quarta-feira, 23 de julho de 2008

Refletindo sobre a sociedade de risco e o STF

O jornal O Valor Econômico de 23 de julho de 2008 publica matéria sob o título "O Poder Judiciário e as políticas públicas" de autoria do advogado Arnoldo Wald. Há dois pontos importantes no texto postado por nós. Um dos pontos é o reconhecimento da categoria de sociedade de risco (Ulrich Beck) para a compreensão do processo decisório da Justiça brasileira. Assim, o referido autor tem como referência a ADI nº 3.510-0 DF (o "hard-case" dos embriões) demonstrando o prontagonismo do Supremo Tribunal Federal diante desse quadro social de profundas incertezas, decorrentes, por exemplo, dos avanços tecnológicos. Vale lembrar que tal preocupação está estampada nos estudos desenvolvidos pela a participação de professores e pesquisadores (Grupo nº 5) no Projeto Dossiê-Justiça desenvolvido por integrantes da UFRJ e Unb com o apoio da Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Judiciário. Esse direcionamento de estudo é, também, do grupo de pesquisa do Programa de Pós-Graduaçaõ em Direito da Puc-rio dedicado ao exame da teoria do risco tendo como uma das suas lideranças o doutorando e Juiz Federal Alceu Maurício Jr (o grupo já está registrado no diretório do CNPq). Outro elemento de destaque do artigo citado encontra-se na sua preocupação na impossibilidade de compatibilizar, hoje, uma decisão de constitucionalidade no caso concreto em primeira instância com o pronunciamento em controle abstrato efetivado pelo Supremo Tribunal Federal. Leiam e reflitam a contribuiçaõ do advogado Arnold Wald.

O Poder Judiciário e as políticas públicas Arnoldo Wald
O julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) referente às pesquisas com células-troncos embrionárias, que ensejou votos brilhantes e exaustivos acompanhados com entusiasmo pela sociedade civil, revelou a necessidade das políticas públicas serem submetidas, o mais rapidamente possível, ao crivo da corte suprema quanto aos seus aspectos constitucionais. Trata-se de uma medida de caráter prático e lógico. No século XXI, não há como esperar, por muito tempo, em um clima de incerteza, soluções que têm grande repercussão social e econômica para o desenvolvimento do país. Por outro lado, não se pode discutir, em cada comarca, a constitucionalidade de uma política que, sendo nacional, deve atingir todos os interessados.
Seria inconcebível imaginar que a Lei da Biossegurança fosse examinada em casos concretos, em centenas de sentenças, com decisões divergentes para cada interessado. Poderíamos ter um verdadeiro caos jurisprudencial em uma matéria de tamanha importância, com repercussões negativas para o progresso científico, deixando-se de salvar vidas humanas.
Em outras matérias, após verdadeiras batalhas judiciárias, que ocorreram, por exemplo, em virtude de algumas privatizações, admitiu-se que todos os processos referentes a exatamente a mesma matéria deveriam ser julgadas por um mesmo e único juiz, sendo, em tese, o que apreciou a questão em primeiro lugar. Mas essa solução não é a mais adequada, pois permite que uma política pública nacional seja decidida por um juiz de primeira instância, com jurisdição limitada à sua comarca, produzindo desde logo determinados efeitos para todo o país, embora possa vir a ser posteriormente suspensa ou reformada por tribunal superior. Para evitar divergências das decisões em relação a casos idênticos, as recentes leis processuais já admitem que, havendo numerosos recursos, um caso líder seja escolhido pelo tribunal superior - o Supremo ou o Superior Tribunal de Justiça (STJ) -, determinando-se a sustação dos demais processos até o julgamento do primeiro recurso que a corte vai explicar.
Mas todas essas soluções pressupõem um longo tempo de duração do litígio até que o processo chegue ao Supremo ou ao STJ. Em dois casos recentes de argüição direta de inconstitucionalidade, o Supremo decidiu que eram inconstitucionais as leis estaduais em favor dos consumidores que pretendiam estabelecer, ou até complementar, políticas públicas federais que não atendiam a peculiaridades locais que as justificassem, e desde que a lei federal fosse constitucional. Ao contrário, se o diploma legal promulgado pela União não atendesse aos princípios constitucionais, a lei estadual poderia prevalecer. Foi o que aconteceu em relação à lei do Estado de São Paulo proibindo a utilização do amianto. Concluiu o Supremo que "quando se trata de matéria que exige normas de caráter geral para todo o país, não pode estar disciplinada por leis locais de maneira diferenciada", salvo se houver situações peculiares que possam justificar a existência da lei estadual.
________________________________________Cabe reservar ao STF a apreciação direta de todos os problemas constitucionais sobre políticas públicas ________________________________________
No passado, tentou-se encontrar uma fórmula de convivência construtiva entre o controle constitucional nos casos concretos, realizado pelo magistrado de primeira instância, sujeito aos recursos cabíveis, e o controle abstrato e geral feito, desde logo, pelo Supremo. Essa coabitação está, todavia, se tornando cada vez mais difícil e onerosa para o país, em um momento de adoção de novas tecnologias e de regulação mais intensa e detalhada pelas agências, que exigem rapidez e eficiência por parte da administração pública. A sociedade de riscos na qual vivemos não pode suportar, por mais tempo, o ônus da incerteza nas grandes questões suscitadas pelas políticas públicas, como as referentes ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), e à educação, à saúde, à Previdência e ao regime legal da infra-estrutura - e, no passado, aos planos econômicos e ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), que ensejaram milhares de processo que congestionaram os tribunais por longos anos.
Os remédios constitucionais que já existem - a ação direta de inconstitucionalidade (Adin), a ação declaratória de constitucionalidade (ADC) e a argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) - permitem que a corte suprema possa exercer, direta e originariamente, o controle da constitucionalidade das políticas públicas, como o fez no recente caso das células-tronco, assegurando a eficiência do sistema judiciário e a segurança jurídica que passaram a ser verdadeiros princípios constitucionais.
Cabe, assim, reservar à corte suprema a apreciação direta de todos os problemas constitucionais referentes às políticas públicas, assegurando a uniformidade das decisões judiciais. Permitir-se-ia, assim, o descongestionamento dos tribunais, que já está começando a ocorrer em virtude da utilização das súmulas vinculantes e da aplicação do requisito da repercussão geral, para exame dos recursos pelo Supremo. Trata-se, agora, de complementar essas inovações construtivas com a garantia de uniformidade no exame da constitucionalidade das políticas públicas que só o Supremo pode apreciar e decidir, para que sejam aplicadas em todos os casos em todo o território nacional, dando ao nosso direito a necessária coerência e assegurando a tomada de decisões em tempo razoável pelo Poder Judiciário, como determina a Constituição Federal.
Arnoldo Wald é advogado, professor catedrático de direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), membro da Corte Internacional de Arbitragem e autor dos livros "Direito Civil" em seis volumes, "Direto de Parceria" e "Lei de Concessões".

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