quarta-feira, 2 de julho de 2008

Uma leitura de Montesquieu: o princípio da separação de poderes

O princípio da separação de poderes no Brasil é retomado, no final de 2007, num dos mandados de injunção sobre greve de servidores públicos. Nesse julgado, o voto do Ministro Ricardo Lewandoviski expressa que estamos diante de "uma separação de poderes mitigado". O Prof. Paulo Cunha, Universidade do Porto, publica texto no jornal "O Primeiro de janeiro" no qual ele retoma a leitura de Montesquiu com o citado princípio da separação de poderes. No citado artigo do professor Paulo Cunha, ele menciona a importante releitura da teoria montesquiana procedida por Charles Eisemann e mais tarde por Louis Althusser. São interpretações que, nas suas épocas respectivas, deram um sentido mais político ao princípio da separação de poderes do que uma perspectiva jurídica. Não esqueçamos a obra clássica de Raymond Aron, Les Etapes du pensée sociologique, ressalta que, na verdade, a propalada separação de poderes deve ser contextualizada dentro de uma transição política defendida por Montesquieu para evitar uma ruptura. "Ruputura" esta que acabou advindo com o processo revolucionário de 1789. Leiamos e reflitamos o texto do prof. Paulo Cunha.



Montesquieu: breve perfilEm 18.1.1689, foi baptizado em La Brède, perto de Bordéus, um recém-nascido, tendo como padrinho um mendigo, Charles, que o segurou nos braços e lhe deu o nome. Os pais assim o quiseram, para que Charles se lembrasse toda a vida de que os pobres são nossos irmãos. Estas, no essencial, as palavras do livro de horas de Madame Renon, citado pelo Abade Vaurein, nas Variétés bordelaises, editadas em Bordéus, em 1785, e sucessivamente repetido pelos vários biógrafos. Paulo Ferreira da CunhaProfessor UniversitárioCharles de Secondat, barão de Montesquieu e La Brède pertencia à velha nobreza da província, andando de tamancos e chapéu grosseiro de aba larga pelas suas propriedades, trabalhando e confraternizando com os seus homens. À sua morte, o inventário revelaria possuir uma bela biblioteca, mas uma carruagem decadente.Estudou Direito em Bordéus e depois em Paris. Em breve se transformaria numa das luzes da academia da sua cidade (onde discursou pela primeira vez em 1.V.1716), chegando também a presidente do seu Tribunal. E sempre, por respeito, snobismo ou ironia, lhe chamariam “Presidente”.Sofria com as querelas do foro. Via a Justiça mais acima. Tinha aguda sensibilidade aos valores (desde logo à Justiça) que deixam uma sensação de plenitude. Afirma, com efeito, que sempre experimentou uma sensação de alegria secreta pela feitura de normas que concorressem para o bem comum.Interessa-se por tudo. Mesmo (hábito da época) pelas ciências naturais. Escreverá sobre as causas do eco e as glândulas renais (1718). Fará o elogio do estudo no discurso sobre os motivos que nos devem motivar ao estudo das ciências (1725).Por esse desencanto com o foro (em que todavia era competente, como se veria no rigor dos seus contratos), decide dele se afastar para reflectir, escrever, e viver, profunda e intensamente. E garante a sua independência económica e o seu amor à terra como assumido vinicultor, produzindo grandes vinhos, que exporta com grande sucesso. Não ironizava quando, em carta a Mme. De Saint Maur, dizia toda a sua fortuna dependia de três dias de sol.Homem do Mundo, passa frequentes temporadas em Paris, onde, aliás, a morte o colherá (10.II.1755), longe da família, mas acarinhado por muitos amigos (embora apenas de Diderot tenhamos testemunho sobre o seu funeral). Frequenta os salões e faz o seu esprit com elegância e comedimento, jamais procurando impor-se, monopolizar a conversa, ou dar-se ares de sabedor. Viaja muito, convive com os melhores espíritos do seu tempo, e maravilha-se com a arte de Itália.Ao contrário de tantas personagens fascinantes, é um homem relativamente tranquilo e feliz. Apaixonado, sem dúvida (mais do que quer admitir quando afirma ter-se reformado dos amores em trintão: pura fantasia), mas ao mesmo tempo racional e fleumático, declara que nunca teve uma preocupação ou aborrecimento tão grandes que não tivessem sido curados com uma hora de leitura. Imaginemos o prazer de uma hora de escrita.Apesar de ter tido muitos amigos, e de ser um moderado, jamais alcançou os cargos públicos que seriam justo prémio e inteligente emprego para o seu valor e a sua dedicação, sobretudo na diplomacia, para