domingo, 28 de fevereiro de 2010

O julgamento da neurociência

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Folha de São Paulo, domingo, 28 de fevereiro de 2010



Neurociência vai a julgamento nos EUA
Jurista estima que mais de cem advogados já usaram imagens de ressonância para tentar atenuar pena de seus clientes

Comunidade acadêmica absolve controverso uso de mapeamento cerebral em tribunal simulado durante encontro científico nos EUA

RAFAEL GARCIA
ENVIADO ESPECIAL A SAN DIEGO

O uso de imagens de mapeamento cerebral em julgamentos está proliferando nos Estados Unidos, e juristas estimam que mais de cem advogados já tenham recorrido a elas. Cientistas estão tão preocupados com o uso -e abuso- dessa tecnologia que resolveram pôr ela própria no banco dos réus.
Receosos de que estudos de neuroimagem estejam sendo mal interpretados por juízes e jurados, pesquisadores realizaram um julgamento simulado há uma semana para testar a receptividade da academia a essa prática. No fim, a nova "neurociência forense" foi absolvida.
O veredicto, decidido por um numeroso "júri" de professores universitários, estudantes e jornalistas, foi expedido em San Diego durante o encontro da AAAS (Associação Americana para o Avanço da Ciência). Todos acompanharam o julgamento de um crime ficcional em que a defesa evocou imagens de ressonância magnética como testemunhas.
Se o processo era ficcional, porém, os personagens que o interpretaram eram bem reais. Quem conduziu a simulação foi o juiz Luis Rodriguez, da Corte Superior da Califórnia. Representando a acusação estava o jurista Henry Greely, que arrolou o neurocientista Michael Rafii, da UCSD (Universidade da Califórnia em San Diego), como testemunha. Já o advogado Robert Knaier, a defesa, convocou outro especialista da entidade, James Brewer, para ajudar seu cliente hipotético.
O acusado em questão era um homem que havia comprovadamente cometido homicídio: usou uma frigideira para matar sua ex-namorada após fracassar numa tentativa de reatar. A missão da defesa era tentar livrá-lo da acusação de homicídio intencional e provar que ele não chegou a premeditar o crime, livrando-o da pena de morte. Uma extensa lesão cerebral no córtex frontal -mostrada por ressonância magnética- seria a prova de que ele não teria tido capacidade mental para refletir sobre o crime antes de cometê-lo.

Sessão aberta
O debate científico, que mais parecia filme de tribunal, lotou um dos maiores auditórios do encontro de ciência mais importante do país. A sessão começou com a arguição do advogado de defesa. Segundo Knaier argumentou, a lesão cerebral do acusado o tornava impulsivo contra sua vontade e o impedia de planejar suas atitudes.
"Existem teorias relacionando lesões nos lobos frontais com alterações de personalidade", disse Brewer, sua testemunha especialista. "Isso remonta a até 1948, com o famoso caso de Phineas Gage, um ferroviário que sobreviveu a uma lesão severa nos lobos frontais. Ele se tornou, contudo, imprevisível, irreverente, impulsivo e acabou perdendo o emprego."
A tentativa de provar que o acusado em questão teria o mesmo perfil de Gage, porém, foi contestada pela testemunha técnica da "promotoria". "É quase impossível dizer algo da personalidade do indivíduo só com base em neuroimagem", afirmou o cientista Rafii. "Em nossa clínica de neurologia cognitiva, já vimos exames de ressonância mostrando estruturas cerebrais anormais em pessoas que não possuem sintomas, e já vimos estruturas normais em pessoas com sintomas."
O fato de que a lesão era apenas uma das hipóteses para o comportamento do acusado, porém, se reverteu a favor da defesa, que rejeitou o ônus da prova. "É o Estado quem precisa provar, para além de uma margem de dúvida razoável, que a morte foi premeditada ou refletida por parte do acusado", argumentou Knaier. "Se a testemunha da promotoria reconhece que uma lesão no córtex "pode" afetar o comportamento, sua alegação ainda está dentro da margem de dúvida".

Veredicto
Aparentemente convencida pela argumentação do advogado, a plateia bancou o júri no fim do evento, pronunciando o acusado inocente de homicídio em primeiro grau (premeditado), o crime mais grave. Como considerou que pelo menos a "intenção" de matar existiu, o homem acabou condenado a homicídio em segundo grau.
Greely, que representou o promotor derrotado, disse que na realidade não é contra o uso da neurociência no tribunal, mas é preciso cautela. "Existem pesquisas mostrando que afirmações totalmente ridículas e ilógicas, se acompanhadas de frases como "a ciência diz" a "neurociência mostra", são em geral aceitas pela maioria das pessoas leigas", disse.
Para Greely, uma corte deve pesar a vantagem de provas tecnicamente complexas contra seus custos. É preciso considerar o tempo gasto com explicações técnicas ao júri, além do preço de exames como os de ressonância, que não são baratos. E testemunhas neurocientistas, diz, não estão disponíveis em qualquer lugar.

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