domingo, 21 de fevereiro de 2010

O debate do Código de Processo Constitucional

Folha de São Paulo de 20 de fevereiro de 2010
Mais um código?
ANDRÉ RAMOS TAVARES e DOMINGO GARCÍA BELAUNDE



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A proposta de um Código de Processo Constitucional, lançada neste espaço, não é de mera perfumaria jurídica, sem consequências positivas
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DESDE MEADOS do século 19 à nossa América foram incorporados diversos instrumentos de controle que permitiram, ainda no limiar de nossa tradição jurídica, estabelecer balizas controláveis em relação aos novos Estados que surgiam. Assim ocorreu no Brasil durante o império, período em que foi incorporado um precioso instrumento como o habeas corpus, já em 1830.
E, em 1841, se criaria, no México, o mundialmente reverenciado "amparo". Esses exemplos foram seguidos pouco a pouco pelos demais países da região, os quais adotaram o padrão de disciplinar tais processos nos códigos processuais existentes (penais e civis). Porém, se originalmente isso era concebido como uma defesa corriqueira de certos direitos, com o tempo tomou-se consciência de que essa fórmula promovia os próprios direitos fundamentais, ou, em terminologia moderna, os direitos humanos recolhidos nos textos constitucionais.
Já no século 20 teve-se clara percepção de que estávamos fazendo um uso de processos que se destinavam à defesa de valores constitucionais. E por isso se começou a falar de "processos constitucionais". Quem fez isso pela primeira vez foi Niceto Alcalá-Zamora y Castillo, grande processualista espanhol que viveu na Argentina e no México. Foi um embaixador da moderna doutrina processual em nossos países, muitos dos quais visitou e proferiu cursos e conferências, incluindo o Brasil.
Percebe-se que há algumas décadas se começou a estudar com rigor o que são os processos constitucionais e como esses processos se movem no âmbito jurisdicional. E para obter melhor desempenho é que se buscou elaborar leis mais técnicas, mais modernas e, sobretudo, mais especializadas. É o caso da Lei de Jurisdição Constitucional da Costa Rica, aprovada em 1989. Indo mais além, tem-se o Código de Processo Constitucional da província argentina de Tucumán, de 1999. Caso especial e paradigmático é constituído pelo Código de Processo Constitucional aprovado no Peru em 2004, atualmente em vigor. É praticamente o único que existe com essa estrutura, tendo produzido excelentes resultados.
Entendemos que a larga experiência existente em nossa América Latina e em especial no Brasil, com sua grande tradição jurídica, merece que seja sistematizada toda a legislação dispersa que aqui existe, contribuindo assim para melhorar o funcionamento dos processos constitucionais, que têm uma antiguidade respeitável, a sustentar essa proposta de um novo código, lançada neste espaço ("Proposta: Código de Processo Constitucional", "Tendências/Debates", 10/1). A proposta não é de mera perfumaria jurídica, sem maiores consequências positivas ou razões práticas para a sociedade.
A adoção desse Código de Processo Constitucional visa, sobretudo, a que esses processos já existentes se desenvolvam mais adequadamente, com maior intensidade e clareza de seu sentido real, colocando o Direito a serviço dos direitos humanos.
A proposta, portanto, está bem distante das "grandes" codificações do final do século 18 e início do século 19, da Europa, que apenas exprimiam a realização do projeto típico do liberalismo e da ideologia das classes dominantes. Não se pode mais assumir os pressupostos desses movimentos codificadores de outrora, especialmente alicerçados na concepção de um Direito reduzido à lei (ou ao código). A ideia de um código, fora desses ultrapassados parâmetros, é válida na atualidade, pelos motivos aqui expostos, sendo, ainda, expressamente recebida pela Constituição brasileira (artigo 64, parágrafo 4º, "in fine").
A presença de todo esse conjunto normativo em corpo único permite que floresça, ademais, uma disciplina própria nas faculdades de direito, pois ainda não se incorporou aos planos pedagógicos escolares, salvo raras exceções, o chamado direito processual constitucional. Esse código será uma constante e benéfica provocação, exigindo olhares mais atentos tanto da doutrina como dos juízes.
O segundo pacto republicano de Estado, lançado recentemente no Brasil pelos chefes dos três Poderes para atualizar as leis processuais (como a recente Lei do Mandado de Segurança, em 2009) e superar algumas lacunas processuais (como a lei do processo da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, também de 2009), ainda apresenta uma visão fragmentada do fenômeno, que contribui para uma certa acomodação das coisas.
Teria sido uma excelente oportunidade de pensar o sistema como um todo e realmente contribuir para a defesa dos direitos humanos fundamentais no Brasil, a incorporação da proposta de um Código de Processo Constitucional brasileiro, cujo significado, portanto, transcende o da mera troca de leis por um código.

ANDRÉ RAMOS TAVARES é professor de direito constitucional da PUC-SP, livre-docente em direito constitucional pela USP e diretor do Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais.

DOMINGO GARCÍA BELAUNDE é professor de direito constitucional da PUC-Peru e presidente honorário da Associação Peruana de Direito Constitucional. Foi um dos autores do Código de Processo Constitucional peruano.

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