sábado, 26 de setembro de 2009

CNJ e os atos administrativos

No artigo abaixo, publicado esta quinta-feira no "Globo", o advogado Lauro Schuch critica a atuação regulatória (assimétrica) do CNJ.

--> fonte: http://oglobo.globo.com/opiniao/mat/2009/09/25/decadencia-juridica-767775886.asp


Decadência jurídica


A criação do Conselho Nacional de Justiça objetivava dar maior transparência e agilidade ao Judiciário, enfrentando e corrigindo suas antigas mazelas. É tempo de se avaliar o desempenho desse órgão, e superar algumas distorções que o afastaram dos propósitos de sua criação.

A referência democrática do estado de direito se expressa também pela previsibilidade quanto à aplicação das leis, especialmente a Constituição, e da legalidade dos atos administrativos dos agentes públicos, dotando as relações jurídicas geradas a partir desses comandos de segurança e estabilidade - sob a ótica da revisão dos atos administrativos por vício de forma ou de substância, aplicável o princípio da preclusão administrativa. Esse princípio encontra-se consagrado no art. 54 da lei federal nº 9.784/1999, pelo qual a anulação de atos pela administração demanda comprovada má-fé.

No Supremo Tribunal Federal a matéria foi sedimentada através da voz abalizada de seu atual presidente, ao considerar que "o princípio da possibilidade de anulamento foi substituído pelo da impossibilidade de anulamento, em homenagem à boa-fé e segurança jurídica". Pontificou ainda o citado jurista que "todo o direito positivo é permeado por essa preocupação com o tempo enquanto figura jurídica, para que sua prolongada passagem em aberto não opere como fator de séria instabilidade intersubjetiva ou mesma intergrupal". A tese foi também abraçada pelo Superior Tribunal de Justiça que, após janeiro de 1999, em decorrência da indigitada lei federal nº 9.784/1999, proclamou não ser dado à administração pública rever seus próprios atos quando eivados de nulidade, segundo a lição do ministro César Asfor Rocha, secundado pelo ministro Gilson Dipp.

Seguindo tais conceitos, o Conselho Nacional de Justiça editou no seu Regimento Interno primitivo (art. 95 e seguintes) regra que impedia o próprio órgão de rever atos administrativos praticados no Judiciário, tidos, em tese, como ilegais, desde que decorridos cinco anos de sua prática. Contudo, em direção oposta a esse entendimento consolidado, o CNJ reformou este ano o seu Regimento Interno (art. 91) para contemplar que a administração pública poderia, a qualquer tempo e em afronta ao instituto da preclusão, desconstituir atos que entendesse afrontar diretamente a Constituição.

Temos hoje inusitada situação, no âmbito administrativo do Judiciário, onde o particular só pode demandar a administração pública para anular seus atos no prazo de cinco anos, conforme o vetusto decreto nº20.910/1938 e a Lei da Ação Popular (lei nº 4.717/1965). Já a administração pública poderá anular eternamente um ato que venha considerar defeituoso, sacrificando a segurança jurídica garantida aos cidadãos, instaurando grave instabilidade social. Há que prevalecer o princípio da simetria! A administração pública somente poderia agir no prazo decadencial ofertado ao particular. Essa situação ambígua é bem ao gosto dos regimes totalitários, e constitui instrumento de dominação por vias oblíquas.

Ressalte-se que até mesmo no plano da Ação Declaratória de Constitucionalidade, Ação Direta de Constitucionalidade e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental que tramitam perante o Supremo Tribunal Federal, a lei nº 7.868/1999 (art. 11) reporta-se ao princípio da segurança jurídica, "a justificar a permanência no mundo jurídico de atos administrativos inválidos, quer como valor constitucional a ser ponderado, em determinadas circunstâncias, em cotejo com os princípios da supremacia da Constituição e da nulidade ex tunc da lei inconstitucional", como ponderou o desembargador Rui Stoco, ainda como membro do CNJ, afirmando que só poderia ser vulnerada a estabilidade do ato se a própria Constituição houvesse declarado expressamente esta circunstância, como fez nos arts. 5º e 231º.

Recentemente, em contradição à linha definida na Carta de 1988, o CNJ editou a resolução nº 80/2009, que declarou a vacância dos serviços notariais e de registro cujos atuais responsáveis, mesmo que designados sob a égide de atos legítimos, não tenham sido investidos por meio de concurso público de provas e títulos.

Melhor será que o CNJ cumpra sua vocação de órgão de controle do Judiciário e com isso permita que a sociedade tenha uma Justiça mais rápida e eficaz, do que editar normas que conflitam com a estrutura jurídica vigente, usurpando o poder conferido ao Legislativo de fazer e rever as leis.

LAURO SCHUCH é advogado.

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