quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

O momento cosmopolita

Texto de Ulrich Beck publicado pela revista Com Ciência sob a responsabilidade da SBPC em dezembro de 2008. Leiam e consulte a revista!!!

Que comédia impagável tem se desdobrado nas conversas de nível internacional no presente! Eu estou, é claro, falando sobre a crise financeira em curso. Durante a noite, a idéia missionária do Ocidente, a economia de livre mercado, que justificou nosso aborrecimento em relação ao comunismo, assim como nossa lacuna filosófica sobre o sistema chinês atual, desmoraram. Com o fanatismo dos convertidos, banqueiros – agora "banksters" uma fusão de banqueiro com ganster aos olhos do público – estão exigindo a intervenção do Estado para cobrir suas perdas. Então, será que a forma estatal chinesa de gerir como a indústria privada, até aqui ridicularizada, maldita e temida, também começa a encontrar seu caminho nos centros anglo-saxões do capitalismo laissez-faire? Como podemos explicar esse poder revolucionário de riscos financeiros globais?
Nesta conferência quero investigar a ironia do risco. O risco é ambivalência. Estar em risco é a maneira de ser e de governar no mundo da modernidade; estar em risco global é a condição humana no início do século XXI. Mas, contra a natureza do sentimento de desgraça atualmente difundido, gostaria de perguntar: qual artifício da história é igualmente inerente à sociedade de risco e emerge com sua realização? Ou, formulando de maneira mais firme: há uma função iluminadora, um “momento cosmopolita da sociedade de risco mundial? Assim, quais são as oportunidades da mudança climática e da crise financeira, e que formato elas tem?
Há uma nostalgia incorporada nas fundações do pensamento sociológico europeu, que nunca desapareceu. Talvez, paradoxalmente, essa nostalgia pode ser superada com a teoria da sociedade de risco mundial. Meu objetivo é uma teoria nova, não nostálgica, crítica, para olharmos para o passado e futuro da modernidade. Em meu argumento quero manter as duas visões contraditórias da modernidade – auto-destruição e a capacidade de recomeçar – em equilíbrio uma com a outra. Gostaria de demonstrar isso em três etapas (contando com resultados de pesquisa empírica do Munich Research Centre "Reflexive Modernization" Centro de Pesquisa “Modernização Reflexiva" de Munique):
1. Velhos perigos – novos riscos: o que há de novo sobre a sociedade de risco?
2. “Momento cosmopolita": o que isso significa?
3. Conseqüências: há necessidade de uma mudança de paradigma nas ciências sociais?*
1. Perigos antigos – novos riscos: o que há de novo sobre sociedade de risco?
A sociedade moderna se tornou uma sociedade de risco à medida que se ocupa, cada vez mais, em debater, prevenir e administrar os riscos que ela mesma produziu. Isso pode ocorrer, muitos objetarão, mas é indicativo de uma histeria e de uma política do medo incitadas e agravadas pelos meios de comunicação de massa. Ao contrário, alguém que olha sociedades européias, estando de fora, não teria que reconhecer que os riscos que nos acometem são riscos luxuosos, mais do que qualquer outra coisa? Apesar de tudo, nosso mundo parece muito mais seguro do que aquele, por exemplo, das regiões da África, do Afeganistão ou do Oriente Médio dilaceradas pela guerra. As sociedades modernas não são distinguidas exatamente pelo fato de serem, em grande medida, bem sucedidas em manter contingências e incertezas sob controle, por exemplo no que diz respeito aos acidentes, à violência e à doença?
Tão verdadeiro como todas essas observações possam ser, falta-lhes o ponto mais óbvio sobre o risco: isto é, a distinção chave entre risco e catástrofe. Risco não significa catástrofe. Risco significa a antecipação da catástrofe. Os riscos existem em um estado permanente de virtualidade, e transformam-se “atuais" somente até o ponto em que são antecipados. Riscos não são "reais", eles estão se tornando "reais" (Joost van Loon). Neste momento em que os riscos se tornam reais – por exemplo, na forma de um ataque terrorista – eles deixam de ser riscos e tornam-se catástrofes. Os riscos já estão em outras partes: na antecipação de novos ataques, nas mudanças climáticas ou em uma crise financeira potencial. Riscos são sempre eventos ameaçadores. Sem técnicas de visualização, sem formas simbólicas, sem suportes, sem meios de comunicação de massa, etc, os riscos não são nada. Em outras palavras, é irrelevante se vivemos em um mundo que esteja de fato, ou em alguma medida, "objectivamente" mais seguro do que qualquer outro mundo; se a destruição e os desastres são antecipados, então isso produz uma compulsão para a ação.
Isso esconde, por sua vez, uma ironia, a ironia da promessa da segurança dada por cientistas, empresas e governos, que, de maneira extraordinária, contribui para um aumento nos riscos. Percebendo que são acusados em público por permitirem o risco, ministros saltam em rios ou fazem com que seus filhos comam hambúrgeres, para "provarem" que tudo está "absolutamente" seguro e sob controle – ao que se segue, do mesmo modo que a noite segue o dia, que, a cada dúvida levantada, cada acidente viola a base do inabalável direito à segurança que parece ser prometido.
