No dia 22 de fevereiro de 2007, a promotora de Justiça Patrícia Antunes Martins concluiu e assinou uma ação civil pública contra a Prefeitura de Água Nova, uma cidade com menos de 3 mil habitantes encravada no sertão do Rio Grande do Norte, na região semi-árida do Rio Apodi. Ela pretendia que a juíza da comarca, sediada em Pau dos Ferros, determinasse a demissão do secretário de Saúde de Água Nova, Elias Raimundo de Souza, e do motorista da Prefeitura Francisco Souza do Nascimento – parentes, respectivamente, de um vereador e do vice-prefeito do município. Poderia ter sido apenas mais uma de centenas de ações movidas aqui e ali contra a prática do nepotismo – o benefício de parentes nas contratações, que contraria o princípio constitucional da impessoalidade na administração pública. E poderia ter tido o mesmo destino: ser rejeitada ou ficar vagando sem decisão final.
A ação da promotora Patrícia contra a Prefeitura de Água Nova (uma das nove que ela assinou contra Prefeituras e Câmaras Municipais daquela comarca) teve um destino mais nobre. Um ano depois, aquele caso de nepotismo no sertão do Rio Grande do Norte foi parar no Supremo Tribunal Federal, onde foi tratado com os novos poderes conferidos ao STF pela Constituição e pela Emenda Constitucional 45, de 2004 (Reforma do Judiciário). A ação da promotora Patrícia acabou servindo de base para uma das mais importantes decisões do STF: a proibição definitiva da contratação de parentes até o terceiro grau no serviço público, em todos os poderes e em todas as instâncias.
“O caso de Água Nova começou a partir de uma recomendação do Ministério Público do Rio Grande do Norte, que orientou todos os promotores a atuar nos casos de nepotismo nos municípios”, recorda a promotora. Paraibana de Souza, com 32 anos de idade, casada, dois filhos pequenos, a promotora Patrícia sabe por experiência própria que é corriqueira a prática do nepotismo no interior do país. “Nos pequenos municípios, a luta política é sempre muito intensa”, diz ela, sem eximir de culpa os eleitores que aceitam o rebaixamento dos métodos políticos. “Muitas vezes o próprio eleitor contribui para corromper o processo. Tem eleitor que exige benefício pessoal em troca de voto”, afirma.
Com essa cultura política, que não é exclusiva das localidades menores, não é de estranhar que a ação da promotora tenha sido rejeitada na primeira instância. “O constituinte não proibiu o nepotismo, mas, ao contrário, reservou parte dos cargos da administração pública para ocupação por meio de livre nomeação e exoneração”, escreveu a juíza da comarca de Pau de Ferros, para justificar a legalidade das nomeações de parentes. A promotora Patrícia apelou, perdeu novamente, e o Ministério Público do Rio Grande do Norte apelou ao Tribunal de Justiça do Estado. Novamente o nepotismo foi considerado constitucional. Aí o caso foi parar no STF.
No Supremo, o caso de Água Nova se transformou no Recurso Extraordinário 579.951-4. Seria apenas mais um dos 80 mil recursos contra decisões de segunda instância que chegam ao Supremo todos os anos, se não fosse uma providência do relator, ministro Ricardo Lewandowski. Para o relator, tratava-se de um caso típico de ação em que o resultado não interessa apenas às partes envolvidas – no caso, dois funcionários de um pequeno município –, mas a setores mais amplos da sociedade. É uma situação prevista na Emenda 45, que permite ao STF dar prioridade aos julgamentos com “repercussão geral”. Todas as ações semelhantes param de tramitar nos tribunais, aguardando a decisão sobre o caso líder.
A ação da promotora Patrícia contra a Prefeitura de Água Nova (uma das nove que ela assinou contra Prefeituras e Câmaras Municipais daquela comarca) teve um destino mais nobre. Um ano depois, aquele caso de nepotismo no sertão do Rio Grande do Norte foi parar no Supremo Tribunal Federal, onde foi tratado com os novos poderes conferidos ao STF pela Constituição e pela Emenda Constitucional 45, de 2004 (Reforma do Judiciário). A ação da promotora Patrícia acabou servindo de base para uma das mais importantes decisões do STF: a proibição definitiva da contratação de parentes até o terceiro grau no serviço público, em todos os poderes e em todas as instâncias.
