domingo, 12 de outubro de 2008

A eleição presidencial e a Corte Suprema americana

A "Folha de São Paulo" de 12 de outubro de 2008 publica importante matéria sobre as eleições americanas. Destaque-se a avaliação que a sociedade americana no debate eleitoral está tendo sobre o preenchimento de três prováveis vagas para a Corte Suprema.
SUCESSÃO NOS EUA / DIVISÃO AMERICANA Crise recria guerras culturais nos EUA
Oposição, que em 2004 era entre valores morais liberais e conservadores, hoje se dá entre "elite" e "americano legítimo"Temor financeiro desperta a discussão sobre o abismo entre as costas e o interior, e Sarah Palin instiga cismas subjacentes na campanha
Emmanuel Dunand-17.set.08/France Presse
Moradores de Elko, Nevada, assistem a comício de Obama; democrata é retratado como "elitista'DE NOVA YORK
Quatro anos depois de uma disputa presidencial que, pelo peso da religião e da moral, chegou a ser apelidada de "eleição do armagedon", a crise econômica parece ter esmagado nos EUA a relevância de elementos culturais na disputa pela Casa Branca -a ponto de aborto e casamento gay nem figurarem em pesquisas sobre preocupações do eleitorado.Segundo analistas, contudo, a impressão de que os valores perderam importância é superficial: mesmo sob a crise, um grande debate cultural sobre a verdadeira identidade americana permeia as campanhas do democrata Barack Obama e do republicano John McCain.Para Alan Wolfe, cientista político do Boston College, o que está em jogo é "qual candidato é mais americano" -ou mais próximo da classe média.Isso pode ser visto quando Sarah Palin, candidata a vice republicana, diz que Obama "não vê a América como eu vejo e você vê" e "é amigo de pessoas que odeiam nosso país". Ou quando Joe Biden, o vice democrata, lembra que veio da cidadezinha de "Scranton, Pensilvânia" e sabe "o que é ter dificuldades"."É uma tentativa de mobilização feita mais explicitamente pelos republicanos", disse Wolfe à Folha. "O partido usa essa lógica para dizer que, porque Obama tem nome estranho e é estrangeiro [filho de queniano], não é confiável para lidar com a economia, por exemplo."O foco na identidade marca diferenças em relação à pressão cultural que vinha desde os anos 1990 abordando temas mais específicos e freqüentemente religiosos. Em 1992, por exemplo, ficou célebre o discurso do ex-pré-candidato republicano Pat Buchanan. Na convenção de seu partido, ele afirmou haver então "uma guerra religiosa (...) e cultural pela alma da América".Em 2004, os valores morais foram o principal fator para escolha do candidato para 22% dos eleitores, segundo a boca-de-urna da rede CNN.Desta vez, "em vez de aborto ou células-tronco, os americanos estão questionando os fundamentos dos EUA", afirma o filósofo John Shook, vice-presidente do Centro para a Pesquisa, grupo racionalista de Nova York. Shook e o centro se dizem apartidários. "Nós nos perguntamos se a economia é forte, quando devemos iniciar guerras, o que estamos fazendo com a classe média. Tudo isso tem componentes culturais, só que envolvidos com dinheiro."Para ele, a abordagem da crise econômica reflete a disputa cultural entre conservadores e progressistas. "Desde o início, a discussão sobre a crise foi em termos de por que o governo deveria dar bilhões de dólares para corporações financeiras. Rico contra pobre muito rapidamente se tornou o cerne."Samuel Abrams, sociólogo da Universidade Harvard e co-autor de "Guerra Cultural? O Mito da América Dividida" ("Cultural War? The Myth of a Divided America", Longman, 2004), enquanto concorda que "há a questão da identidade", não acha que "McCain está dizendo que é mais americano do que Obama". "Há uma enorme diferença de geração, que em si traz duas visões da América." Para Abrams, a idéia da "guerra cultural" é promovida por intelectuais e não por eleitores.Em apurosSegundo Shook, um dos motivos do foco na identidade é que "a direita religiosa está tendo dificuldades para encontrar outro tema de mobilização". "À medida em que o bolso aperta, o americano comum fica mais concentrado na economia e ávido por um governo que dê mais garantias sociais à população" -algo contrário aos preceitos do Partido Republicano.Estudo do Centro de Pesquisas Pew aponta que, entre 1994 e 2007, o apoio a programas sociais governamentais cresceu mais de 12 pontos. No mesmo período, a adoção de valores tradicionais de família e casamento caiu oito."Falharam ao tentar manter aborto, casamento gay e imigração como problemas culturais urgentes. E a dificuldade dos conservadores de impor tópicos é em parte o motivo pelo qual McCain está em apuros."A estratégia de 2008 reflete essa queda de prestígio. "Hoje, os candidatos correm no centro. McCain, por exemplo, explora a imagem de independente, pronto para agir contra seu partido." E também é contra emendar a Constituição para vetar o casamento.Foi para contrabalançar o efeito negativo que sua imagem teria nesse grupo que McCain escolheu para vice Palin, que se opõe ao aborto mesmo em casos de estupro e incesto.Há mais. Há anos, "estrategistas republicanos decidiram mobilizar sua base de apoio com uma forma de "luta de classes sociais'", escreveu nesta semana no "New York Times" o articulista conservador David Brooks. "E ninguém divide tanto o mundo entre o americano comum e a elite costeira [progressista] como Sarah Palin."Obama também falou a respeito. Na temporada de primárias, ele foi criticado por ter feito comentários sobre "a amargura de cidadãos de cidades pequenas". "Não surpreende que as pessoas tenham se tornado amarguradas e apelem para armas ou religião, ou para a rejeição de pessoas que não são como elas (...) para explicar suas frustrações", disse a doadores em evento em San Francisco.Oponentes o chamaram de elitista, uma classificação que ajudou Bush a derrotar o democrata John Kerry em 2004.Suprema CorteOutra questão sobre a qual o foco mudou foi a discussão a respeito da Suprema Corte, responsável nos EUA por decidir, entre outros, a legalidade do aborto. Atualmente o órgão tem leve maioria conservadora, mas o próximo presidente poderá mudar o quadro: terá a chance de indicar até 3 dos 9 juizes devido a aposentadorias.Até agora, contudo, "os únicos que parecem preocupados são os grupos específicos, como evangélicos e feministas", diz Abrams. Isso é novo nos EUA: nos anos 90 e começo dos 2000, a discussão sobre a Suprema Corte afetou as campanhas. "A vitória de um ou outro candidato terá enormes implicações para a corte", diz Wolfe. "Mas as pessoas só vão prestar atenção nisso depois da eleição."

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