A "Folha de São Paulo" de 24 de dezembro de 2008 publica a seguinte entrevista do Presidente do CNJ Min. Gilmar Ferreira Mendes trançando perspectivas para 2009:
Presidente do STF anuncia campanha nacional por ressocialização e diz que órgão vai contratar 40 ex-detentos como motoristas
A RESSOCIALIZAÇÃO de ex-detentos será uma das metas do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) para o próximo ano. Mutirões organizados pela entidade em quatro Estados resultaram na soltura de cerca de mil pessoas que continuavam detidas irregularmente. Para o presidente do conselho e do STF (Supremo Tribunal Federal), ministro Gilmar Mendes, o objetivo é envolver a sociedade. A partir de janeiro, 40 egressos do sistema carcerário trabalharão como motoristas da corte máxima da Justiça por cerca de R$ 500 por mês. "Estamos dando o sinal de que é possível fazer algo."
Em setembro, reportagem da Folha, revelou que pelo menos 9.000 pessoas seguiam atrás das grades, apesar de já terem cumprido pena condenatória.
Na maior parte dos casos, a soltura só não tinha ocorrido por falta de defensores públicos que comunicassem ao juiz o cumprimento da pena.
"Queremos dar uma solução para essas situação, que é vergonhosa", disse Mendes, que completará 53 anos no dia 30. A campanha do CNJ vai ao ar a partir de segunda-feira.
Em 2009, o STF deverá se debruçar sobre temas polêmicos, como a união homoafetiva e o poder de investigação do Ministério Público.
O ministro, que concedeu entrevista à Folha em seu gabinete, disse estar satisfeito com o trabalho na corte e não ter pretensão em disputar qualquer cargo político em 2010.
FOLHA - Em quantos Estados houve mutirões carcerários e quais os resultados obtidos pelo CNJ?
MENDES - Fizemos no Rio de Janeiro, no Maranhão, no Piauí e no Pará -este ainda em execução. Foram libertadas mais de mil pessoas, o que representa três presídios médios. São pessoas que estavam presas indevidamente. Há muitos casos de prisões provisórias calcadas em inquéritos, sem a conclusão da investigação -é o quadro do Piauí. Houve casos de pessoas que tinham cumprido pena, mas ficaram outros quatro anos além do previsto -é um caso do Maranhão. Então, tentamos fazer um trabalho que supere de forma definitiva essa situação vergonhosa. Queremos informatizar as varas de execução criminal por meio de um programa concebido pelo Tribunal de Justiça de Sergipe.
FOLHA - Uma das queixas é a falta de assistência jurídica.
MENDES - Estamos ajudando a estruturar órgãos de assistência judicial calcados no trabalho voluntário, por meio de convênios com universidades. Porque, ainda que se avance no número de defensores, e temos avançado, esse número continua muito restrito. Temos 5.000 defensores no Brasil. No sistema penitenciário são cerca de 400 mil pessoas, sendo 96% ou 97% réus pobres. Aí vem todo esse debate sobre Justiça de classe. Não temos Justiça de classe no Brasil. Os pedidos que chegam são atendidos. Temos uma grande deficiência no que concerne à assistência judiciária, que não pode ser resolvida apenas com a atuação das defensorias, é preciso que a sociedade se manifeste.
FOLHA - Os voluntários já atuam?
MENDES - Esse trabalho já existe nos Juizados Especiais Federais. No Rio Grande do Sul temos hoje um sistema em pleno funcionamento. Vamos começar com o piloto na Penitenciária de Pedrinhas, no Maranhão, com o apoio do Tribunal de Justiça. É fundamental deixar claro que todo esse debate, existência de presos sem defesa e cumprimento de pena além do prazo fixado, decorre da falta de assistência judiciária adequada. Precisamos buscar alternativas, que pode ser uma estruturação das defensorias, mas, em muitos casos, isso não se dará em tempo adequado. Por isso, sugerimos às defensorias que coordenem essa legião de voluntários. Estamos chamando a sociedade a participar.
