segunda-feira, 23 de março de 2009

O caso dos pneus e a coisa julgada inconstitucional

São Paulo, segunda-feira, 23 de março de 2009 - Folha de São Paulo

Contra todos, menos dois
GERALDO FACÓ VIDIGAL

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A defesa do ambiente e da saúde está no mesmo nível da proteção privada à coisa julgada. E se essa proteção implica negação das outras?
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SEM GRANDE alarde, o STF (Supremo Tribunal Federal) está hoje diante de questão fundamental. O presidente Lula propôs ação complexa, visando cassar liminares dadas a importadores de pneus usados. Alega que os princípios constitucionais de defesa do ambiente e de proteção à saúde pública devem sobrepor-se à liberdade de atividade econômica. O cenário internacional contribui para a dificuldade do caso: o Tribunal do Mercosul obriga-nos a aceitar importar pneus usados do bloco, e a OMC decidiu que o Brasil não pode privilegiar o Mercosul.
Já no Brasil, diversas liminares e decisões judiciais autorizaram empresas a realizar essas importações, entendendo que leis proibindo a importação violariam a livre-iniciativa. É sobre esse grande número de diferentes ações que o STF começou a decidir neste mês. O primeiro voto, da relatora ministra Cármem Lúcia, faz prevalecerem os valores ambientais e a proteção à saúde sobre a liberdade econômica. Baseando-se em estudos técnicos e declarações internacionais, conclui: "A crise não se resolve pelo descumprimento de preceitos fundamentais". Sendo as normas constitucionais, então as decisões judiciais são inconstitucionais -e são cassadas. A ministra reconheceu, entretanto, a validade de decisões transitadas em julgado antes da ação. Essa exceção, contudo, arrisca pôr tudo a perder: duas importadoras tiveram decisões autorizando importar -já transitadas em julgado.
É fato. A Constituição prevê, como pilares do Estado democrático de Direito, que a lei não prejudicará o direito adquirido e a coisa julgada. Esse caso ilustra o quanto perfeita lógica jurídica pode negar absolutamente proteção concreta a valores constitucionais que busca proteger. O resultado de prevalecer o voto será um "monopólio" compartilhado (duopsônio) dessas empresas na importação de pneus usados. Nada no voto impede que as empresas "miltipliquem" a importação dos pneus, revendendo-nos verdadeiro lixo ambiental -que a Europa exporta, destaque-se, em troca de nada. Quer dizer: consideradas as repercussões econômicas, permitir essas exceções implica solapar os mesmos preceitos fundamentais que o voto resguarda e criar discriminação em favor de duas empresas. Toneladas de lixo tóxico serão importadas, prejudicando a saúde pública e o ambiente como se a decisão fosse por sua livre importação.
Diante do caso exemplar, valem alguns questionamentos: se princípios fundamentais pairam acima das leis e estruturam o próprio sistema jurídico; se "defesa do ambiente" e "proteção à saúde" estão no mesmo nível constitucional de "coisa julgada"; e quando a proteção de uma implica negar a dos outros, se a decisão deve optar por proteger o bem mais valioso. Em nome da segurança jurídica, o trânsito em julgado de duas decisões feriria indefinida e ilimitadamente preceitos fundamentais. Não terão essas duas "seguranças jurídicas" decorrido de mera celeridade processual -mera sorte-, de repente capazes de converter decisões judiciais individuais em loteria, concedendo aos sortudos direito de atuar para sempre contra os princípios constitucionais? A natureza da segurança jurídica admite sobrepor interesse particular ao público? Não existem outras formas de compensar, com razoabilidade, esses dois agentes econômicos?
Note-se: o problema é substancialmente mais grave do que benefício, justo ou injusto, a duas empresas: ao proteger preceito fundamental, mas privilegiando coisa julgada, a decisão perde sua eficácia na defesa dos outros preceitos que busca proteger.
Nesse caso, a prioridade da Corte Suprema deve ser a salvaguarda dos efeitos desejados pela Constituição -ou a aplicação de raciocínios jurídicos incensuráveis deve admitir resultar em decisão vazia? Se o STF acompanhar o voto da ministra, como romper com abusos de coisa julgada? Se decidido pela procedência da ação e pela natureza de fundamental dos princípios e valores protegidos, é razoável admitir esvaziamento de efeitos da decisão? Ou deve-se enfrentar a matéria de forma evolutiva, relativizando coisa julgada inconstitucional?
Sem deixar de analisar a questão sob luz jurídico-constitucional pura, para um ponto o Supremo há de atentar. A lei nº 9.882/99, que regula o julgamento da espécie dessa ação agora julgada pelo STF, determina: "A decisão terá eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do poder público". Não diz que deve valer contra todos, menos dois.

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