publicou livros de conteúdo anti-semita no Rio Grande do Sul sendo, com isto, processado pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), julgado pelo crime de racismo (Lei 7716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90) sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII) e condenado pela 3ª Câmara Criminal do Rio Grande do Sul.
2. CLASSIFICAÇÃO
HABEAS CORPUS. Art. 647 e seguintes do Código de Processo Penal.
3. RELATO DA SITUAÇÃO PROCESSUAL
Os advogados de Ellwanger, ora paciente, impetraram habeas corpus, como sucedânio recursal, em face de decisão proferida pelo STJ que, em última instância, mantinha condenação proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, por crime de racismo.
Por meio deste habeas corpus tentou-se argumentar que uma série de publicações de conteúdo anti-semita, embora reconhecidamente discriminatórias com relação ao povo judeu, não poderiam ser consideradas racistas, pois judeu não seria considerado raça.
4. PRETENSÃO DAS PARTES
O paciente impetrou habeas corpus como remédio para conceder-lhe a liberdade frente a uma condenação pelo crime de racismo (Lei 7716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90), do TJ do RS cuja decisão havia sido mantida em última instância pelo STJ. A ação foi movida pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH).
5. QUESTÕES JURÍDICAS EM DISCUSSÃO
Aplicação ou não do artigo 20 da lei 7716/89 (Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional). Ou seja, deve ou não o editor Ellwanger ser punido pelo crime de racismo por publicar livros de conteúdo anti-semita.
6. DECISÃO DO TRIBUNAL E SUA MOTIVAÇÃO
O Tribunal Constitucional sob a relatoria do Ministro Moreira Alves negou a ordem por considerar as publicações inconciliáveis com os padrões éticos e morais estabelecidos na CF. Liberdade de expressão é relativa e não pode abrigar manifestações de conteúdo imoral. Deve respeitar os limites morais e jurídicos. Conduta do agente considerada dolosa e explícita. Judeus considerados raça. Imprescritibilidade do crime de racismo deve-se à mensagem que se quer deixar as gerações presentes e futuras.

II PARTE DA FICHA – ARGUMENTOS E CONCEITOS JURÍDICOS

ARGUMENTOS JURÍDICOS
(IDÉIAS-FORÇA)
Os principais argumentos jurídicos foram:
1. Os argumentos utilizados pelos advogados de Ellwanger foram:
1.1. liberdade de expressão do editor
1.2. Judeu não seria raça e, portanto não estariam albergados pela Lei 7716/89. Ausência de tipicidade.
1.3. Só existe uma raça, a raça humana.

2. Os argumentos da maioria dos Ministros para negar a ordem foram:
2.1. prática inconciliável com os princípios do Estado Democrático de Direito.
2.2. Dignidade humana superior à liberdade de expressão. Valor absoluto contra valor relativo.
2.3. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte).
2.4. Crime imprescritível e inafiançável (Art. 5º, XLII CF) para dar mensagem às gerações presentes e futuras.

COMENTÁRIO DA DECISÃO

1. Introdução

O Supremo Tribunal Federal negou a ordem ao habeas corpus, desconsiderando o argumento de que o povo judeu não seria considerado raça e de que a liberdade de expressão deveria preponderar. A corte considerou a dignidade da pessoa humana, igualdade e democracia princípios inconciliáveis com atos de intolerância conforme o praticado pelo editor de livros de conteúdo anti-semita, Siegfried Ellwanger.