“O caso de Água Nova começou a partir de uma recomendação do Ministério Público do Rio Grande do Norte, que orientou todos os promotores a atuar nos casos de nepotismo nos municípios”, recorda a promotora. Paraibana de Souza, com 32 anos de idade, casada, dois filhos pequenos, a promotora Patrícia sabe por experiência própria que é corriqueira a prática do nepotismo no interior do país. “Nos pequenos municípios, a luta política é sempre muito intensa”, diz ela, sem eximir de culpa os eleitores que aceitam o rebaixamento dos métodos políticos. “Muitas vezes o próprio eleitor contribui para corromper o processo. Tem eleitor que exige benefício pessoal em troca de voto”, afirma.
Com essa cultura política, que não é exclusiva das localidades menores, não é de estranhar que a ação da promotora tenha sido rejeitada na primeira instância. “O constituinte não proibiu o nepotismo, mas, ao contrário, reservou parte dos cargos da administração pública para ocupação por meio de livre nomeação e exoneração”, escreveu a juíza da comarca de Pau de Ferros, para justificar a legalidade das nomeações de parentes. A promotora Patrícia apelou, perdeu novamente, e o Ministério Público do Rio Grande do Norte apelou ao Tribunal de Justiça do Estado. Novamente o nepotismo foi considerado constitucional. Aí o caso foi parar no STF.
No Supremo, o caso de Água Nova se transformou no Recurso Extraordinário 579.951-4. Seria apenas mais um dos 80 mil recursos contra decisões de segunda instância que chegam ao Supremo todos os anos, se não fosse uma providência do relator, ministro Ricardo Lewandowski. Para o relator, tratava-se de um caso típico de ação em que o resultado não interessa apenas às partes envolvidas – no caso, dois funcionários de um pequeno município –, mas a setores mais amplos da sociedade. É uma situação prevista na Emenda 45, que permite ao STF dar prioridade aos julgamentos com “repercussão geral”. Todas as ações semelhantes param de tramitar nos tribunais, aguardando a decisão sobre o caso líder.
No dia 28 de março, Lewandowski submeteu sua opinião aos colegas, acionando o plenário eletrônico, uma novidade adotada quando a ministra Ellen Gracie presidiu o Supremo e promoveu uma reforma administrativa. O plenário eletrônico é um mecanismo de consulta entre ministros, pela intranet. A maioria concordou que o caso de nepotismo tinha repercussão geral e o julgamento foi marcado para agosto. Nove ministros participaram do julgamento final. Por unanimidade, eles deram razão à promotora Patrícia.
Na mesma sessão, o STF julgou uma ação proposta pela Associação dos Magistrados do Brasil (AMB). A entidade dos juízes pedia que fosse confirmada uma decisão administrativa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que proibia a contratação de parentes no Judiciário. A decisão estava sendo contestada em várias ações judiciais. Para resolver a questão, a associação dos juízes foi ao STF com uma Ação Direta de Constitucionalidade (ADC). Trata-se de um dos instrumentos criados pela Constituição para tornar o Supremo mais acessível à sociedade. Desde 1988, sindicatos e entidades com representação nacional podem pedir diretamente ao STF que decida sobre a constitucionalidade de um tema. Antes, essa era uma prerrogativa do procurador-geral da República.
No julgamento da ADC dos juízes, o Supremo entendeu que, a exemplo da Prefeitura de Água Nova, nenhum chefe de poder no país, seja Executivo, Legislativo ou Judiciário, municipal, estadual ou federal, pode nomear parentes para exercer cargos públicos. Ficou aberta uma exceção, para os casos em que o parente exerça um cargo considerado político, de secretário ou equivalente. Para justificar a exceção, o ministro Gilmar Mendes citou o exemplo do presidente americano John Kennedy, que nomeou para procurador-geral o irmão e principal conselheiro. “Irmãos podem estabelecer um plano eventual de cooperação, sem que haja qualquer conotação de nepotismo”, disse Gilmar.
