sexta-feira, 21 de novembro de 2008

A inspiração de Gilmar Ferreira Mendes

A doutoranda de direito da puc-rio Procuradora da República Dra. Monica Re envia para postagem a seguinte matéria complementando todo o material do Caderno Mais do jornal "Valor Economico" de 21 de novembro de 2008.
A inspiração para Gilmar Mendes


Muito antes de chegar à Presidência do Supremo Tribunal Federal (STF),
Gilmar Mendes era influenciado por Peter Häberle e a ligação que ele fez
entre o pensamento do pesquisador alemão e o Brasil alteraram as
práticas de interpretação de leis pela Corte.Ruy Baron / Valor

Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal: "Cabe ao STF propor uma
abertura que possibilite o oferecimento de alternativas para a
interpretação constitucional"
A primeira tradução de Häberle para o Brasil foi realizada por Mendes,
em 1997, quando ele trabalhava na Casa Civil da Presidência da
República, durante o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso.
Mendes traduziu "A Sociedade Aberta e os Intérpretes da Constituição" na
época em que concluía projetos de lei sobre a maneira pela qual o STF
deveria julgar três tipos de ações cujos efeitos não se limitam às
pessoas envolvidas no processo, mas afetam todos os cidadãos O resultado
é que essas leis permitiram a ampla participação de grupos e de pessoas
distintas nos julgamentos.
A lei que disciplina os julgamentos das ações diretas de
inconstitucionalidade (Adins) perante o STF (Lei nº 9.868) contém idéias
diretas de Häberle. Ela prevê a realização de audiências públicas antes
dos julgamentos e a participação de grupos e pessoas que não estão no
processo, mas possuem interesse direto na decisão (os "amici curiae", ou
"amigos da Corte"). Essa mesma lei disciplinou os julgamentos das ações
declaratórias de constitucionalidade (ADCs) - propostas pelo governo
federal para que o Supremo declare a validade de alguma lei. É por causa
das idéias de Häberle que a lei prevê a participação de outras pessoas
nessas ações - e não apenas do autor e do réu.
As idéias de Häberle também levaram à abertura do STF no julgamento de
Argüições por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs). Essa ação é
usada para que associações e partidos levem diretamente ao STF um
assunto que se encontra em debate nos demais tribunais do Brasil. As
ADPFs são reguladas pela Lei nº 9.882, cujo projeto foi redigido por
Mendes no momento em que ele traduzia o autor alemão.
A abertura prevista nessas leis ainda não foi totalmente explorada pelo
STF. As leis redigidas por Mendes com a inspiração de Häberle prevêem a
convocação de peritos e de comissões para ajudar a formar a opinião dos
ministros do Supremo.
Os ministros também podem convocar juízes de outros tribunais para que
estes digam como estão aplicando a lei em debate. Esses dois mecanismos,
apesar de previstos em lei há quase dez anos (as leis foram aprovadas em
1999), ainda não foram utilizados pelo STF.
"Saibam que somos de alguma forma devedores de Häberle", enfatizou
Gilmar Mendes em recente palestra na Câmara dos Deputados, quando citou
a influência do pesquisador alemão nessas leis. Foi a partir da leitura
de Häberle que Mendes declarou, durante o julgamento das pesquisas com
células-tronco, que o STF é o "representante argumentativo" da
sociedade e chamou o tribunal de "casa do povo".
Em conversa com o Valor, Mendes defendeu as duas concepções centrais de
Häberle: de um Supremo aberto à sociedade e a visão de que a
Constituição é dinâmica e deve ser interpretada no tempo.
Valor: De que forma Peter Häberle influenciou o Supremo Tribunal
Federal?
Gilmar Mendes: O STF adquiriu um papel muito importante na
reinterpretação de normas que tinham um conteúdo fixo. É o que
aconteceu, por exemplo, na questão da fidelidade partidária e na Lei de
Greve. Häberle diz que a Constituição é um projeto em contínuo
desenvolvimento. E, portanto, cabe ao STF propor uma abertura que
possibilite o oferecimento de alternativas para a interpretação
constitucional.
Valor: Então, cabe ao STF se abrir aos diversos grupos de interesse da
sociedade?
Mendes: Häberle foi buscar essa concepção na prática. Quando a sociedade
delega a uma Corte o papel de dar a última palavra sobre o que é a
Constituição, Häberle diz que os juízes não são as vozes da
Constituição, mas porta-vozes de uma sociedade que interpreta a
Constituição. Ele trouxe uma atitude metodológica de cuidado. Isso dá
certa legitimação para a Corte. Por isso é que naquele voto sobre as
pesquisas com células-tronco eu disse que a Corte de certa forma também
representa o povo.
Valor: Quando o sr. conheceu essa teoria?
Mendes: Quando estudei na Alemanha, no fim dos anos 80. Chamou muito a
minha atenção. Häberle ganhou muita influência, até de modo indireto. O
STF é o local desse processo de interpretação da Constituição, mas, na
medida em que escuta outras forças, assume outro papel. Häberle nos diz
que não se pode interpretar questões ligadas à liberdade artística sem
perguntar para o artista. Nesses casos, você tem de entender o artista.
Da mesma forma, você tem de ouvir o religioso para compreender a
liberdade religiosa.
Valor: O que é mais importante em sua teoria?
Mendes: Häberle afirma que todo cidadão é um intérprete ativo da
Constituição. Esses elementos estão muito impregnados no Supremo, hoje,
com o "amicus curiae", com as audiências públicas. A grande contribuição
dele é para a entrada das pessoas no processo de interpretação. Isso
obriga o intérprete [ministro do STF] a ter certa humildade.
Valor: Hoje, o STF é elogiado por se abrir à sociedade, mas a idéia de
que o texto constitucional deve ser revisto no tempo ainda é bastante
criticada. Por quê?
Mendes: Häberle diz que interpretação e mutação constitucional são a
mesma coisa. Agora, o problema todo é que em sociedades como a alemã há
um consenso básico sobre as questões fundamentais. A sociedade alemã não
tem muitas distinções. Lá, é tudo muito estável. Não há grandes
dissensos. Algumas das idéias dele são repelidas por teóricos na
Alemanha. Acham que ele dissolve a Constituição. Na medida em que
desvincula o intérprete do texto constitucional, o texto perderia essa
vinculatividade.
Valor: E nos outros países ele tem destaque?
Mendes: Na América Latina ele ganhou muita importância. Suas idéias
tiveram influência na Argentina, na Colômbia e no Peru, além do Brasil.
Valor: Ele também fala da importância cultural da Constituição.
Mendes: Sim. Häberle desenvolveu uma concepção "culturalística" da
Constituição. Ele procura verificar como aspectos da cultura se
introjetam na Constituição. As representatividades da sociedade que se
encontram na cultura e nos símbolos nacionais.

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