O integrante do OJB da UFRJ Humberto envia essa matéria sobre a palestra de Canotilho circulando no Conjur de 3 de novembro de 2009
Interjusfundamentalismo, interjusfundamentalidade, internormatividade, constitucionalismo multinível. Os termos são extensos e complicados, mas o significado é simples. Se as relações internacionais tornam a interação entre os Estados uma realidade dinâmica, o Direito e as normas de cada país devem seguir o mesmo caminho. A definição, dada por um dos mais admirados especialistas mundiais no assunto, o (inter)constitucionalisa português José Joaquim Gomes Canotilho, embora simples, não engloba respostas fáceis.
O exemplo é a União Europeia, o paradigma contemporâneo de integração internacional bem sucedida. No bloco, a cartilha do alinhamento normativo econômico é seguida à risca, enquanto que regras locais sobre direitos sociais continuam colidindo umas com as outras, esperando que as cortes judiciais internacionais assumam sua competência para tratar não só de assuntos mercadológicos, mas também sociais.
É por esses motivos que juízes, advogados e promotores hoje não podem se limitar a estudar e fundamentar suas ações simplesmente na jurisprudência nacional, mas também no histórico cultural de outros países, sob pena de se limitarem a ser operadores bairristas do Direito. O diagnóstico do constitucionalista foi dado em palestra ministrada no dia 23 de outubro no Instituto Brasiliense de Direito Público, em Brasília (clique aqui para assistir o vídeo). O professor rascunhou o que devem ser os denominadores comuns para a construção de um Direito positivo internacional principalmente na esfera social e penal: a autodeterminação dos povos, o que envolve constante participação política, e a dignidade da pessoa humana, que trata principalmente do conceito de igualdade.
Supermercado europeu
O mercado é o grande detonador da expansão das integrações, e acabou por dar à luz a um constitucionalismo econômico, que faz parte do constitucionalismo mundial, segundo o professor. Ele gerou novas ordens judiciárias, como os tribunais arbitrais e tribunais com competência específica. “O grande problema global, que despontou na crise econômica, é que a região e o dinheiro não são legitimáveis ou democratizáveis”, afirmou.
A indagação sobre a questão, segundo Canotilho, vem principalmente de seus alunos brasileiros de mestrado e doutorado. A provocação dos especialistas brasileiros aos europeus, feitas em propostas de tese, é se pode haver interjusfundamentalidade entre os tribunais europeus quanto a direitos sociais, como a seguridade e segurança social, por exemplo. Isso porque seguridade social só existe, na Europa, para os nacionais, e não para os imigrantes, de acordo com o professor. “A União Europeia é um ‘supermercado’. Há liberdade quanto a impostos, situações de trabalho, mas não há constitucionalismo em relação a direitos sociais. Temos um mercado, mas não uma comunidade política”, reconhece.
Os debates nesse campo mostram o quanto diálogo ainda é necessário para um regramento mundial linear. O aborto é um dos exemplos que desafiam o radicalismo nos preceitos nacionais. “A questão divide opiniões sobre a própria essência do ser humano, e o que é o ‘bem da vida’ para cada cultura”, explica o professor, que cita casos como o dos norteamericanos, que defendem o direito de escolha da mulher. Já em Portugal, na Espanha e na Albânia, o problema faz colidir opiniões sobre a existência de apenas um “bem da vida”, que seria a própria vida, ou de diversas classes de “bem da vida”, como embriões, embriões implantados e feto. Há ainda quem defenda que o direito à vida não é ponderável, ou seja, não se submete à decisão dos pais, “os que produzem a vida”.
A igualdade, segundo Canotilho, é outro nó para as cortes constitucionais, direito que hoje toca situações cada vez mais específicas. O desafio é saber até que ponto uma mera dedução pode violar o direito à igualdade, “como a dedução que um escritório de advocacia faz sobre as possibilidades de problemas que se pode ter com uma funcionária que tem uma mãe paraplégica”, exemplifica. Uma demissão, nesse caso, não significa diferenciação salarial ou de tratamento, mas de oportunidade, o que já caracterizaria uma abordagem desigual. Ele afirma que, nesse sentido, ações afirmativas, como quotas para negros nas universidade públicas, servem para forçar medidas de compensação a curto prazo. “A dignidade da pessoa humana só existe quando ela é reconhecida pelo outro”, explica.