1. Análise do caso

a. O litígio

A questão principal que o litígio envolve é a colisão entre dois valores alçadas a categoria de princípios constitucionais quais sejam: a dignidade da pessoa humana e a liberdade de expressão. A defesa argumenta que a liberdade de expressão é, no caso concreto mais importante, e que as publicações poderiam conter qualquer conteúdo, ficando a critério do público comprá-los ou não. Já os tribunais inferiores, ao condenarem o editor por crime de racismo, consideraram a prática um atentado à dignidade humana e inconciliável com o Estado Democrático de Direito. Entendimento este ratificado pela corte constitucional ao negar o habeas corpus.

b. A decisão

Os Ministros do STF, não só a maioria vencedora (8 a 3), tentaram resolver a questão através da ponderação de princípios. Outras questões também nortearam as decisões como o fato de judeu ser ou não raça. No entanto, foi unânime o entendimento que qualquer atentado a dignidade humana desse tipo deve ser enquadrado no crime de racismo. O Min. Gilmar Mendes hierarquizou os princípios, e considerou a violação da dignidade humana pela liberdade de expressão no caso proporcionalmente injustificável. A não concessão do HC levaria a manutenção da condenação pelo crime de racismo, decisão que, na maior medida, alcançaria a promoção da democracia, coibindo, assim, a intolerância social. Já o Min. Marco Aurélio, também ponderando os dois princípios em questão, decidiu afirmando que a não censura as publicações seria proporcionalmente melhor à promoção da democracia e de uma cultura pluralista, pois deixaria a cargo da própria opinião pública. Por isso, concederia o habeas corpus.


2. Discussão

a. Crítica

A decisão, pelo fato de ter negado o habeas corpus por 8 votos a 3, mostra que os ministros partiram de premissa axiológicas distintas. Apesar de todos terem utilizados a ponderação e analisando a colisão entre dignidade humana e liberdade de expressão, 3 chegaram a conclusões divergentes. No entanto, a nosso ver, a jurisprudência dos valores acarreta em uma abertura para o STF legislar, pois este está controlando as escolhas políticas legislativas, já que a decisão, no caso, é no sentido do que os Ministros consideram o melhor para a sociedade brasileira e não o constitucionalmente adequado para a mesma. Não teria a metódica constitucional que ser rediscutida ou a jurisprudência dos valores de tremenda abstração seria o suficiente para a hermenêutica constitucional atual? A discussão poderia muito bem ter se restringido a subsunção ou não do fato à norma que proíbe racismo. Assim, restringiria a abertura da jurisprudência dos valores e não haveria usurpação dos poderes da Corte Constitucional.

b. Proposta

Assim como no caso da lei de biosegurança (células tronco), ADI 3510, no caso Ellwanger, o STF deveria ter auto-restringido seus poderes. Ou seja, deveria ter deixado ou para o legislativo regulamentar a matéria ou para que a opinião pública discutisse e provocasse tal regulamentação. Na ADI 3510, apesar de ter havido uma discussão de valores, principalmente da dignidade humana, os votos foram no sentido de que quem havia decidido sobre a legalidade das pesquisas com células tronco havia sido o legislativo, poder democraticamente eleito, os representantes do povo. Por isso, o STF auto-restringiu seus poderes para não usurpar sua competência.

3. Conclusão
A adoção tardia de uma jurisprudência de valores pelo STF mostra, por vezes, uma aplicação da ponderação em casos onde deveria haver uma maior objetividade ou simplesmente uma auto-restrição dos poderes da corte. Publicar livros de conteúdo anti-semita é sim um atentado à dignidade humana, porém, não deixar que os cidadãos decidam livremente sobre o assunto, é um atentado maior a cidadania.

Um comentário:

Prof. Ribas disse...

Prezado Prof. Daniel Ferreira congratulo por ter circulado a discussão do caso Ellwanger publicado pela Editora Brasília Jurídica em 2004. Há três aspectos a serem destacados nessa postagem. Estamos fortalecendo a metodologia de ensino jurídico de casos (Case system). A postagem demonstra como podemos proceder ao exame de um determinado julgado. Outro ponto merecedor de reflexão está no fato da dificuldade do Supremo Tribunal Federal, por exemplo, aplicar concretamente o princípio da proporcionalidade. Cabe destacar, também, nesse contexto, considerando uma perspectiva de liberdade de expressão no voto do Ministro Ayres de Britto. Por fim, o caso Ellwanger nos leva a comparar o que "mudou" desse julgado postado pelo Prof Daniel Ferreira das decisões da nossa Corte Maior nesses anos de 2007 e 2008.