Flávio Dino de Castro e Costa
Deputado federal pelo PCdoB, foi juiz federal e deu aulas de direito nas universidades Federal do Maranhão e de Brasília. Mestre em direito público pela Universidade Federal de Pernambuco, foi um dos autores do livro Reforma do Judiciário.
Sinal amarelo para o ativismo
A tribunalização do processo de decisões no Brasil decorre do modelo político e jurídico aprovado pelo constituinte de 1988. A Constituição deu um novo papel ao Ministério Público, ampliou os direitos e o acesso à Justiça. A conseqüência foi um maior protagonismo do Judiciário, quantitativa e qualitativamente, que produziu muito mais frutos positivos do que negativos. Agora, acende-se a luz amarela. O ativismo em excesso torna-se perigoso para a democracia.
Nos últimos vinte anos, a Justiça ultrapassou a dimensão dos conflitos inter-individuais e atua hoje nos conflitos que envolvem direitos coletivos e difusos, conflitos econômicos e políticos. Os juízes podem e devem influenciar o conteúdo de políticas públicas. Vamos lembrar apenas três exemplos de políticas importantes, decididas judicialmente: a proibição do fumo em aeronaves; a distribuição gratuita de remédios anti-HIV e a extensão de benefícios da Previdência a trabalhadores rurais.
Contudo, a pergunta é: podem agentes públicos não eleitos ter o monopólio das decisões sobre políticas públicas, darem sempre a última palavra? Este é o risco que estamos correndo, num quadro em que um dos três Poderes, o Legislativo, encontra-se fragilizado. O poder é abusivo por natureza e só é limitado por outro poder. Diante da crise decisória no Congresso, quem avançou primeiro sobre o vazio foi o Executivo, com a intensa edição de medidas provisórias. Em seguida veio o Judiciário, valendo-se de um discurso que busca uma dupla legitimidade: se o Congresso não faz leis, alguém tem que fazê-las; e se os parlamentares não gozam do apreço público, “não querem trabalhar”, o Judiciário tem que substituí-lo.
Por uma coincidência histórica, o presidente Lula indicou a maioria dos ministros do atual STF, que se somaram a outros conhecidos ativistas que lá já estavam. Hoje o STF tem a composição mais ativista de sua história. É natural que os ministros discutam políticas públicas, como a utilização de células embrionárias em pesquisa científica. Mas é inquietante que 11 ministros transformem essa discussão num arbitramento judicial acerca do momento em que a vida começa. Há votos nos Tribunais que parecem leis, normatizando o futuro com múltiplos parágrafos, incisos e alíneas, entretanto com um grave defeito: não são frutos de um processo legislativo.
Quando o órgão de cúpula lidera os excessos, este é o sinal que chega a toda a estrutura do Judiciário, dando margem à multiplicação de excessos. Quando, por exemplo, o Tribunal Superior Eleitoral edita uma "lei" sobre fidelidade partidária, juízes eleitorais espalhados pelo Brasil são estimulados a editar normas locais para o processo eleitoral, provocando confusão e insegurança jurídica.
Com exceção de dois momentos, no nascimento da República e nos anos imediatamente seguintes ao golpe militar de 1964, o comportamento característico do STF sempre foi de auto-contenção, danosa em muitos momento da nossa história. Há que se encontrar um meio-termo, no qual o Judiciário tenha protagonismo, porém deixe uma margem livre para o exercício razoável da política e valorize as opções legislativas ou governamentais. Nas circunstâncias de hoje, começam a se evidenciar os males do ativismo sem limites.
A diferença entre o remédio e o veneno está na dosagem. A luz amarela se acende porque o ativismo pode se transformar em salvacionismo, em messianismo, já evidenciado em fundamentações de algumas decisões judiciais. Precisamos de juízes, não de justiceiros. A própria instituição judiciária deve estar alerta para uma tendência de passar do ponto e gerar crises institucionais. Duas são as soluções. Primeiro, o poder político, à frente o Congresso Nacional, deve se revalorizar e ser revalorizado. Segundo, a magistratura brasileira, liderada pelo STF, deve se indagar até onde alargar as suas fronteiras.
Não
Deputado federal pelo PCdoB, foi juiz federal e deu aulas de direito nas universidades Federal do Maranhão e de Brasília. Mestre em direito público pela Universidade Federal de Pernambuco, foi um dos autores do livro Reforma do Judiciário.
Sinal amarelo para o ativismo
A tribunalização do processo de decisões no Brasil decorre do modelo político e jurídico aprovado pelo constituinte de 1988. A Constituição deu um novo papel ao Ministério Público, ampliou os direitos e o acesso à Justiça. A conseqüência foi um maior protagonismo do Judiciário, quantitativa e qualitativamente, que produziu muito mais frutos positivos do que negativos. Agora, acende-se a luz amarela. O ativismo em excesso torna-se perigoso para a democracia.