Novas culturas
O problema também passa pela questão da imigração, segundo o professor. Ele dá como exemplo os resultados da descolonização para Portugal, que atraiu para o país pessoas nascidas em diversas ex-colônias, criando novas culturas nas metrópoles portuguesas. “A criminalidade aumentou, mas não podemos dizer a essas pessoas que não são pessoas, que não devem ser protegidas pelo governo, e que os tribunais não devem levá-las em consideração”, disse. “Isso significa que temos que ter humildade em relação às diferenças entre cada cultura, e uma competência intercultural para resolver a questão.”
Canotilho também colocou na mesa os problemas de segurança pública comuns nas grandes cidades. Ele afirmou que muitos de seus alunos em grupos de estudo continuam propondo que normas legislativas de exceção são uma solução plausível a curto prazo. A ideia é frontalmente rechaçada por ele, que repete a expressão do ex-primeiro ministro de Israel, Ehud Barak, sobre a competência da Suprema Corte israelense em considerar inconstitucionais leis de exceção contra o terrorismo. “Em tempos de guerra, as musas se calam”, disse o ex-chanceler. “Mas mesmo em tempos de guerra ainda podem existir musas, poesia, e se combater a criminalidade”, contrapôs Canotilho, totalmente contrário à teoria do Direito Penal do Inimigo, em que a suspeita, e não a ilicitude de um ato, é suficiente para medidas restritivas.
“O direito à segurança não será um direito subjetivo contra a criminalidade, não implicará a suspensão de liberdades fundamentais, não será uma garantia da continuidade no tempo do gozo de direito e expectativas futuras através da prevenção, sobretudo se não se quiser transformar o Direito Penal num Direito de polícia, de prevenção do risco, do direito de informações”. A máxima do constitucionalista foi um alerta. A alegoria foi o mau exemplo visto em sua própria casa. “Invioabilidade de correspondência e de domicílio praticamente não existe em Portugal, sacrifícios feitos para se adequar às regras do Tratado de Roma do Tribunal Penal Internacional.”
Hierarquia jurisdicional
A criação dessa relação entre os tribunais, e até de uma nova hierarquia jurisdicional às novas cortes internacionais, instituiu o que Canotilho chamou de “abordagem multinível”. Começando em Portugal, uma questão constitucional pode passar pelas primeiras instâncias da Justiça, pelo Supremo Tribunal de Justiça, pelo Tribunal Constitucional, até o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, ou o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias.
Essa dilatação institucional pode simplificar alguns problemas, mas também criar outros. O professor dá um exemplo simples: o de atletas que usam entorpecentes. “Há legislações nacionais sobre a droga, tratados internacionais sobre a droga, há legislação dos comitês olímpicos sobre a droga, e nós não sabemos afinal que é que vai realizar a justiça protegendo os próprios esportistas drogados”. Entre as dúvidas está a disparidade das penas, e como serão ajuizados os recursos.
Constituicionalismo parcial
Ideias recentes de alguns constitucionalistas cogitam um caminho nesse cenário. São as propostas dos sociólogos sobre constituições civis parciais, de acordo com os vários sistemas globais, como o de saúde e o de ensino. Ou seja, os setores parciais vão produzindo seus próprios textos normativos que formariam o corpo do regramento constitucional. São práticas e normas parciais que iriam substituir o velho constitucionalismo, o que o professor refuta com veemência.
“O fundamento das nossas sociedades tem que ser o fundamento democrático, tem que ter como base uma organização democrática, da autodeterminação. A política ainda é o momento mais importante das constituições”, afirma. “A proposta despolitiza o Direito Constitucional, dizendo que o caminho que seguimos está a chegar ao fim. Mas não podemos dizer que vamos descobrir um novo mundo, parcial, global, civil e sem política”.
Clique aqui para assistir à palestra.
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terça-feira, 3 de novembro de 2009
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