FOLHA - A contratação de ex-detentos, como o STF fará agora com 40 ex-presos, será incentivada?
MENDES - Aqui no Distrito Federal temos alguns órgãos, como o Ministério da Justiça, que têm pessoas egressas do sistema carcerário ou em regime semi-aberto ou aberto. O STF celebrou o convênio dando o sinal de que é possível fazer algo. Estamos lançando uma campanha na TV, com apoio do CNJ, chamando a sociedade a refletir sobre essa questão. Esse programa de reinserção pode evitar a reincidência. Os colegas que acompanham esse trabalho ficaram pasmos com a falta de estrutura. Quando o preso obtém a liberdade, não tem roupa para sair do presídio nem dinheiro para pagar um ônibus. Vira presa fácil. A assistência jurídica, muitas vezes, é dada pela organização criminosa. Estamos mexendo numa estrutura muito complexa e que exige a participação de todos.
FOLHA - É a ausência do Estado...
MENDES - Completa. E a da sociedade também, porque a sociedade tem uma grande responsabilidade nesse processo. Por razões compreensíveis, a sociedade nutre um grande desprezo por essas pessoas. Talvez esse sentimento contamine o Judiciário. Quando se visita um presídio, as pessoas se chocam com as condições precárias. De quem é a responsabilidade? De todos, inclusive do Judiciário. O ministro Tarso Genro [Justiça] disse que há mais de dez presídios com a construção suspensa por liminares ou por decisões do TCU [Tribunal de Contas da União]. Não vou entrar no mérito, mas o fato é que há carência de vagas e há decisões desencontradas paralisando as obras. Precisamos buscar formas de coibir os abusos sem parar a construção dos presídios, que são extremamente necessários para resolver um problema crônico.
FOLHA - Quais as metas para 2009?
MENDES - O CNJ vem trabalhando intensamente na informatização, no processo virtual. A questão carcerária, sem dúvida, seguirá como um tema prioritário. Avançamos muito no que concerne ao cadastro de adoção, um projeto simples que faz o encontro de pretendentes à adoção com eventuais adotados. Há o tema da conciliação, que é a busca de soluções alternativas para as demandas, que foi um sucesso neste ano, com quase R$ 1 bilhão em acordos.
FOLHA - Em 2008, uma marca do STF foi o ativismo judicial. O que pode ser esperado em 2009?
MENDES - O tribunal tem sido muito criativo no que concerne a técnicas de decisão. Tivemos a questão da greve, uma decisão diferente, que mudou um pouco o tema [equiparou a greve no setor público às normas em vigor para a esfera privada]. Tivemos a questão dos municípios declarados inconstitucionais [o STF deu prazo para o Congresso regulamentar as cidades criadas por leis estaduais]. Ou ainda o caso da fidelidade partidária, em que o STF recomendou ao TSE [Tribunal Superior Eleitoral] a edição de uma norma para ter um devido processo legal sob pena de perder o mandato. Agora, na questão da Raposa/Serra do Sol [RR], também o STF está fixando as condicionantes para uma demarcação rígida. Essa postura ativa deve subsistir nos próximos tempos. Isso não traduz um repúdio à atividade do Congresso, ao contrário, o STF tem estimulado o Legislativo a assumir suas funções. Não há nenhuma animosidade, até porque todos têm consciência de que não há democracia sem política e sem políticos.
FOLHA - Como o STF deverá se posicionar sobre a questão do poder de investigação do Ministério Público.
MENDES - Não posso antecipar. É muito provável que essa discussão comece no primeiro semestre. É um tema importante. Passados 20 anos da Constituição, o Ministério Público assumiu um papel diferenciado e importante. Há muitas questões que hoje geram conflito, uma colisão com a atividade policial. Entendo que o STF vai se posicionar com clareza até porque a questão é delicada. O fundamental é que, se essas investigações forem admitidas, ocorram dentro dos paradigmas do Estado de direito. O que não pode haver é investigação sigilosa, secreta e heterodoxa.
