sábado, 6 de junho de 2009

Relatando a criação do Observatório da |Justiça Brasileira

Nos dias 2 e 3 de junho de 2009, em Brasilia, a Secretaria de Reforma do Poder Judiciário do Ministério da Justiça promoveu seminário para a implantação do Observatório da Justiça Brasileira, postamos o depoimento de dois participantes desse seminário a respeito de seus resultados.
Observatório da Justiça. Oportunidade de sua criação na semana em que o
meio-ambiente brasileiro sofre uma das suas maiores derrotas






Por Jacques Távora Alfonsin e Antonio Cechin

Dias 2 e 3 deste mês, realizou-se em Brasilia, a convite do Ministério da Justiça,
por sua Secretaria de Reforma do Judiciário, com o apoio da Comissão de Anistia e da
UNB, um Seminário objetivando estudar a viabilidade de criação do “Observatório da
Justiça Brasileira”.

Quatro mesas temáticas, sobre “O sistema judicial brasileiro no contexto de uma
sociedade democrática contemporânea”, “Comunicação social, justiça e cidadania”,
“Movimentos sociais, justiça e democracia”, “Direito e justiça em debate: é possível
uma justiça cidadã?” ouviram e debateram - com autoridades do Poder Judiciário de
diferentes Estados, Tribunais Superiores, como o Superior Tribunal de Justiça,
associações de juízas/es, de promotoras/es, de advogadas/os, integrantes de ONGs e
Movimentos Populares, como o MNDH (Movimento nacional de direitos humanos), o MST, a
Themis, o Cohre, entre outros, - as causas e efeitos das dificuldades que o povo
pobre do país enfrenta no acesso à justiça; do aumento da litigiosidade submetida ao
Judiciário; da extraordinária carga de processos pendentes de julgamento no país e,
consequentemente, da grave acentuação da morosidade processual, em prejuízo
flagrante da
solução justa e legal das lides.

Para se ter uma idéia dos problemas atualmente enfrentados pelo Poder Judiciário
Brasileiro, dois exemplos, entre os muitos que ali foram discutidos, parecem
suficientes. Ao nível dos municípios brasileiros, 60% das nossas comarcas não
dispõem sequer de Defensorias Públicas, deixando a população pobre praticamente sem
defesa dos seus direitos. Se esse dado revela problema grave no acesso à Justiça, um
outro demonstra o estreito gargalo atual de sua saída. Ele aparece no site “Jus
Brasil notícias”, que foi lembrado durante o evento. Num período de dez anos
(1998-2008) o Superior Tribunal de Justiça viu triplicado o número de processos ao
mesmo submetidos. Em 98 esse número era de 101.467 processos; no final de 2008,
354.042. Não há como deixar de reconhecer, diante desses números, que uma tal
sobrecarga não tem como ser vencida, no tempo que um Judiciário célere pretendesse
solucioná-la, pelos trinta e três ministros que o
compõem.

Note-se o paradoxo. Apesar do acesso difícil, o número de processos judiciais
aumenta, ficando claro que não é a maioria do povo pobre, justamente a mais carente
de assistência judiciária, que abarrota os tribunais. Esses e outros dados foram
analisados pelos participantes do Seminário, com a humildade de reconhecer que o
acesso à verdadeira justiça está longe de ser alcançado com o só acesso ao
Judiciário, e esse, enquanto Poder Público, tem também responsabilidade em dividir a
responsabilidade pela solução de problemas que dizem respeito tão direta e
urgentemente com os direitos do povo a quem ele deve servir.

Presente no Seminário, o Professor Boaventura de Sousa Santos lembrou lição que ele
vem pregando há anos, não só em relação ao Poder Judiciário, como em relação a
outros poderes, sobre o que ele chama de “ecologia dos saberes”. Na semana
consagrada ao meio-ambiente, é muito oportuna a analogia que daí pode ser tirada
entre a saúde da nossa natureza, com a saúde da justiça, que o Seminário viu tão
debilitada.

Resumidamente, ensina Boaventura que esta ecologia de saberes permite não só superar
a monocultura do saber científico, como a idéia de que os saberes não científicos
são alternativos ao saber científico. A idéia de alternativa pressupõe a idéia de
normalidade, e esta a de norma, pelo que, sem mais especificações, a designação de
algo como alternativo tem uma conotação latente de subalternidade.
Veja-se em que extensão esse ensino acaba de ser confirmado na votação com que o
senado acaba de aprovar a Medida Provisória 458 que, na linguagem da senadora Marina
Silva, consagra a grilagem na Amazonia legal. Nada do que, para a maioria dos
deputados e senadores, é “alternativo” (no caso, a defesa do meio-ambiente) ao
ímpeto predatório da exploração da terra e da natureza, deve ser levado em conta.

O direito de propriedade que vai ser alcançado, com a tal medida, foi lembrado pela
relatora Katia Abreu, como cláusula pétrea da Constituição Federal e, em nome dela,
que toda a discussão, a respeito, se encerre. Esqueceu-se ela de que a função
social, dentro da qual se insere o respeito devido ao meio ambiente, é princípio
inerente daquele mesmo direito.

As lágrimas de Marina Silva, durante a votação da Medida, hão de ser as mesmas do
povo pobre da Amazonia legal, se ela não for vetada pelo presidente da República. A
interpretação e a aplicação da tal Medida, pretensamente “científica” de
conhecimento da aplicação da lei vai consagrar uma forma de desconhecimento da
injustiça que ela vai gerar.

O seminário, de modo particular na palavra dos movimentos sociais, mostrou que
ignorar esse outro mundo (!) cultural de índias/os, quilombolas, desempregados,
biscateiros, sem-teto e sem-terra, catadores de material, entre outras pessoas que
compõem o extraordinário mosaico de gente pobre do nosso país, não tem mais como ser
atitude reconhecida como legal e justa. Por isso, para que o Poder Judiciário possa
cumprir melhor a sua missão, inclusive para reduzir a distância que lá se comprovou
ainda existir entre ele e aquelas pessoas, recomendou Boaventura três necessárias
providências a seu cargo que, com a licença desse professor, entendemos notavelmente
favoráveis à saúde do “meio-ambiente” no qual se move o Poder Judiciário:
descolonizar a atividade judicial, ainda muito presa a um modelo jurídico alienígeno
de interpretação e de aplicação da lei, estranho à maioria do povo, e que acaba por
desmentir a soberania desse mesmo
povo (art. 1º, parágrafo único da Constituição Federal); democratizar os seus
processos e procedimentos, no sentido não só de ampliar e de tornar mais simples e
eficaz o acesso do maior número de injustiçados à justiça, como permitir mais
agilidade de ação, melhor compreensão da sua linguagem; desmercantilizar as causas
e os efeitos das suas decisões, não se deixando tomar por aqueles que o utilizam em
proveito apenas aparentemente lícito de seus privilégios, garantes reprodutivos de
uma opressão capaz de se disfarçar como legal. Não há uma dessas providências
aconselhadas por Boaventura que não sirva de grave advertência ao que acaba de
acontecer no Senado brasileiro.

No encerramento do Seminário, o Ministro da Justiça Tarso Genro assinou uma portaria
criando um grupo de trabalho que, conforme ele já tenha antecipado na abertura do
Seminário, possa, entre outros objetivos, constituir um espaço público de pesquisa e
elaboração de diagnósticos prévios às reformas normativas do sistema de Justiça”,
“desenvolver estudos que subsidiem políticas para a agilização da prestação
jurisdicional” e “formular e avaliar políticas públicas que garantam os direitos
fundamentais e a participação social”. É de 120 dias o prazo para esse trabalho ser
concluído.

Por tudo isso, não deixa de constituir uma coincidência a ser levada na devida e
séria conta, o fato de esse Seminário ter-se realizado na semana consagrada ao meio
ambiente. Não há exagero em se dizer que, como a defesa do meio-ambiente, a ecologia
dos saberes pode muito bem se aplicar ao Poder Judiciário.

Toda a interdisciplinariedade própria dessa ecologia não há de ter melhor efeito que
não o de, se não eliminar (coisa impossível diante das conhecidas limitações de cada
pessoa e instituição) pelo menos diminuir as causas daquelas decisões, sentenças e
acórdãos que o Seminário ainda detectou como injustas.

Como a defesa do meio ambiente, a dos saberes também pretende um ar mais puro, uma
água mais transparente, que obtenham oxigenar e lavar a interpretação da lei de
vícios históricos que marcam a sua aplicação, permitindo que o Poder Judiciário,
aquecido e iluminado pelo sol da justiça, como o sol e a lua de São Francisco, em
vez de confundir tão frequentemente seu poder sancionatório com a opressão histórica
que a senadora Katia Abreu defende, tome posição efetiva a favor de quem dela é
vítima.

Nenhum comentário: