Vejam o texto escrito pelo Prof. Marcelo Cattoni a respeito da recente tradução de uma das obras de Carl Schmitt pela Editora Del Rey. O texto contextualiza a utilização pelo Juiz Federal De Sanctis do pensamento de Schmitt.
Como vocês sabem, a Editoral Del Rey publicou recentemente uma tradução com
prefácio de Habermas - o mesmo texto que ele publicou anteriormente em
inglês sobre Schmitt - da *Teoria do Partisan*, de Carl Schmitt. Eu ainda
não conheço a tradução mas espero que ela seja melhor do que a dos textos
anteriores de Schmitt, publicados na coleção. A *Teologia Política* está em
vários pontos irreconhecível e o *Defensor da Constituição* não fica tão
atrâs, tem problemas. Oportunamente, posso inclusive indicar esses problemas
de tradução, para seu aperfeiçoamento em edições futuras. Eu, se fosse o
Min. Gilmar Mendes ou o Min. Eros Grau, teria me preocupado mais em me dar
ao trabalho de pelo menos passar os olhos, quem sabe, nas duas traduções, já
que conhecem bem o alemão e o português, assim como os autores e os temas,
antes de tê-las prefaciado, coisa que Habermas não poderá fazer pois,
segundo o que até então me consta, Habermas não sabe português.
Enfim, se em toda essa lenga-lenga do caso Dantas Carl Schmitt foi tão mal
citado, no sentido, inclusive, de citado mal, imagino que mais cedo ou mais
tarde vão querer citar Carl Schmitt e sua *Teoria do Partisan* no contexto
da discussão sobre a lei da anistia e sobre a questão acerca da
possibilidade ou não da responsabilização criminal de agentes do Estado
brasileiro durante a autocracia de 1964-85, agora que o texto foi traduzido.
Para ir direto ao ponto: é que Schmitt, apesar do seu "entusiasmo" pela
figura do partisan, do seu elogio até mesmo a Che Guevara, mas também a Mao
e à China comunista como uma espécie de terceiro capaz de fazer frente às
duas superpotências, os EUA e a URSS, algo que a Europa teria perdido a
possibilidade de ser com Hitler, que na sua genealogia teria como primeiros
antecedentes os camponeses espanhóis armados de foices e pás contra
Napoleão, enfim, o partisan como um soldado sem uniforme e fora das normas
do direito internacional, que combate o imperialismo, etc, etc, irá falar de
um círculo de terrorismo e contra-terrorismo que se instaura por meio da
atividade de guerra dos partisan, entre eles e o império. Se aparentemente
Schmitt pudesse parecer um "esquerdista" defendor dos vietconges, dos
cubanos, etc, etc, cuidado para não cairmos no erro, primeiro, do tradutor
para o espanhol da Teoria da Constituição, Francisco Ayala que pensou que as
críticas de Schmitt ao liberalismo teriam "colores" marxistas. Schmitt é um
nostálgico, um nostálgico do grande Leviathan, do Estado-nação europeu, e vê
nos partisan e na sua suposta defesa da terra contra o invasor imperialista,
estrangeiro, algo que o velho *jus publucum europeam* havia cultivado, a sua
ligação com a terra, a idéia de que o direito é direito territorial e
territorializado (concepção que a Inglaterra de Elisabeth Tudor veio a
romper).
E segundo, todo o cuidado é pouco, pois ao tirar os uniformes é que Schmitt
os uniformiza, ou seja, ele trata tanto terroristas e guerrilheiros como se
fossem a mesma coisa. E não são. O exemplo é dado por ele quanto à guerra da
Argélia e a utilização pelo Gen. Salan para combater os argelinos de métodos
terroristas supostamente contraterroristas. Cuidado, há ali toda uma cortina
de fumaça que transforma todos os gatos em pardos, pois desconsidera a
diferença de um ponto de vista normativo entre a resistência à opressão e os
opressores, pois seriam todos terroristas! nesse círculo de violência
"terrorista" e "contraterrorista". Daqui a pouco vão querer equiparar a Al
Qaeda com o a Frente de Libertação de Angola, os EUA com a Alemanha nazista,
ou, o que é pior, dizer que não há diferença entre lutar na resistência e
estar no governo ditatorial, entre oprimir e resistir, entre torturador e
torturado, enfim, entre guerrilheiro e forças armadas militaristas, porque
todos teriam sido em maior ou menor medida "terroristas". Isso, essa
equiparação, inclusive, colocaria à margem do direito internacional não
apenas o terrorismo e o terrorista, mas a suposta guerra contra o
terrorismo, justificando o desrespeito ao direito por ambas as partes e,
assim, impossibilitando-se de com base no direito responsabilizar-se alguém.
Ou seja, um vale-tudo, para todos, excepcional a todas as normas, um
verdadeiro estado de excepção que abarcaria os dois lados...
Assim sendo, quero chamar atenção para a força simbólica das traduções como
fez Habermas, no referido texto, quando Schmitt passou a ser publicado em
inglês a partir de meados dos anos 80, 90. A que ou a quem interessa uma
tradução? Não que não se deva traduzir algo, e bem. Não é isso. Pergunto
sobre o modo com que essas traduções se inserem ou são apropriadas pelos
debates públicos, e a que ou a quem se prestam.
Alguém por acaso já leu *Responsabilidade e Julgamento*, de Hannah Arendt?
Pois lá há excelentes textos sobre responsabilidade e culpa coletiva e
individual, em sua discussão com Karl Jaspers e o problema da culpa alemã.
Cabe aqui chamar atenção para o fato de que se não se pode, sobre o pano de
fundo da tradição constitucionalista, responsabilizar criminalmente toda uma
coletividade enquanto tal, em razão do princípio da pessoalidade,
individualidade, da pena. Por outro lado há uma responsabilidade coletiva,
mesmo sob as ditaduras, do ponto de vista ético, assim como
responsabilidades criminais individualizáveis.
Alguém já leu o texto Verdade e reconciliação, de Jacques Derrida, publicado
no Brasil num belo livro que se chama *Pensar a desconstrução*? Pois vale
pena ler a reflexão que Derrida faz sobre a transição na Africa do Sul,
sobre a verdade da reconciliação e sobre a reconciliação da verdade. Pois
sem verdades, não haveria propriamente como se falar em reconciliação...
Por fim, só mais um comentário sobre traduções: por que traduzir Carl
Schmitt? Por que não Hermann Heller, Karl Loewenstein, Hans Kelsen, Franz
Neumann, Ernst Fraenkel, Otto Kirchheimer? Por que Schmitt? Haveria uma
obsessão por Carl Schmitt? Eu repito, a que ou a quem se presta uma
tradução? A que ou a quem se presta uma tradução de Carl Schmitt? Qual
conhecimento, qual interesse? E isso depende muito, por outro lado, de quem
de convida para se fazer o prefácio, ou seja, ao modo com que o texto é
inserido no debate acadêmico e político, jurídico...
Mas será mesmo que interessaria a um De Sanctis, o santo, o suposto *Homo
Sacer*? Com toda aquela canalhice de que a Constituição não importa, por que
a Constituição não é a Constituição?
Enfim, eu espero que a tradução de Teoria do Partisan não sirva agora ao
argumento do Coronel Jarbas Passarinho de que na noite do esquecimento que
supostamente representaria a anistia todos os gatos são pardos... Pois o
guerrillero que resistiu à ditadura não é terrorista, terrorista é a
ditadura de 1964. Me digam, por favor, depois, da leitura do prefácio de
Habermas...
sábado, 22 de novembro de 2008
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