FOLHA - Quais outros temas que estarão na pauta do STF em 2009?
MENDES - A questão tributária, a questão da importação de pneus usados, o diploma de jornalista, a lei de imprensa e todos os temas que surgirem eventualmente. Discutiremos ainda a união homoafetiva. Acho que a sociedade está madura para discutir isso, não sei se contra ou a favor.
FOLHA - Que avaliação o sr. faz do caso Satiagraha?
MENDES - Terminou da melhor maneira possível. Tal como eu afirmava desde o início, a posição correta foi a tomada por mim durante o período de recesso do STF, que foi confirmada por um escore expressivo no plenário. Nesta questão, o tema está cabalmente resolvido e superado. Resolvemos bem um tipo de problema que estava se desenvolvendo e poderia dar ensejo a distorções no sistema policial e no judicial, que era a possibilidade de tribunais superiores ficarem jungidos a decisões de juízes, de policiais ou de procuradores. O tribunal fixou com clareza qual deve ser o norte neste tipo de matéria. O tribunal constitucional fixa a interpretação e não se submete a esse tipo de arreganho.
FOLHA - O que o sr. espera do procedimento aberto no CNJ contra o juiz Fausto De Sanctis, que decretou a prisão de Daniel Dantas?
MENDES - Vamos examinar a questão. Quero deixar claro que o que se discutiu aqui não foi só o caso Dantas. Os juízes se rebelaram contra desembargadores em São Paulo, não prestaram informações ao próprio relator. Estava se desenhando um novo modelo, que não sei qual seria porque não existe no mundo. O conúbio juiz-delegado-promotor, que resultava em enfrentamento e talvez estivesse sendo testado em grande estilo, foi derrotado. Não falo só sobre este caso [Satiagraha], mas sobre um modelo que se desenhava com suas conexões políticas, com envolvimento de polícia, da Abin e seus direcionamentos.
FOLHA - O sr. recebeu algum comunicado do Gabinete de Segurança Institucional sobre o arquivamento da sindicância feita na Abin sobre o grampo de uma conversa mantida entre o senhor e um parlamentar?
MENDES - Não. Temos de aguardar. A PF também está investigando este assunto. Aquilo que já foi revelado sobre a participação da Abin é suficientemente grave nesse episódio.
FOLHA - A Procuradoria diz que a parceria Abin-PF é válida pois são dois órgãos ligados ao Estado.
MENDES - Qualquer sujeito que tenha passado por um jardim de infância jurídico sabe que não há previsão no texto constitucional para que essa função seja exercida pela Abin. A Abin presta contas a quem? Ao Executivo. Não presta contas ao Judiciário, não é polícia judiciária. O mecanismo de controle se distorce por completo. Ela pode usar isso para outras finalidades. Chegam notícias de que estavam acumulando informações para finalidades outras, até o uso nas eleições de 2010, sabe-se lá. Quem controla esse processo? Começamos com a informação de que havia dois ou três colaboradores da Abin. Agora falam em 82 pessoas. Houve esse tipo de colaboração em outros episódios? Não sabemos. Como se fazia a colaboração? Perguntei isso na audiência com o presidente da República e com o general [Jorge Felix]. [A resposta] foi que isso se deu a pedido do delegado, num plano absolutamente inferior. Uma colaboração realmente informal, parece a colaboração entre o verdureiro e o padeiro do bairro para que um empreste troco ao outro. É algo chocante. Pode ter colaboração? Pode, com disciplina.
FOLHA - E para 2010, o senhor tem pretensões políticas?
MENDES - Eu? Pretensão política? Na verdade, não tenho nenhuma pretensão. Quero ser um bom presidente do STF, depois eu volto para a bancada e continuo trabalhando.
FOLHA - Nem em um eventual governo José Serra (PSDB)?
MENDES - Não, não tenho nenhuma pretensão política. Estou aqui bem satisfeito com política judicial mesmo (risos).
quarta-feira, 24 de dezembro de 2008
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário