sábado, 13 de dezembro de 2008

Época debate: O STF mudou. E está mudando a nossa vida



No centro das decisões
Com novos juízes e novos instrumentos, o Supremo Tribunal Federal se impõe aos outros Poderes – e começa a mudar a vida dos brasileiros

Durante muito tempo, para a maioria dos brasileiros, a imagem do Supremo Tribunal Federal (STF) esteve associada ao belo edifício de linhas suaves desenhado por Oscar Niemeyer para ocupar o canto mais discreto da Praça dos Três Poderes, em Brasília. Ou à formidável escultura da Justiça de granito claro, com 3,5 metro de altura, olhos vendados, espada no colo, obra de Alberto Ceschiatti instalada em frente ao edifício do Supremo. Dentro do prédio, homens idosos e sisudos, metidos em togas pretas e falando latim, conformavam a imagem de um poder magnífico e distante, misterioso e inacessível. Na verdade, essa imagem se aplica a quase todo o período de 200 anos de história do STF, se tomamos como seu início a Casa de Suplicação do Brasil. O primeiro tribunal de cúpula do Judiciário brasileiro foi instalado no Rio de Janeiro por dom João VI, rei de Portugal, no dia 10 de maio de 1808. Era freqüentado apenas por juízes, desembargadores e advogados.

Aquele Supremo não existe mais. O velho STF dedicava quase todo o seu tempo a questões de Direito Administrativo e ao julgamento de recursos sobre cobranças de impostos. Hoje, as questões do cotidiano estão cada vez mais presentes na pauta da corte. As idéias políticas, preferências literárias e até a vida pessoal dos ministros deixaram de ser um mistério coberto pela toga. O público agora conhece as intrigas da corte e até quem está namorando. E sabe que cada decisão do STF pode – como nunca antes neste país – interferir no cotidiano das pessoas.

Na quarta-feira, jornalistas do mundo inteiro transmitiram, da sede do STF, a segunda parte do julgamento que definiu o destino de uma das maiores áreas indígenas do país, a região de Raposa-Serra do Sol, em Roraima. Como celebridades, ministros davam entrevistas, antes e depois da sessão. Na abertura do julgamento, em setembro, uma índia de verdade, a advogada Joênia Batista de Carvalho, havia ocupado a tribuna para falar. Fez parte do discurso em seu próprio idioma, o uapixana. O julgamento só terminará em fevereiro, mas os oito votos já conhecidos podem alterar profundamente a política indigenista do país (leia a reportagem nesta edição).

A situação dos índios é apenas um dos temas em que o STF arbitra sobre os rumos do país. Nos anos recentes, o Tribunal tomou decisões ou abriu debates públicos sobre pesquisa com células-tronco, interrupção de gravidez de fetos sem cérebro, políticas de cotas para acesso às universidades, uso de algemas pela polícia, direito de greve dos funcionários públicos. Nesses momentos, grupos de posições opostas foram para a porta da corte ou ocuparam espaço na imprensa para tentar convencer a opinião pública de suas teses. O que mudou na composição, nas prerrogativas e na forma de atuação do STF, a ponto de transformar o mais discreto dos Poderes em tema de discussões apaixonadas? Esse é o foco desta edição de ÉPOCA Debate – a última de uma série de dez mergulhos em temas de relevância para o futuro do país. Uma explicação para a mudança do STF vem do ministro Carlos Ayres Britto, um ex-militante político do PT há cinco anos no Supremo: “São exigências da evolução da nossa democracia e, por conseqüência, de uma Justiça mais contemporânea”.

É difícil precisar uma data para a transformação do STF, mas ela começou em 1988, quando ficou nítido seu papel de guardião da Constituição. Os constituintes criaram tipos de ações judiciais de competência exclusiva do Supremo, reforçando seu poder de interpretar a Constituição. A mudança prosseguiu em 2004, quando o Congresso aprovou a Emenda Constitucional 45, da reforma do Judiciário. Ela tornou o Supremo mais forte, mais eficaz e mais acessível.

Mas isso não explica tudo. Alguma coisa muito importante aconteceu também no dia 29 de setembro de 1992. Dentro do prédio, os ministros negaram um recurso do ex-presidente Fernando Collor de Mello contra o pedido de impeachment que seria votado pela Câmara no dia seguinte. Foi a primeira sessão do STF transmitida ao vivo pela televisão. Quinze anos depois, em 2007, o Brasil literalmente parou durante horas em frente à TV para acompanhar o longo, mas compreensível, voto do ministro Joaquim Barbosa no processo do mensalão – contra 40 denunciados de um dos maiores escândalos políticos da história do país. Dessa vez, as imagens eram geradas pela TV Justiça.



Entre um julgamento e outro, nove ministros se aposentaram. Seus substitutos foram indicados por dois presidentes da República de centro-esquerda: Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Dos indicados por FHC, Nelson Jobim e Gilmar Mendes trabalharam para reforçar o papel do STF como corte constitucional. É o modelo adotado na Alemanha depois da Segunda Guerra Mundial, copiado em muitos países. Ele concentra na corte suprema o controle da Constituição. Opõe-se ao antigo modelo francês, em que o Legislativo detém esse papel. Gilmar Mendes difundiu a doutrina alemã e Nelson Jobim articulou no Congresso a reforma do Judiciário. Também indicada por FHC, a ministra Ellen Gracie, além de ter sido a primeira mulher na corte, modernizou e informatizou o STF no período em que o presidiu (2006 a 2008).

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva indicou sete dos 11 ministros. Alguns deles têm na biografia um registro de ativismo político, além do currículo jurídico. Carlos Britto foi dirigente do PT em Sergipe. Cármen Lúcia foi procuradora-geral do Estado em Minas Gerais, num período em que o governador Itamar Franco resistia à política de privatizações de FHC. Eros Grau foi amigo de Ulysses Guimarães e ajudou perseguidos políticos na ditadura.

O Comportamento dos 11
Com base no histórico de votações dos magistrados, é possível identificar a tendência de posicionamento de cada um dos 11 ministros do STF



A diversidade enriquece o debate, mas também confunde os clientes da Justiça. “Sou de um tempo em que ministros mais conservadores ou mais liberais tentavam ganhar o plenário para suas teses, o que deixou de ocorrer quando se aposentaram os ministros Moreira Alves, mais conservador, e Sepúlveda Pertence, um homem de esquerda. Agora, ninguém lidera o plenário”, disse a ÉPOCA um experiente advogado. Seu nome não é mencionado porque ele é de um tempo em que não se discutia em público a tendência política de cada ministro.

O deputado Flávio Dino (PCdoB-MA), também juiz de carreira, acha que às vezes o Tribunal abusa do direito de discutir. Ele cita o julgamento do uso de embriões para pesquisa científica. “Uma coisa excelente é o STF debater uma política pública, mas fiquei espantado ao ver 11 pessoas eruditas discutindo onde começa a vida”, disse.

Da velha imagem do Supremo, apenas um traço ainda não caiu: a idéia de que a corte protege os ricos ameaçados de prisão. Conhecida pelo rigor na aplicação de penas, a ministra Ellen Gracie costuma apontar os labirintos do Código de Processo Penal, que favorecem o trabalho dos melhores advogados, além dos erros nos inquéritos policiais. “Como temos de cumprir a lei, ficamos com a fama de soltar quem a polícia prende”, diz a ministra. Também rigorosa em matéria penal, Cármen Lúcia examina pedidos de habeas corpus e de revisão de pena que chegam dos presídios pelo correio, às vezes escritos com sangue, e procura encaminhar cada caso ao juízo adequado. Mas acha que ainda vai levar tempo para que os casos de gente pobre ande na mesma velocidade dos poderosos. “O Direito é o fruto maduro, ele nunca estará à frente das transformações na sociedade”, diz.

Para alguns especialistas, a relevância que o STF vem assumindo nos últimos anos lembra uma decisiva fase da história dos Estados Unidos. Foi o período entre 1953 e 1969, em que a Suprema Corte era presidida pelo juiz Earl Warren. Conhecido como Warren Court, o Tribunal fez profundas transformações na vida do país: encerrou qualquer tentativa de retomar a odiosa prática de segregação dos negros nas escolas; limitou o arbítrio de policiais contra pobres e negros; impediu que comunistas continuassem a ser expostos de maneira degradante para suas carreiras; acabou com a possibilidade de o Estado invadir uma casa em busca de contraceptivos. A corte Warren foi a grande engrenagem de uma luta pelos direitos individuais, que inspirou militantes dos direitos humanos, estadistas e constitucionalistas pelo mundo todo.