Em minha primeira publicação, em 1986, descrevi a Sociedade de risco (1992) como "uma condição estrutural inegável da industrialização avançada" – e critiquei a "moralidade matematizada" do pensamento do especialista e do discurso público sobre “fatores de risco". Enquanto a orientação política sobre a avaliação de risco pressupunha a viabilidade dos riscos, apontei que mesmo o cálculo objectivo mais contido e moderado sobre as implicações do risco envolve uma política, uma ética e uma moralidade por trás. O risco “não é redutível ao produto da probabilidade da ocorrência multiplicada pela intensidade e pelo alcance do dano potencial'. É antes, um fenômeno socialmente construído, no qual algumas pessoas têm uma capacidade maior de definir riscos do que outras. Não são todos os atores que tiram proveito da reflexividade do risco – somente aqueles com o real escopo para definir seus próprios riscos. A exposição ao risco está substituindo a classe como a principal desigualdade da sociedade moderna, em função de como o risco é reflexivamente definido por atores: “a definição das relações na sociedade de risco devem ser concebidas analogamente às relações de produção de Marx". As desigualdades da definição permitem atores poderosos de maximizar riscos para os outros e minimizar os riscos para “si mesmos". A definição de risco é, essencialmente, um jogo de poder. Isto é especialmente verdadeiro para a sociedade de risco na qual os governos ocidentais ou os poderosos atores econômicos produzem e definem riscos para os outros.
O risco aparece no nível internacional quando Deus permite. Riscos pressupõem decisões humanas. Eles têm consequências duplas Janus-faced, em parte positivas, em parte negativas, de decisões e intervenções humanas. Com relação aos riscos é inevitável levantar a questão, altamente explosiva, sobre a responsabilização e responsabilidade sociais, e isto é igualmente verdadeiro onde as regras de prevalência permitem a responsabilidade somente em casos extremamente excepcionais. As reconhecidas decisões governadas pelas raízes sociais do risco fazem com que seja completamente impossível exteriorizar o problema da responsabilidade. Alguém, por outro lado, que acredita em um Deus pessoal, tem à sua disposição um espaço de manobra e um significado para suas ações face às ameaças e às catástrofes. Através das orações e dos bons trabalhos as pessoas podem ganhar o favor e a remissão de Deus e, desta forma, contribuir ativamente para sua própria salvação, mas também àquela de sua família e comunidade. Há, consequentemente, uma conexão próxima entre a secularização e o risco. Quando Nietzsche anuncia: Deus está morto, portanto há a – irônica – consequência que, a partir de agora, os seres humanos devem encontrar (ou inventar) suas próprias explicações e justificativas para os desastres que os ameaçam.
A teoria da sociedade de risco mantém, entretanto, que as sociedades modernas são moldadas por novos tipos de riscos, que suas fundações são agitadas pela antecipação global de catástrofes globais. Tais percepções do risco global são caracterizadas por três características:
1. Des-localização: suas causas e conseqüências não são limitadas a uma posição ou espaço geográfico, eles são, em princípio, onipresentes.
2. Incalculabilidade: suas consequências são, em princípio, incalculáveis; na base é uma questão de riscos "hipotéticos", que não são menos baseados na falta de conhecimento induzida pela ciência e dissidência normativa.
3. Não-compensabilidade: o sonho da segurança da primeira modernidade foi baseado na utopia científica de tornar as consequências inseguras e os perigos das decisões sempre mais controláveis; acidentes poderiam ocorrer, contanto que, e porque, fossem considerados compensáveis. Uma vez que o sistema global de finanças desmoronou, uma vez que o clima irrevogavelmente mudou; uma vez que os grupos terroristas possuem armas da destruição em massa – então é tarde demais. Dada essa nova qualidade de “ameaças à humanidade" – argumenta Francois Ewald – a lógica da compensação sucumbe e é substituída pelo princípio da precaução pela prevenção. Não somente a prevenção está ganhando prioridade sobre a compensação, mas estamos igualmente tentando antecipar e impedir os riscos cuja existência não foi provada.
Deixe-me explicar esses pontos – des-localização, incalculabilidade, não-compensabilidade – mais detalhadamente. A des-localização de riscos de interdependência incalculáveis ocorre em três níveis:
1. Espacial: os riscos novos (por exemplo, a mudança climática) não respeitam a Estado-nação ou qualquer outra fronteira;
2. Temporal: a atual antecipação das catástrofes futuras não pode mais ser baseada em experiências passadas; assim, o risco como expectativa do inesperado, a colonização do futuro baseada na probabilidade não funciona; os novos riscos têm um período de latência longo (por exemplo, o lixo nuclear) de modo que seu efeito ao longo do tempo não possa ser determinado e limitado.
3. Social: graças à complexidade dos problemas e da duração dos efeitos em cadeia, a atribuição das causas e conseqüências já não é possível com nenhum grau de confiabilidade (por exemplo, as crises financeiras).
A descoberta da incalculabilidade do risco está muito ligada à descoberta da importância do não-conhecimento para arriscar o cálculo, e é parte de um outro tipo de ironia, que essa descoberta do não-conhecimento, surpreendentemente, ocorreu em uma disciplina que hoje não quer ter relação com isso: economia. Knight e Keynes inicialmente insistiram em uma distinção entre formas de contingência previzíveis e não-previzíveis ou calculáveis e não-calculáveis. Em um artigo famoso no periódico The Quarterly Journal of Economics (February, 1937) Keynes escreve:
"por 'conhecimento incerto', deixe-me explicar, não quero dizer meramente distinguir o que é sabido do que é meramente provável. O sentido em que estou usando o termo é aquele do preço do cobre e a taxa de juros em vinte anos, toda a obsolência de uma nova invenção são incertos. Sobre essas questões não há nenhuma base científica em que se possa formar qualquer probabilidade calculável. Nós simplesmente não sabemos.
