terça-feira, 5 de janeiro de 2010

O STF dividido na questão penal

Judiciário: Posições distintas influenciarão decisões em relação ao julgamento final do mensalão petistaAções contra políticos dividem o Supremo
O Supremo Tribunal Federal (STF) está dividido quanto a abrir ações penais contra políticos. O tribunal possui hoje duas correntes distintas sobre o assunto e a divergência entre elas deverá ter repercussões em julgamentos de grande repercussão, como o mensalão do PT, do PSDB e o do Democratas no Distrito Federal.

A divisão dos ministros do STF está na definição de responsabilidade do agente político por denúncias de corrupção em seu governo. A dúvida é se o tribunal deve abrir ação penal contra a pessoa do político por denúncias gerais contra o governo em que ele atuou.

Hoje, metade dos ministros do STF acredita que esses agentes só devem ser processados por corrupção se houver uma prova evidente, algum documento claro indicando que eles sabiam efetivamente dos desvios. Já a outra metade entende que, por estar no comando de um órgão público ou de um partido político, o agente deve sim ser responsabilizado.

Essa discussão, que divide o tribunal em duas correntes, terá repercussões no julgamento final do mensalão do PT, no qual há denúncias gerais contra o partido e específicas contra políticos e dirigentes de diversas legendas. Ela já foi objeto de debates no caso do mensalão mineiro, que envolve o PSDB. E deverá ter impactos no caso do mensalão do DEM. O processo, que está no Superior Tribunal de Justiça (STJ), pode subir para o STF caso qualquer um dos envolvidos se eleja deputado federal ou senador neste ano.

A primeira das duas correntes no tribunal é conhecida como garantista e nela está praticamente a metade dos ministros. Essa corrente é liderada pelo presidente do STF, Gilmar Mendes, e costuma contar com os votos dos ministros Eros Grau, Ellen Gracie e José Antonio Dias Toffoli, que chegou ao tribunal, em outubro, e já aderiu a essa linha. De maneira geral, esses ministros acreditam que, se há corrupção num governo ou num ministério, isso não significa que o governador, ou o ministro, sabia de irregularidades e compactuava com elas.

Os ministros garantistas entendem ainda que o tribunal deve servir como um freio ao ímpeto da população de condenar os políticos sem o exame detido das provas que existem contra cada um deles. Por isso, fazem análises minuciosas de cada alegação imputada contra os políticos. Nesse trabalho, esses ministros verificam a autenticidade dos documentos apresentados como provas pelo Ministério Público contra os políticos e só mantêm a continuidade da investigação se houver indício claro de crime cometido pela pessoa do político. Se for um indício geral contra o governo que ele ocupou ou quanto ao ministério que chefiou, a tendência desses ministros é a de extinguir o processo.

A segunda corrente é a do combate à impunidade. Os ministros Joaquim Barbosa, Marco Aurélio Mello, Carlos Ayres Britto e Cármen Lúcia são os maiores expoentes dessa linha de atuação. Eles acreditam que o tribunal deve dar respostas mais rigorosas contra políticos envolvidos em casos de corrupção e se incomodam com o fato de o STF ser visto como cemitério de ações contra políticos. Esses ministros também examinam os documentos da acusação, mas costumam ser mais solidários ao Ministério Público para permitir a continuidade das investigações e a produção de novas provas. Eles costumam considerar que os fatos imputados aos políticos devem ser investigados, ainda que digam respeito a realizações coletivas do governo ou do ministério que chefiaram.

Há ainda uma leva de ministros que, ora adere à primeira corrente, ora vota com a segunda, e, por isso, acaba funcionando como fiel da balança nos julgamentos de grande repercussão. São: os ministros Cezar Peluso, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello, o mais antigo na Corte.

O principal ponto de discussão entre as correntes é justamente se os políticos realmente sabiam de supostos desvios ou crimes cometidos durante o período em que ocupavam cargos de chefia. Esse debate é constante no STF e ocorreu em três casos de grande repercussão no último semestre: o julgamento do deputado Antonio Palocci (PT-SP) e dos senadores Eduardo Azeredo (PSDB-MG) e Valdir Raupp (PMDB-RO). No caso de Raupp, o placar no STF chegou a ficar empatado em cinco votos contra cinco - uma demonstração clara de como o tribunal está dividido nesses processos.

Raupp é acusado de desviar parte de um empréstimo de R$ 167 milhões do Banco Mundial para pagar contas do Estado de Rondônia, quando era governador, em 1999. Metade dos ministros votou pela absolvição do ex-governador por entender que não há provas de que ele teve conhecimento pessoal do desvio. A outra metade concluiu que deveria ser aberta a ação para apurar se Raupp participou individualmente do repasse das verbas para a conta de seu governo.

Com o impasse, foi preciso esperar pelo voto de desempate de Celso de Mello, na última sessão do ano, em 18 de dezembro. Quando ele votou favoravelmente à abertura da ação penal, houve protestos de ministros da corrente garantista e o caso está indefinido até hoje.

O primeiro a protestar foi o ministro Toffoli. Ele argumentou que, se o STF admitir a tese de que chefes de governo devem saber de todos os atos praticados pelos seus subordinados, todos os políticos serão processados no Brasil. "Se for assim, teremos de receber denúncia contra qualquer governador, gestor e até contra presidentes de tribunais", advertiu o ministro mais novo da Corte.

Em seguida, Mendes afirmou que a responsabilidade política dos agentes é inegável. "Mas o risco é o de aceitarmos uma teoria de responsabilidade penal objetiva", completou, referindo-se à possibilidade de o STF abrir ações penais responsabilizando individualmente os políticos por atos coletivos de seus governos.

Celso defendeu o seu voto, alegando que Raupp confirmou pessoalmente, durante um debate público, os repasses do dinheiro do empréstimo para a conta do governo. Marco Aurélio também seguiu essa linha e foi irônico ao dizer que a hipótese de Raupp não saber do deslocamento do dinheiro significaria que "a governança era exercida com autonomia pelos secretários de Estado".

A divergência entre os votos foi tão grande que Lewandowski resolveu pedir vista para reexaminar os documentos. Ele já havia votado dois vezes neste processo. Primeiro, a favor da abertura de ação contra Raupp e, depois, reformulou o voto para extinguir as acusações contra o ex-governador. De fato, a linha que separa as duas correntes é tão tênue que alguns ministros têm mudado de voto no mesmo processo. Além de Lewandowski, Peluso também mudou o seu voto neste caso, indo de abertura de ação penal contra o ex-governador para a extinção do processo contra ele.

Ao fim, Marco Aurélio protestou contra a vista de Lewandowski que se ofendeu e o STF não conseguiu concluir o julgamento. Mesmo com um placar final de seis votos a cinco pela abertura da ação, o ministro-relator, Joaquim Barbosa, teve de indicar o adiamento e o caso será decidido a partir de fevereiro, quando o STF volta do recesso.

No caso de Azeredo, os debates também foram tensos no tribunal. O julgamento chegou a ser interrompido, em novembro, para discutir a validade de uma única prova: um recibo que teria sido assinado pelo então governador de Minas Gerais, em sua campanha de reeleição, em 1998. O recibo seria a principal prova de sua participação direta no desvio de pelo menos R$ 3,5 milhões dos cofres do governo mineiro para a campanha, através de agências de publicidade de Marcos Valério - o mesmo do mensalão petista. Pela denúncia do Ministério Público, o governo contratava as agências para fazer propaganda e eventos de empresas estatais e elas desviavam dinheiro para a conta da campanha política. José Gerardo Grossi, o advogado de Azeredo, disse que o recibo era falso, o que fez Toffoli pedir vista do processo.

Quando o julgamento foi retomado, Toffoli disse que, fora o recibo, cuja autenticidade foi questionada, não havia nenhum ato pessoal do governador no suposto esquema de desvio de dinheiro. Eros Grau também aderiu a essa linha que exige prova do envolvimento pessoal do político no suposto crime. "Não encontrei prova de que o governador tenha enviado ofício a estatais determinando repasses às agências de publicidade", enfatizou Grau.

Na outra corrente, Joaquim Barbosa advertiu que secretárias viram Azeredo participar de reuniões para o financiamento de campanha com a presença de Marcos Valério. Barbosa afirmou ainda que Azeredo era o controlador das estatais cujos presidentes ocuparam cargos no comitê de campanha e, por isso, o governador saberia dos desvios.

Ao fim, pesou, no julgamento de Eduardo Azeredo, o fato de o Supremo ter aberto a denúncia no caso do mensalão petista. Alguns ministros, como Lewandowski, falaram que deveriam manter coerência com a votação anterior - em agosto de 2007, o STF abriu ação penal contra 40 acusados de participação no mensalão. Foi dessa forma que o tribunal aceitou a ação do Ministério Público contra Azeredo por cinco votos a três.

A discussão sobre a autoria do crime pelo político também ficou evidente no julgamento do ex-ministro Antonio Palocci. A Polícia Federal ouviu 32 pessoas e obteve os horários e as durações de telefonemas do então ministro da Fazenda para o seu secretário de comunicação, Marcelo Netto, e deste para a revista "Época", que vazou os dados bancários do caseiro. O vazamento teria o objetivo de desmoralizar Francenildo que revelou em depoimento, no Congresso, uma movimentação atípica de dinheiro na casa de Palocci.

Mas, como não havia o conteúdo dessas ligações, o STF absolveu Palocci por cinco votos a quatro, em agosto. "Eu tendi, num primeiro momento, a receber a denúncia", afirmou o ministro Peluso, para completar que, ao ler os autos do processo, não viu prova concreta de que o então ministro tenha ordenado a quebra do sigilo do caseiro. "Posso supor que Palocci possa ter mandado ou sugerido a (Jorge) Mattoso [presidente da Caixa Econômica Federal] para emitir os extratos. Não há, porém, nenhum dado concreto de que isso tenha acontecido", completou o ministro.

Ao fim, apenas o então presidente da Caixa sofreu a abertura de ação, o que comprova a tese de que, em alguns julgamentos, o STF tem sido rigoroso na verificação de quem cometeu o suposto crime e só aceita a punição de ministros, governadores e políticos quando há evidente prova de seu envolvimento pessoal. Resta saber se o tribunal vai seguir essa linha no julgamento final dos mensalões do PT, do PSDB e do DEM.

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