A Justiça pode ser “progressista” e empurrar mudanças na sociedade que o processo político não consegue fazer? “Sim, é possível. Foi o que aconteceu nos Estados Unidos naquele período”, afirma o ministro Joaquim Barbosa, primeiro negro no STF em um país onde eles são metade da população. “Há um pluralismo na atual turma que a corte nunca conheceu na nossa história. Mas devemos guardar as devidas proporções, e não comparar com aquele momento nos EUA”.

Em um extenso estudo sobre o ativismo judicial, o constitucionalista Luís Roberto Barroso discorreu sobre o terreno propício para florescer uma corte mais ativa numa democracia. Segundo ele, isso ocorre em momentos em que um dos Três Poderes da República se enfraquece, como é o caso agora com o Legislativo no Brasil. É um movimento pendular, em que um Poder toma mais decisões diante da inatividade de outro. “No Brasil, o Legislativo vive hoje uma crise de credibilidade, sem nenhuma sintonia com a sociedade. E a Justiça estendeu as estacas”, diz Barroso. Cada vez mais o STF decide questões que interessam ao cidadão comum e não são resolvidas pelo Legislativo. “O Supremo passou a ter uma atuação menos ortodoxa e, com o passar dos anos, mais atenta aos anseios sociais”, diz o ministro Ricardo Lewandowski, outro indicado por Lula.

Supremo tem sido acusado de avançar sobre os poderes de um Congresso fraco. Isso ocorreu quando a corte confirmou decisões do TSE sobre fidelidade partidária, que os chefes políticos não queriam adotar. Também houve críticas quando o STF decidiu que o direito de greve dos servidores públicos deve obedecer às mesmas regras do setor privado, um assunto que ficou por quase 20 anos aguardando decisão do Congresso. “Se não tivéssemos tomado aquela decisão, nós é que seríamos acusados de omissão judicial”, disse o presidente do STF, Gilmar Mendes. Nas próximas páginas, mostramos quem são os 11 ministros do STF e os instrumentos que eles obtiveram para tomar decisões transformadoras, como a que proíbe a prática do nepotismo no país.


Entrevista: Gilmar Mendes
Com novos juízes e novos instrumentos, o Supremo Tribunal Federal se impõe aos outros Poderes – e começa a mudar a vida dos brasileiros

Ricardo Amaral e Matheus Leitão



Qual o papel do STF na democracia?
Gilmar Mendes – O conceito de democracia vigente no mundo é da democracia constitucional. Cabe ao Supremo exercer o controle da constitucionalidade sobre todos os Poderes. Ele pode ter outras funções, mas essa é sua especialidade. O Supremo contém abusos de todos os lados, inclusive do Judiciário, e impede que as minorias sejam asfixiadas.

De que abusos o senhor fala?
Mendes – Garantimos o funcionamento de CPIs, um direito que a maioria tentou negar à minoria no Congresso. E contivemos excessos de CPIs que se portavam como tribunais de inquisição. Decidimos que o Executivo não pode editar medida provisória sobre crédito orçamentário. O STF tem feito muito para reforçar a autoridade do Legislativo.

Juízes e policiais reclamam de restrições do STF, como ao uso de algemas...
Mendes – O Tribunal é importante pelo que manda fazer, mas é ainda mais importante pelo que evita que se faça. Quando o STF deixa claro que não aceita prisões indevidas, evita que juízes decretem outras prisões sem fundamento. Quando rejeita denúncias ineptas, mostra ao Ministério Público que elas não devem ser apresentadas.





4 comentários:

Guilherme Costa disse...

Excelente reportagem, importantíssima a postagem!

Douglas Zaidan disse...

Muito boa a matéria, caso a edição do Blog tenha o texto integral disponível, sugiro que publique em outro post, a matéria interessa não somente àqueles que acompanham o comportamento do tribunal, mas a toda a sociedade brasileira.

Prof. Ribas disse...

Prezado Douglas a matéria está completa. Em que outro blog podemos veicular? Neste exato momento da noite do dia 15 de dezembro de 2008, às 23.18 horas, Gilmar Ferreira Mendes está dando uma entrevista no programa Roda Viva da Tv. Cultura e Tv Brasil. Não percam! É primeira que um Presidente do STF comparece ao "Roda Viva"

Farlei Martins Riccio disse...

A matéria foi reproduzida na íntegra a partir da disponibilidade de seu conteúdo no site da revista Época. Para ter acesso basta realizar o cadastramento gratuito do email. Veja em:

http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI19316-15254,00-EPOCA+DEBATE+O+STF+MUDOU+E+ESTA+MUDANDO+NOSSA+VIDA.html

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