Entretanto, a advertência de Keynes para abrir o campo da tomada de decisão econômica às incertezas das catástrofes sistemáticas futuras, escondidas em práticas normalizadas da tomada de risco, foi inteiramente negligenciada no desenvolvimento subsequente da atual economia (incluindo a economia keynesiana em voga).
O ponto crucial, entretanto, é não somente a descoberta da importância de não saber, mas que simultaneamente a reivindicação do conhecimento, do controle e da segurança do Estado e da sociedade era, certamente tinha que ser, renovada, aprofundada e expandida. A ironia está na reivindicação institucionalizada da segurança, para se ter que controlar algo mesmo se não se sabe se ele existe! Mas, por que deve a ciência ou uma disciplina se preocupar com algo que nem ao menos conhece? Há certamente uma resposta sociológica conclusiva para isso: porque face à produção de incertezas manufaturadas insuperáveis, a sociedade, mais do que nunca, confia e insiste na segurança e no controle.
Assim, a sociedade de risco está diante de um problema complicado (aqui não se pode falar sobre ironia) de ter que tomar decisões sobre inimagináveis bilhões de dólares, libras e euros ou mesmo sobre guerra e paz (terrorismo nuclear), com base no não-conhecimento mais ou menos inadimissível.
O limite entre a racionalidade e a histeria torna-se obscuro. Dado o direito investido neles para evitarem perigos, os políticos, em particular, podem facilmente ser forçados a proclamar uma segurança que não podem honrar – porque os custos políticos da omissão são muito mais elevados do que os custos do exagero. No futuro, consequentemente, não será fácil, no contexto de promessas de segurança do Estado e a fome por catástrofes dos meios de comunicação de massa, limitar e impedir ativamente um jogo de poder diabólico com a histeria do não-conhecimento. Nem mesmo ouso pensar sobre tentativas deliberadas de instrumentalizar essa situação.
2. O que significa “momento cosmopolita'?
A sociedade de risco é uma sociedade revolucionária latente em que o estado de normalidade e o estado de emergência se sobrepõem. Isso pode explicar o poder histórico do risco global, que é negligenciado pela teoria social convencional e pela sociologia do risco: ao tratar de riscos catastróficos o presente de um estado de emergência futuro está em negociação. O estado de emergência antecipado não é mais nacional, mas cosmopolita. A crença de que os riscos que a humanidade enfrenta podem ser evitados pela ação política tomada em nome da humanidade ameaçada torna-se um recurso sem precedentes para o consenso e a legitimação, nacional e internacionalmente. Neste sentido, os princípios fundamentais da modernidade, incluindo o princípio do livre mercado e a ordem própria da Estado-nação, tornam-se sujeitos à mudança, à existência das alternativas, e à contingência.
Você pode até mesmo dizer que o poder histórico do risco global está além de todos os “salvadores" revelados pela história: não o proletariado, não os excluídos, não o Iluminismo, não o público global, não os migrantes da sociedade global – se alguém ou algo, os riscos percebidos que enfrentam a humanidade, que não podem ser nem negados nem exteriorizados, é capaz de despertar as energias, o consenso, a legitimação necessária para criar uma comunidade global do destino, um que demolirá os muros das fronteiras e egotismos da Estado-nação – pelo menos por um momento global no tempo e além da democracia.
Aqui devemos distinguir duas variações da importância central para a teoria da sociedade de risco: de um lado, a antecipação dos efeitos colaterais não intencionadas de catástrofes (tais como a mudança climática e a crise financeira). Por outro lado, a antecipação de catástrofes intencionais, não intencionadas e intencionadas, tem como principal exemplo o terrorismo suicida transnacional. É, de fato, uma questão de se desenvolver uma teoria política da sociedade de risco em vista da distinção chave entre a antecipação de catástrofes
As catástrofes não intencionais (catástrofes climáticas, etc) são condicionais em um sentido ambivalente: são uma mistura do bem e do mal. Elas causam uma combinação particular de utilidade e uma destruição mais ou menos provável, úteis para alguns, destrutiva para outros. Esse entrelaçamento e antagonismo de esperanças e medos sociais desigualmente distribuídos não se mantém com a antecipação de catástrofes intencionais, porque talvez a probabilidade remota de ataques terroristas não é contrabalanceada por nenhum benefício compensatório. O mundo terrorista é a tentativa deliberada de se criar o inferno na Terra.
Pode-se pensar, inicialmente, que Carl Schmitt antecipou o potencial político do estado de emergência induzido pela crise financeira e pela mudança climática. Entretanto, em sua teoria da soberania, Schmitt associa o estado de emergência exclusivamente à Estado-nação e com um ataque (potencial) vindo do exterior. Um estado de emergência transnacional ou mesmo cosmopolita que, totalmente pelo contrário, transcende a distinção entre o amigo e inimigo e cria um momento cosmopolita é absolutamente inconcebível para Schmitt. Mas os riscos globais vêm do interior, mesmo do centro – como conseqüências não intencionais – da economia de livre mercado radicalizada (crise financeira) e da modernidade industrial (mudança climática).