Nos últimos vinte anos, a Justiça ultrapassou a dimensão dos conflitos inter-individuais e atua hoje nos conflitos que envolvem direitos coletivos e difusos, conflitos econômicos e políticos. Os juízes podem e devem influenciar o conteúdo de políticas públicas. Vamos lembrar apenas três exemplos de políticas importantes, decididas judicialmente: a proibição do fumo em aeronaves; a distribuição gratuita de remédios anti-HIV e a extensão de benefícios da Previdência a trabalhadores rurais.
Contudo, a pergunta é: podem agentes públicos não eleitos ter o monopólio das decisões sobre políticas públicas, darem sempre a última palavra? Este é o risco que estamos correndo, num quadro em que um dos três Poderes, o Legislativo, encontra-se fragilizado. O poder é abusivo por natureza e só é limitado por outro poder. Diante da crise decisória no Congresso, quem avançou primeiro sobre o vazio foi o Executivo, com a intensa edição de medidas provisórias. Em seguida veio o Judiciário, valendo-se de um discurso que busca uma dupla legitimidade: se o Congresso não faz leis, alguém tem que fazê-las; e se os parlamentares não gozam do apreço público, “não querem trabalhar”, o Judiciário tem que substituí-lo.
Por uma coincidência histórica, o presidente Lula indicou a maioria dos ministros do atual STF, que se somaram a outros conhecidos ativistas que lá já estavam. Hoje o STF tem a composição mais ativista de sua história. É natural que os ministros discutam políticas públicas, como a utilização de células embrionárias em pesquisa científica. Mas é inquietante que 11 ministros transformem essa discussão num arbitramento judicial acerca do momento em que a vida começa. Há votos nos Tribunais que parecem leis, normatizando o futuro com múltiplos parágrafos, incisos e alíneas, entretanto com um grave defeito: não são frutos de um processo legislativo.
Quando o órgão de cúpula lidera os excessos, este é o sinal que chega a toda a estrutura do Judiciário, dando margem à multiplicação de excessos. Quando, por exemplo, o Tribunal Superior Eleitoral edita uma "lei" sobre fidelidade partidária, juízes eleitorais espalhados pelo Brasil são estimulados a editar normas locais para o processo eleitoral, provocando confusão e insegurança jurídica.
Com exceção de dois momentos, no nascimento da República e nos anos imediatamente seguintes ao golpe militar de 1964, o comportamento característico do STF sempre foi de auto-contenção, danosa em muitos momento da nossa história. Há que se encontrar um meio-termo, no qual o Judiciário tenha protagonismo, porém deixe uma margem livre para o exercício razoável da política e valorize as opções legislativas ou governamentais. Nas circunstâncias de hoje, começam a se evidenciar os males do ativismo sem limites.
A diferença entre o remédio e o veneno está na dosagem. A luz amarela se acende porque o ativismo pode se transformar em salvacionismo, em messianismo, já evidenciado em fundamentações de algumas decisões judiciais. Precisamos de juízes, não de justiceiros. A própria instituição judiciária deve estar alerta para uma tendência de passar do ponto e gerar crises institucionais. Duas são as soluções. Primeiro, o poder político, à frente o Congresso Nacional, deve se revalorizar e ser revalorizado. Segundo, a magistratura brasileira, liderada pelo STF, deve se indagar até onde alargar as suas fronteiras.
Não
Luís Roberto Barroso
Luís Roberto Barroso, professor titular de direito constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). É mestre em direito pela Universidade de Yale, nos EUA, e tem especialização em direito pelas universidades de Harvard e Georgetown. É autor de dez livros de direito.
Princípios, e não política
O Poder Judiciário e o Supremo Tribunal Federal (STF) vivem, nos últimos anos, uma venturosa ascensão política e institucional. Sob a Constituição de 1988, com a redemocratização e os avanços da cidadania, aumentou a demanda por justiça no país. As disputas mais diversas são hoje submetidas às instâncias judiciais. Sem surpresa, juízes e tribunais passaram a ocupar um espaço importante no imaginário social. No geral, têm se saído bem.
A judicialização da vida no Brasil tem um conjunto de causas determinantes, dentre as quais se destacam duas. A primeira está no modelo de Constituição analítica adotado entre nós, que trata diretamente de questões antes deixadas para o debate político e para a legislação ordinária. Está tudo lá: administração pública, educação, saúde, previdência, segurança, meio-ambiente, televisão, índios e muito mais. Colocar na Constituição significa retirar da política e trazer para o mundo do direito e das ações judiciais. A tendência, que é mundial, foi exacerbada entre nós.
A segunda causa se relaciona com a possibilidade de um grande número de órgãos públicos e entidades privadas proporem ações constitucionais diretamente no STF. O elenco inclui governadores, partidos políticos, entidades de classe e confederações sindicais. Não há similar no mundo. É por essa via que chegaram à Corte, somente neste ano, questões moral e politicamente sensíveis, como pesquisas com células-tronco embrionárias, nepotismo e demarcação de terras indígenas, em meio a muitas outros. Na fila estão casos como a interrupção da gestação de fetos anencefálicos e uniões homoafetivas.