Ao final da sessão, os ministros decidiram transformar aqueles dois julgamentos em uma norma geral, para ser aplicada por todos os tribunais sempre que uma nomeação for questionada. Valendo-se de outra novidade criada pela Emenda 45, o STF editou uma súmula vinculante. Juízes podem até tomar decisões que contrariem as súmulas vinculantes (ninguém pode obrigar um juiz a decidir desta ou daquela forma). Nesse caso, no entanto, a parte prejudicada pode apresentar uma reclamação diretamente ao STF, que fará valer a orientação da súmula.
A Súmula Vinculante número 13, publicada em setembro, desencadeou uma onda de demissões de parentes em todo o país, mas também uma infinidade de manobras para que o nepotismo sobreviva. “Infelizmente, o STF deixou aberta uma brecha”, diz a promotora Patrícia. “Mas foi uma decisão muito importante, porque estávamos numa situação em que havia indefinição”.
O caso de Água Nova não teria sido decidido de maneira tão rápida (para os padrões do Judiciário brasileiro), e com uma repercussão tão importante, sem os novos instrumentos de ação do STF. “A Constituição deu um papel relevante ao Ministério Público e ao Judiciário, mas nem todos os instrumentos estavam disponíveis”, diz o ministro da Defesa, Nelson Jobim, com a experiência de quem foi deputado constituinte, ministro da Justiça e ministro do STF até 2005. Quando assumiu a presidência do Supremo, em 2004, Jobim foi o principal articulador da aprovação da reforma do Judiciário no Congresso. “Havia resistências à adoção da súmula vinculante, especialmente entre juízes e advogados”, afirma. “Conseguimos demonstrar que, conferindo instrumentos mais eficazes para o Judiciário, quem ganha é a democracia”. O aumento dos poderes do Supremo provoca reações dos outros poderes e controvérsias, mas é uma tendência mundial, como mostramos na próxima reportagem.
Armas do Judiciário
Súmula Vinculante
Introduzida em 2004, diz que após muitas decisões iguais o STF pode decidir que aquele entendimento valerá para todas as novas ações semelhantes. Ajuda a reduzir o volume de ações repetidas e impede o uso de recursos para protelar decisões. Já foram editadas súmulas sobre 13 temas, como o fim do nepotismo e a proibição do uso indiscriminado de algemas pela polícia, como ocorreu com o ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta
Mandado de Injunção
Introduzido na Constituição em 1988, é um tipo de ação em que se pede ao STF para decidir assuntos sobre os quais o Congresso não conseguiu fazer leis. É semelhante à Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (Adio). Pode ser proposta por entidades de classe nacionais. O STF já aceitou 12 ações desse tipo. Na de maior repercussão, no ano passado, decidiu que os funcionários públicos estão sujeitos à Lei de Greve do setor privado
ADPF
É a sigla para Argüição por Descumprimento de Preceito Fundamental. Nesse tipo de ação, pede-se ao STF a aplicação de normas constitucionais que não estariam sendo cumpridas. Desde 1988, a ADPF pode ser apresentada por entidades de classe nacionais. Foi no julgamento de uma ADPF proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde que o STF decidiu liberar o uso de células de embriões para pesquisas científicas
Repercussão Geral
Outra novidade da reforma do Judiciário, com a Emenda 45: quando um ministro avalia que o objeto de uma ação tem impacto importante para a sociedade, ele pode pedir prioridade no julgamento. Foi o que aconteceu no caso de contratação ilegal de parentes no setor público, que abriu a pauta do STF no segundo semestre. O ministro relator da ação consulta os colegas por um sistema de correio eletrônico. Com cinco respostas favoráveis, o caso ganha prioridade
Amicus Curiae
Também resultado da Emenda 45, essa expressão em latim pode ser traduzida para “amigo da corte”. Permite que entidades interessadas participem de um julgamento trazendo informações, mesmo não sendo partes diretas da ação. Foi na condição de amicus curiae que a advogada Joênia Batista de Carvalho, índia do povo uapixana, pôde falar na abertura do julgamento sobre a Reserva Raposa–Serra do Sol, em agosto. Ela foi a primeira índia a falar na tribuna do STF
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