O que é “cosmopolita" sobre o momento cosmopolita? O momento cosmopolita da sociedade de risco significa a conditio humana da irreversível não-exclusão do estrangeiro distante. Os riscos globais destroem os limites nacionais e confundem o nativo ao estrangeiro. O outro distante está se transformando no outro inclusivo – não através da mobilidade, mas através do risco. A vida cotidiana está se tornando cosmopolita: os seres humanos devem encontrar o significado da vida nas trocas com os outros e não mais no encontro com o mesmo. Estamos todos presos num espaço global compartilhado por ameaças – sem saída. Isto pode inspirar respostas altamente conflituosas, às quais igualmente pertencem a renacionalização, a xenofobia, etc. Um deles incorpora o reconhecimento dos outros como igual e diferente, a saber, cosmopolitanismo normativo.
A sociedade de risco nos força a reconhecer a pluralidade do mundo, a qual poderia ser ignorada no panorama nacional. Os riscos globais abrem um espaço moral e político que pode produzir uma cultura civil da responsabilidade que transcende fronteiras e conflitos. A experiência traumática a que qualquer um está vulnerável e a responsabilidade resultante para com os outros, também para sua própria sobrevivência, são os dois lados da crença no mundo do risco. Deixe-me entrar em mais detalhes.
Esclarecimento reforçado: as respresentações do perigo nos meios de comunicação de massa podem dar voz aos não privilegiados, marginalizados e minorias
Se você me perguntar: o que te preocupa mais, minha resposta é: o que me deixa irritado, desamparado e amargo é que os mais pobres dos pobres, os mais vulneráveis são os mais atingidos. Estamos experimentando um estado de socialismo para os ricos, ao custo dos pobres – nacional e globalmente. Há uma injustiça ultrajante que acontece agora que está para explodir politicamente nos próximos meses e anos.
E se você continuar me questionando: há sinais de novos começos, uma ascensão acompanhada da queda do sistema financeiro? Minha resposta é: sim. Pode-se também observar um esclarecimento em demasia: as representações do perigo nos meios de comunicação de massa podem dar voz aos menos privilegiados.
É sabido que as polis gregas conheciam somente uma comunicação cara-a-cara e que era tanto elitista quanto exclusiva porque excluía mulheres, escravos e os menos privilegiados. O perigo globalizado através dos meios de comunicação de massa podem dar voz aos pobres, marginalizados e minorias na área pública global. O furacão Katrina foi um ato da natureza pavoroso. Como evento midiático global, ele também atuou como uma função de esclarecimento involuntária e não intencional. O que nenhum movimento social, nenhum partido político, e certamente nenhuma análise sociológica, não importa o quão brilhante e bem fundamentada, poderia ter conseguido ocorreu no espaço de dois dias: a América e o mundo foram confrontados com as vozes e as imagens de uma outra América reprimida, a face racista da pobreza na única superpotência remanescente. A televisão norte-americana não se importa com imagens de povos pobres, mas foi ubíqua durante a cobertura de Katrina. O mundo inteiro viu e ouviu falar que os distritos negros de Nova Orleans foram destruídos pelas tempestades por causa de sua vulnerabilidade social.
Você realmente acredita que os sociólogos poderiam ter o método e o poder de descobrir as práticas ultrajantes dos banqueiros que causaram a crise global e as trazer para o público global? Não, é claro que não, mas a crise financeira e seu impacto nos meios de comunicação de massa globais o fizeram.
Há um mês atrás, alguém acreditaria, realmente, que o discurso hegemônico do neoliberalismo, na política assim como nos meios de comunicação, poderia desmoronar da noite para o dia? Não. Mas aconteceu. O que o tornou real? A antecipação global da catástrofe global. Estão certos os que argumentam: depois do colapso do comunismo, resta apenas um oponente do livre mercado, a saber, o mercado livre desenfreado que opera exclusivamente extraindo o máximo, a curto prazo, da maximização do lucro.
A catástrofe assustadora é uma professora implacável para toda a humanidade. O mercado não é o que economistas nos fizeram e fazem acreditar, a resposta, salvadora, de todos os nossos problemas, não é mais do que uma ameaça à nossa existência. Temos que aprender rapidamente que a modernidade está precisando, urgentemente, de regulamentações reflexivas de mercado, mais do que isso, de uma constituição internacional para negociar conflitos sobre respostas aos riscos globais e aos problemas – construídos com o consenso entre partidos, nações, religiões, amigo e inimigo. Naturalmente, isto não acontecerá. Mas, de repente, é senso comum que isso seja a precondição da sobrevivência. Tudo isso faz parte da reflexividade gerada pelo risco, pela antecipação da catástrofe. Não consigo pensar em nenhum outro poder que induz, que reforce um processo de aprendizagem global em tão curto espaço de tempo. Tenha cuidado: a catástrofe não faz isso. A catástrofe é o momento da destruição (total). A antecipação da catástrofe faz isso. A incerteza manufaturada, o risco global é altamente ambivalente e também, paradoxalmente, um momento de esperança, de oportunidades inacreditáveis – um momento cosmopolita.
Que princípios de publicidade estão operando aqui? E que propostas teóricas podem nos ajudar a compreendê-los? O princípio de inclusão quase ilimitada, que diz respeito a ambos os grupos e tópicos, é reminiscente das análises da esfera pública tais como aquelas oferecidas por Hannah Arendt, por Jürgen Habermas e, recentemente, por Roger Silverstone (2006). Entretanto, as esferas públicas do risco global têm uma estrutura completamente diferente da "esfera pública" explorada por Jürgen Habermas. A esfera pública de Habermas pressupõe que todos os interessados têm as mesmas chances de participar e compartilham um comprometimento aos princípios do discurso racional. A esfera pública ameaçada é tão somente uma questão de compromisso como o é de racionalidade. As imagens de catástrofes não produzem cabeças frescas. Os alarmes falsos, enganos, condenações são parte da história. Públicos ameaçados são impuros, eles distorcem, eles são seletivos e provocam emoções, raiva e ódio. Eles tornam possível mais, e ao mesmo tempo menos, do que a esfera pública descrita por Habermas. Eles assemelham-se ao retrato do "Mediapolis", pintado de maneira tão minuciosa e sensível por Roger Silverstone, e ao retrato esboçado por John Dewey em The public and its problems (1946).
Em sua busca por um espaço público que seja ao mesmo tempo transnacional e escorado nas ações dos indivíduos, Dewey propõe uma aproximação dupla: antes de mais nada, ele distingue entre decisões tomadas coletivamente e suas conseqüências. Ele conecta isso ao argumento de que uma esfera pública apenas emerge não fora de todo o interesse geral em decisões tomadas coletivamente – mas, ao contrário, desencadeada como resultado de suas consequências. As pessoas permanecem indiferentes a decisões como essa. Não é antes que os indivíduos percebam e comecem a se comunicar, um ao outro, sobre as conseqüências problemáticas das decisões que eles os deixam exaltados e ansiosos; a comunicação os agita além da vontade e os tornam preocupados, os retira de sua indiferença e de sua existência egoísta, criando uma esfera pública de ação baseada nas pessoas comuns e na comunidade. Essa é uma variação na introspecção cética formulada por Epictetus: não são as ações em si que afligem os seres humanos, mas as palavras públicas ditas sobre essas ações.
As pessoas, argumenta Dewey, se reúnem por todas as razões. Mas nenhum elemento e nenhuma soma de suas ações sociais podem gerar reflexividade sobre a natureza pública de suas ações. Isto ocorre apenas quando as consequências da ação combinada são percebidas e se transformam em um objeto do desejo e esforço. A associação humana pode ser bastante orgânica na origem e firme na operação, mas ela desenvolve uma qualidade "pública" reflexiva somente quando suas consequências, à medida que isso é reconhecido, se tornam assunto de apreciação ou esforço, "ou de medo e rejeição".
Em resposta à questão de qual ação política é possível em contextos transnacionais, cosmopolitas, Dewey diz o seguinte: o poder de ligação, o sistema sensorial e o sistema nervoso da política, que produz e une o cuidado, a moralidade e a disposição das pessoas para agir, emerge apenas não coincide com as fronteiras nacionais; ao contrário, o mundo público é tudo o que é percebido como uma irritante consequência das decisões da moderna sociedade de risco. Em suma, é o risco – ou, para ser mais preciso, a percepção do risco – que cria uma esfera pública sobre todas as fronteiras. Quanto maior a onipresença da ameaça projetada pelos meios de comunicação de massa, maior será a força política da quebra de fronteiras da percepção de risco. A idéia, nessa conclusão, é que isso significa que todo o espaço cotidiano de experiência conhecido como “humanidade” não acontece na forma de “todo mundo ama todo mundo”. Ele emerge, ao contrário, no problema percebido das consequências globais de ações dentro da sociedade de risco. no curso da reflexão pública sobre as consequências. Seu escopo de influência
Embora alguns insistam em ver uma reação exagerada ao risco, conflitos de risco global têm, de fato, uma função instrutiva. Eles desestabilizam a ordem vigente, mas podem ser vistos também como um passo vital rumo à construção de novas instituições. O risco global tem o poder de confundir os mecanismos de irresponsabilidade organizada e até de explorá-los para a ação política.
Egoísmo, autonomia, auto-isolamento, impossibilidade de tradução – esses são termos chave para descrever a sociedade moderna em sociologia e em debates públicos e políticos. A lógica comunicativa do risco global deve ser entendida precisamente como o princípio oposto. O risco mundial é o não desejado, não planejado meio de comunicação obrigatório, em um mundo de diferenças irreconciliáveis, no qual todos estão girando em torno de seu próprio eixo. Consequentemente, a percepção pública do risco força as pessoas a comunicarem quem não quer ter qualquer relação com o outro. Isso impõe obrigações e custos aos que resistem aos outros, muitas vezes até com a lei do lado deles. Em outras palavras, riscos de larga escala cortam completamente tanto a auto-suficiência de culturas, línguas, religiões e sistemas quanto a agenda de políticas nacionais e internacionais; eles subvertem as prioridades e criam contextos para ação entre campos, partes e nações inimigas que não sabem nada uma da outra e rejeitam e se opõem uma à outra.