A judicialização, como bem se vê, não é uma opção ideológica do Judiciário, mas uma escolha do constituinte. Fenômeno próximo, mas distinto, é o ativismo judicial. Consiste ele em uma maneira expansiva de interpretar a Constituição, levando seus princípios a situações que não foram expressamente disciplinadas pelo constituinte ou pela legislação ordinária. O ativismo judicial se instala, normalmente, em momentos de retração do Poder Legislativo. Entre nós, pode ser ilustrado em algumas decisões do STF, como a que impôs fidelidade partidária ou a que estendeu a vedação do nepotismo ao Executivo e ao Legislativo.
É positivo que os tribunais brasileiros estejam satisfazendo demandas da sociedade que ficariam frustradas sem a sua intervenção. Mas juízes não são eleitos e há limites a essa atuação, sob pena de se comprometer a legitimidade democrática. Interpretar a Constituição não é o mesmo que fazer política, só que com outro nome. O que confere autoridade e credibilidade às decisões judiciais é que elas se fundam em princípios e na razão pública, não em escolhas políticas. Quando o Legislativo e o Executivo tenham atuado nos limites da Constituição e das leis, não cabe ao Judiciário sobrepor a sua vontade. Os protagonistas da vida política devem ser os que têm votos.
Pessoalmente, gosto do modelo de justiça constitucional brasileiro e acho que o ativismo judicial tem sido parte da solução, e não do problema. Mas ele é um antibiótico poderoso, cujo uso deve ser eventual e controlado. Em dose excessiva, há risco de se morrer da cura. A expansão do Judiciário não deve desviar a atenção da real disfunção que aflige a democracia brasileira: a crise de legitimidade, representatividade e funcionalidade do Poder Legislativo. Precisamos de reforma política. E essa não pode ser feita por juízes.
Luís Roberto Barroso, professor titular de direito constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). É mestre em direito pela Universidade de Yale, nos EUA, e tem especialização em direito pelas universidades de Harvard e Georgetown. É autor de dez livros de direito.
Princípios, e não política
O Poder Judiciário e o Supremo Tribunal Federal (STF) vivem, nos últimos anos, uma venturosa ascensão política e institucional. Sob a Constituição de 1988, com a redemocratização e os avanços da cidadania, aumentou a demanda por justiça no país. As disputas mais diversas são hoje submetidas às instâncias judiciais. Sem surpresa, juízes e tribunais passaram a ocupar um espaço importante no imaginário social. No geral, têm se saído bem.
A judicialização da vida no Brasil tem um conjunto de causas determinantes, dentre as quais se destacam duas. A primeira está no modelo de Constituição analítica adotado entre nós, que trata diretamente de questões antes deixadas para o debate político e para a legislação ordinária. Está tudo lá: administração pública, educação, saúde, previdência, segurança, meio-ambiente, televisão, índios e muito mais. Colocar na Constituição significa retirar da política e trazer para o mundo do direito e das ações judiciais. A tendência, que é mundial, foi exacerbada entre nós.
A segunda causa se relaciona com a possibilidade de um grande número de órgãos públicos e entidades privadas proporem ações constitucionais diretamente no STF. O elenco inclui governadores, partidos políticos, entidades de classe e confederações sindicais. Não há similar no mundo. É por essa via que chegaram à Corte, somente neste ano, questões moral e politicamente sensíveis, como pesquisas com células-tronco embrionárias, nepotismo e demarcação de terras indígenas, em meio a muitas outros. Na fila estão casos como a interrupção da gestação de fetos anencefálicos e uniões homoafetivas.
A judicialização, como bem se vê, não é uma opção ideológica do Judiciário, mas uma escolha do constituinte. Fenômeno próximo, mas distinto, é o ativismo judicial. Consiste ele em uma maneira expansiva de interpretar a Constituição, levando seus princípios a situações que não foram expressamente disciplinadas pelo constituinte ou pela legislação ordinária. O ativismo judicial se instala, normalmente, em momentos de retração do Poder Legislativo. Entre nós, pode ser ilustrado em algumas decisões do STF, como a que impôs fidelidade partidária ou a que estendeu a vedação do nepotismo ao Executivo e ao Legislativo.
É positivo que os tribunais brasileiros estejam satisfazendo demandas da sociedade que ficariam frustradas sem a sua intervenção. Mas juízes não são eleitos e há limites a essa atuação, sob pena de se comprometer a legitimidade democrática. Interpretar a Constituição não é o mesmo que fazer política, só que com outro nome. O que confere autoridade e credibilidade às decisões judiciais é que elas se fundam em princípios e na razão pública, não em escolhas políticas. Quando o Legislativo e o Executivo tenham atuado nos limites da Constituição e das leis, não cabe ao Judiciário sobrepor a sua vontade. Os protagonistas da vida política devem ser os que têm votos.
Pessoalmente, gosto do modelo de justiça constitucional brasileiro e acho que o ativismo judicial tem sido parte da solução, e não do problema. Mas ele é um antibiótico poderoso, cujo uso deve ser eventual e controlado. Em dose excessiva, há risco de se morrer da cura. A expansão do Judiciário não deve desviar a atenção da real disfunção que aflige a democracia brasileira: a crise de legitimidade, representatividade e funcionalidade do Poder Legislativo. Precisamos de reforma política. E essa não pode ser feita por juízes.
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