que estava preparado como ninguém. Certo é que poucos lugares políticos lhe seriam próprios, como ele mesmo observou. Foi, como todos os grandes espíritos, vítima da inveja. Contudo, os amigos souberam amparar-lhe os golpes. Na sua eleição para a Academia (1728), duvidando-se da autoria das Cartas Persas, que havia, por sábia prudência contra o preconceito imperante, publicado anonimamente (1721), há quem estabeleça o dilema: se são de sua autoria provam que é heterodoxo, perigoso, sedicioso; se não são, não tem obra de relevo. Montesquieu acaba por ser eleito, e responde no discurso de posse agradecendo a honra, não pelo que fez, mas pelo que promete vir a fazer. Madame de Lambert comenta esta eleição: “tudo o que se passou foi realmente à vergonha da humanidade”.Nas saborosas Cartas Persas, irónico e subtil, funda a Sociologia: dois persas olham intrigados as estranhas instituições dos franceses. O que parece natural e normal pode não o ser; a força do hábito, do quotidiano, pesa muito, preconceituosamente. Diz no Prefácio d’O Espírito das Leis: « Considerar-me-ia o mais feliz dos mortais se lograsse contribuir para que os homens se pudessem curar dos seus preconceitos».Em Considérations sur les causes de la décadence des Romains (1734), procura razões morais, sociais, etc., para o fim de tão vasto e poderoso império. Mais uma parábola.O Espírito das Leis, em geral baseado numa bem temperada teoria dos climas (máx. Livro XIX), é a sua obra mais célebre, com 22 edições logo no ano de lançamento – embora, na verdade, muito mais citada que efectivamente lida e compreendida. Aí procura a essência das leis (o seu espírito, como o espírito das suas castas de vinho), na sua relação com os costumes, os climas, etc. Nele trabalhou de 1731 a 1748.Um capítulo (o VI do livro XI) lhe dará a imortalidade. Aí se descreve a Constituição de uma mítica Inglaterra de felicidade política graças à separação de poderes, denotando ideias e projectos próprios à mistura com influências de Locke. É hoje um dos pilares teóricos do Constitucionalismo moderno. Na verdade, a ideia de freios e contrapesos entre instituições, de forma a que, como diz, o poder trave um outro poder, é de um valor universal. E se hoje aplicada a todas as instituições seria a chave de um perigo que sempre nos espreita: o do despotismo, ainda que mini-despotismo de pequenos tiranetes, em nichos de tirania incrustados nas nossas sociedades macro-democráticas.O seu objectivo político é muito realista, sem deixar de ser inovador. É um defensor intrínseco da liberdade, que respira como o ar da sua terra. E uma das técnicas de conseguir essa liberdade é travar qualquer poder absoluto, temporal ou espiritual, a qualquer nível. A sua separação dos poderes visa, assim, uma distribuição harmónica dos poderes pelos diversos pretendentes ao poder, identificados no seu tempo com o rei, a nobreza e a burguesia ascendente, esta como que em nome do povo. É uma reacção da Liberdade mais profunda, telúrica (típica num homem que não é da capital, e sempre terá sofrido de algum modo essa discriminação, apesar do seu sucesso), contra o absolutismo monárquico imperante. Mas não deixa de ser uma proposta para o seu tempo: « É preciso conhecer bem os preconceitos do seu século a fim de não os chocar demasiado nem excessivamente os seguir” (Mes Pensées, 630, XVIII).Quem era Montesquieu? Livre pensador amigo do seu próximo e crente na solidariedade universal. Escondendo a mão que faz o bem: em tempos de fome na Aquitânia (1747), anonimamente ajudou os seus vizinhos pobres de quatro paróquias. Intelectual de bom gosto, autor do respectivo artigo da Enciclopédia, que prefere escrever às entradas sobre “democracia” ou “despotismo” que lhe foram oferecidas. Homem do Mundo, atento aos ares do seu século. Não um revolucionário radical, mas cioso das “velhas liberdades”, afinal raiz das liberdades de sempre. Velho liberal pois, com preocupações sociais.Escritor, político, jurista, sociólogo, e até o produtor e comerciante vinícula de Bordeaux (como sublinha Jean Lacouture) todos são um só.Cultivou-se durante um equívoco sobre Montesquieu, talvez desfeito por Charles Eysenmann e Louis Althusser. Ao ponto de alguém se perguntar se seria preciso “queimar o Espírito das Leis” (Henri Duranton). Jamais. É necessário lê-lo, e relê-lo. É actualíssimo.Lusofilias@gmail.com

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