Isso é o que a “cosmopolitanização forçada” significa: os riscos globais ativam e conectam atores além das fronteiras, quem não quer ter qualquer relação com o diferente. Proponho, nesse sentido, que uma clara distinção seja feita entre as idéias filosóficas e normativas do cosmopolitanismo, por um lado, e a atual cosmopolitanização “impura”, por outro. O ponto crucial sobre essa distinção é que o cosmopolitanismo não pode, por exemplo, se tornar real apenas dedutivamente, na tradução de princípios sublimes da filosofia, mas também e sobretudo pelas portas do fundo dos riscos globais, invisíveis, não planejados, forçados. Se, ao longo da história, o cosmopolitanismo leva à mácula de ser elitista, idealista, imperialista, capitalista, hoje, no entanto, estamos vendo que a própria realidade está se tornando cosmopolita. Cosmopolitanismo não significa – como significava para Immanuel Kant – uma obrigação, um dever que seja dado ao mundo. Cosmopolitanismo, na sociedade de risco mundial, abre nossos olhos para as responsabilidades incontroláveis, para algo que acontece conosco, sucede conosco, mas ao mesmo tempo nos estimula a um novo começo que transcenda fronteiras. O discernimento de que na dinâmica da sociedade de risco mundial estamos lidando com a cosmopolitanização sob pressão reveste mais o cosmopolitanismo “impuro” de seu atrativo ético. Se o momento cosmopolita da sociedade de risco mundial é, ao mesmo tempo, deformado e inevitável, então não é, aparentemente, um objeto apropriado para reflexões sociológicas e políticas. Mas esse pode ser, precisamente, um sério equívoco.
Obviamente, a crise financeira global e as mudanças climáticas não são os únicos momentos cosmopolitas na história ou na modernidade. Na verdade, estudos comparativos de momentos cosmopolitas são úteis e necessários. Temos que distinguir, por exemplo, entre o antigo cosmopolitanismo (Stoa), a cosmopolítica da instrução (Kant), e o novo conceito de “crime contra a humanidade”, inventado para o Julgamento de Nuremberg, confrontado com o Holocausto (o qual foi “legal” em relação à lei nacional da Alemanha); e houve o momento cosmopolita da ameaça atômica e a auto-destruição nuclear da humanidade.
A lógica de guerra e paz válida até aquele momento perdeu seu significado. Onde a vitória não é mais vitória e a derrota não mais derrota, as partes em guerra têm que criar novas instituições que tornem possível continuar vivendo, pensando e debatendo sob a espada de Dâmocles da auto-aniquilação nuclear. O “impasse nuclear” da Guerra Fria levou a novas formas de cooperação entre os blocos militares hostis; na verdade, essa “ameaça nuclear” definitivamente tornou possível a "política do leste" (Ostpolitik, em alemão) transmitida pela “ ajuda humanitária” do chanceler alemão Willy Brant. É um ponto interessante o quanto as normas globais podem criar ao longo dos momentos cosmopolitas. Advogados tipicamente pensam que as violações das normas só podem ser estabelecidas se as próprias normas já existem. No entanto, sociólogos da lei, e antropólogos da lei, em particular, também reconhecem o caso oposto: o de que as normas emergem quando as expectativas são desapontadas e catástrofes ou antecipações de catástrofes tornam claro que isso é mão de maneira alguma aceitável. Isso se aplica ao Holocausto, o qual se tornou a base para o regime de direitos humanos; também às sérias violações da segurança nuclear ou do padrão mínimo de prudência ecológica, em relação às mudanças climáticas. Certamente é possível, nesse caso, observar processos onde, a partir de um momento cosmopolita, normas emergem ao redor do mundo. Talvez ética não seja a palavra certa para isso, porque não é simplesmente uma questão de problema de consciência ou de consideração moral – trata-se, muito mais, de uma lei internacional para a qual seja encontrada a possibilidade de sanções (Luhmann 1999).
Possibilidade de governo alternativo: uma forma cosmopolita de independência
Tão importante quanto esses argumentos, a questão decisiva é diferente: em que medida a ameaça e o impacto da sociedade de risco mundial abre o horizonte para uma alternativa histórica de ação política ? É precisamente essa questão que eu tenho tentado responder em meu livro O poder na era global (Power in the global age). Em 2002, argumento (aqui posso apenas citar a idéia básica):
Duas premissas: 1) a sociedade de risco mundial traz uma nova e histórica lógica-chave para daqui para diante: nenhuma nação pode enfrentar seus problemas sozinha; 2) uma política alternativa realista na era global é possível, e neutralizaria as perdas para o capital globalizado do poder de comando do Estado político. A condição é que a globalização tem que ser entendida não como um fado econômico, mas como um jogo estratégico para o poder mundial.
Uma nova política doméstica global que já está funcionando aqui e agora, além da distinção nacional x internacional, tem se tornado um jogo de meta-poder, cujo resultado é completamente indefinido. É um jogo em que as fronteiras, as regras básicas e as distinções básicas são renegociadas – não apenas aquelas entre as esferas nacionais e internacionais, mas também aquelas entre o mercado global e o Estado, as organizações supra-nacionais e as potências emergentes da China, Índia, América do Sul, os Estados Unidos e a União Européia. Nenhum jogador solitário ou oponente pode jamais ganhar sozinho; todos dependem de alianças. Essa é, portanto, a forma pela qual o nebuloso jogo de poder da política doméstica global abre suas próprias alternativas imanentes e oposições.
As estratégias de ação que os riscos globais abrem subvertem a ordem de poder que se formou na coalizão neo-liberal entre Estado e capital: os riscos globais dão poder aos Estados e aos movimentos civis da sociedade, porque eles revelam novas bases de legitimação e opções para ação desses grupos de atores; por outro lado, eles tiram poder do capital globalizado, porque as consequências das decisões econômicas contribuem para criar riscos globais e mercados desestabilizados e até para desestabilizar o sistema global de mercado. Contudo, há uma oportunidade a ser considerada sobre o que eu chamo de forma cosmopolita de independência. As formas de aliança introduzidas pelo Estado neoliberal instrumentalizam o Estado (e a teoria do Estado) de modo a otimizar e legitimar os interesses do capital ao redor do mundo. A idéia da forma cosmopolita de Estado, pelo contrário, visa a idealização e realização de uma robusta diversidade e de uma ordem pós-nacional. A agenda neo-liberal envolve a si própria com uma aura de auto-regulação e auto-legitimação. A agenda cosmopolita, por sua vez, envolve a si própria com uma aura de reinvenção transnacional de política e regulação, justiça global e esforços para uma nova grande narrativa da radical globalização democrática.
Isso não é um sonho; ao contrário, é a expressão de uma política cosmopolita real. Em uma era de riscos globais, a política da “algema dourada” – a criação de uma densa rede de interdependências transnacionais – é exatamente o que é preciso para recuperar a soberania nacional, mas não em relação à economia mundial altamente volúvel. A máxima da política real baseada na nação – em que interesses nacionais devem necessariamente guiar os sentidos da nação – deve ser substituída pela máxima da política cosmopolita real. Quanto mais cosmopolitas forem as nossas estruturas e atividades políticas, mais elas serão bem sucedidas na promoção de interesses nacionais, e maior será o nosso poder individual nessa era global. Esse é o momento de superar a noção antiquada de unilateralismo, mesmo nos Estados Unidos, e trazer a China, a Índia, a América do Sul e a Rússia à colaboração para produzir novas regras que liguem todos os jogadores. Mais que isso: nós, o Ocidente, os países europeus, temos que aprender sobre a realidade da dependência, mesmo em nossas questões internas, com aqueles que ainda acreditamos ser um estrangeiro.
O que acontece quando os centros de interesses dos Estados evaporam ou têm efeito oposto? A resposta é tão cínica quanto realista: o perigo cresce com a ineficiência da ação política, e, como resultado, a carência sofrida por todos – com uma consequência paradoxal: o dano pode limpar-se dos danos nas águas dos problemas para os quais ele contribuiu. O perdão para os erros pode muito bem crescer com os erros que irão aumentar as necessidades da espécie humana.
Ao mesmo tempo, o perigo percebido, que ameaça destruir tudo em seu caminho, cria uma dinâmica de aceleração para a ação contrária, e, com ela, a pressão para o consenso que pode evitar a lacuna entre a retórica e a tomada de decisão política. Como resultado disso, aquilo que é totalmente inimaginável no campo da política nacional se torna possível, para todos os lugares, na política interna global, isto é, apesar do princípio de unanimidade e do envolvimento de todos os Estados cujos interesses são conhecidos como dramaticamente conflitantes, as decisões globais, de amarração fiscal, podem ser feitas sob as restrições da urgência repentina.
Porém, o poder histórico da percepção de risco global tem seu preço, já que ele funciona apenas por um curto período de tempo. Como tudo depende de sua percepção pelos meios de comunicação de massa, a legitimação da atividade política global, à luz dos riscos globais, vai apenas até onde os meios de comunicação de massa se atêm.
Os fatos contam uma história diferente. A ação que foi tomada até agora nos Estados Unidos (e em outros países), o socorro do governo aos bancos, chegou a uma antiquada nacionalização parcial de alguns dos maiores bancos de varejo. Isso parece mais um Estado-nação individual tomando decisões, que, em discussão com outros Estados-nação, julgam ser as melhores, mas não de fato em colaboração ou acordo com eles.
O que dá aos habitantes da sociedade de riscos globais um choque antropológico não é mais o desabrigo metafísico de um Beckett, a ausência de Godot ou os pesadelos de Foucault. O que preocupa as pessoas é a premonição de que a estrutura das nossas dependências materiais e obrigações morais poderia se romper, levando o delicado sistema funcional da sociedade de risco mundial ao colapso. Assim, tudo está de cabeça para baixo: o que para Weber, Adorno e Foucault era uma visão apavorante – a perfeita supervisão do mundo administrado – é a promessa para as potenciais vítimas dos riscos financeiros (isto é, todo mundo): seria bom se a racionalidade da supervisão realmente funcionasse, ou se fôssemos aterrorizados apenas por consumo e humanismo, ou se a operação perfeita dos sistemas pudesse ser restaurada pelo canto litúrgico de “mais mercado, por favor!”.
3. Consequências: uma mudança de paradigma nas ciências sociais
É evidente que o plano de referência requerido para ser aceito pelo Estado-nação – o que eu chamo de “nacionalismo metodológico” – impede as ciências sociais de entender e analisar as dinâmicas e ambivalências, as oportunidades e ironias da sociedade de risco mundial. Um nacionalista metodológico, assim como um político nacional, que tenta lidar com riscos globais isoladamente, assemelha-se a um bêbado, que em uma noite escura tenta encontrar sua carteira perdida em um facho de luz de um poste de rua. À questão “você realmente perdeu sua carteira aqui?” ele responde “não, mas na luz do poste, eu posso ao menos procurar por ela”.
Em outras palavras, os riscos globais estão produzindo “Estados falidos” – até mesmo no Ocidente. O primeiro exemplo, claro, é a Irlanda. Mas também a Hungria, a Ucrânia, e o Paquistão, instável poder atômico bastante ameaçador, precisam urgentemente de assistência emergencial do Fundo Monetário Internacional. Há dois meses, a crise parecia afetar apenas os países que a causaram, principalmente os Estados Unidos e os países altamente industrializados da Europa ocidental. Mas, em um considerável curto espaço de tempo, o fogo da crise se espalhou pela Ásia, América Latina e países do leste europeu e, desse modo, está agora colocando em perigo aqueles países que não a causaram, ainda que alguns deles tenham parcicipado do capitalismo de alto risco – países ricos como a Irlanda e a Rússia. Portanto, o risco financeiro global está rapidamente produzindo novas desigualdades globais radicalizadas. A estrutura de Estado envolvida sob as condições da sociedade de risco mundial pode ser caracterizada em termos tanto da ineficiência quanto da autoridade pós-democrática. Uma clara distinção, no entanto, tem que ser feita entre a reinvenção da regra do estado e a ineficiência. É absolutamente possível que o resultado final possa ser a triste perspectiva de que tenhamos regimes de Estado totalmente ineficientes e autoritários (mesmo no contexto das democracias ocidentais).
Dadas as condições insanas da sociedade de risco mundial, a velha teoria crítica de Foucault está em risco de se tornar simultaneamente afirmativa e antiquada, juntamente com grandes áreas da sociologia, as quais se concentraram nas dinâmicas de classe no estado de bem-estar (Bourdieu, Goldthorpe). Elas subestimaram ou deixaram escapar a mudança histórica do parâmetro de mudança dos riscos globais.
Mas a sociologia e a ciência política não são as únicas disciplinas sob pressão; a economia também. Há uma situação de vazio: procura-se um teórico para suceder transnacionalmente o sr. Keynes. A necessidade, agora, é por uma engenhosa regulação reflexiva (filosofia) em escala global, incluindo novos atores como corporações transnacionais, Banco Mundial, FMI, Greenpeace etc. Na União Européia, há uma necessidade idêntica de instituições políticas mais fortes – um ministério europeu para assuntos econômicos – para complementar o banco central. Mas a maior necessidade de todas é a de uma nova teoria de economia mista, construída no lugar do mercado global de hoje, como o agora finado sistema keynesiano foi moldado para as economias nacionais do pós-guerra.
Estamos sob o encanto de uma sociologia em cujas bases fomos concebidos e nos desenvolvemos nos últimos cem anos. O primeiro século da sociologia se foi. No caminho para o segundo, que começou agora, o espaço da pesquisa e da imaginação sociológica tem que ser explorado e determinado de novo, isto é, explorado para a constelação cosmopolita. Aprender sobre os outros não é apenas um ato de compreensão cosmopolita, mas parte integral do aprendizado e entendimento sobre a realidade de nós mesmos ou mesmo de vermos nós mesmos como o outro. Uma sociologia cosmopolita significa uma sociologia que reflete nas premissas e nos dualismos ontológicos de uma sociologia do Estado-nação – como nacional e internacional, nós e os outros, interno e externo – em seus significados para a gramática da política e do social, assim como para a determinação do campo sociológico de investigação e, dessa forma, adquire uma nova moldura sociológica de referência para todo tipo de assunto. Uma sociologia cosmopolita distingue claramente a si própria de uma universalista, porque ela não parte de algo abstrato (geralmente derivado de um contexto e uma experiência históricos europeus, como “sociedade” ou “sociedade mundial” ou “sistema mundial” ou o “indivíduo autônomo” etc). Ao contrário, conceitos chave como contingência, ambivalência, interdependência, interconexão alcançam o palco central juntamente com as questões metodológicas apresentadas por eles. A sociologia cosmopolita, portanto, abre indispensáveis novas perspectivas para contextos aparentemente isolados, familiares, locais e nacionais. Com essa nova “visão cosmopolita”, ela segue o caminho empírico e metodológico que outras disciplinas – como a antropologia, a geografia e a etnologia contemporâneas – já tomaram com entusiasmo.
Para finalizar, retornando à questão que levantei no início de minha preleção sobre o momento cosmopolita da sociedade de risco: o que há de bom em algo tão ruim? Que o egoísmo nacionalista tenha que se abrir, em causa própria, para uma direção cosmopolita. Outra coisa que devemos aprender com a crise é que o tipo de capitalismo laissez-faire, de mercado aberto, caro ao neoliberalismo, não tem lugar na era da sociedade de risco global. E, é claro, um outro, uma modernidade alternativa é possível!
Ulrich Beck é professor de sociologia da Universidade de Munique e cunhou o termo “sociedade de risco” na década de 1990. Este artigo é fruto da conferência proferida na Universidade de Harvard, em 12 de novembro de 2008. Tradução autorizada pelo autor.

2 comentários:

Farlei Martins Riccio disse...

Prof. Ribas e Alceu:

Navegando pela internet descobri a página de Beck (em alemão) no site da Universidade de Munique (http://www.ls2.soziologie.uni-muenchen.de/index.html).

Descobri também que Beck é colunista do jornal inglês The Guardian e no site do jornal podemos ter acesso aos seus últimos artigos publicados (http://www.guardian.co.uk/profile/ulrichbeck)

Se ainda não conheciam, fica a dica!

Forte abraço,

Farlei Martins Riccio

Prof. Ribas disse...

Prof. Farlei Martins Agradeço muito ter enriquecido o blog com essa informação preciosa de termos acesso aos textos mais recentes de Ulrich Beck em inglês Ribas