quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

O lugar da saúde não é nos tribunais

Valor Econômico de 23 de dezembro de 2009 traz importante texto de Monica Re, mestre em Direito Público pela Puc-rio e Procuradora Regional da República. Colabora com o Observatório da Justiça Brasileira na UFRJ de Direito. O importante no seu quando ela menciona a necessidade do diálogo institucional entre o administrador, a sociedade e o Legislador. As cateogrias desenho institucional e diálogo institucional estão na ordem do dia da Teoria Constitucional do século XXI. Roberto Gargarella coordenador da obra Teoria y Critica del Derecho Constitucional (Buenos Aires: A. Perrot 2009) denfende todo o tempo a noção de desenho institucional. O mesmo faz C. Zurn na sua obra Deliberative Democracy (Cambridge: Cambrdige Univ Press. 2007).

O lugar da saúde não é no tribunal

Mônica Campos de Ré




O direito à saúde tem sido objeto de grande debate atualmente na sociedade brasileira, em razão de estar previsto nos artigos 5º e 6º da Constituição Federal, ou seja, tanto como um direito fundamental e, portanto, de caráter subjetivo, quanto como direito social, de âmbito coletivo. Nesse sentido, exige o cumprimento de variadas prestações positivas aos cidadãos, tendo em vista que é uma obrigação estatal.

Porém, em razão da constante inércia, atuação deficiente e omissão dos poderes Executivo e Legislativo, apresenta-se um deslocamento da arena de debates para o foro judicial, pois as pessoas tem utilizado com muita frequência a via judicial para obter decisões judiciais a fim de que seus direitos sejam assegurados.

Desta forma, em muitas ocasiões, os magistrados encontram-se submetidos a dilemas envolvendo situações dramáticas, para as quais necessitam, além de examinar o caso concreto com o devido critério, esclarecimentos de ordem técnica e conhecimentos sobre o Sistema Único de Saúde (SUS), responsável por executar as ações e programas de saúde e propiciar o acesso universal e igualitário a esses serviços, os quais são considerados de relevância pública.

Verifica-se, então, que a maioria das ações judiciais na verdade refere-se a questões coletivas, as quais, portanto, não podem ser tratadas como se fossem somente de índole individual, esquecendo-se o verdadeiro problema, isto é, a extensão dos direitos de um cidadão, analisando apenas o dever do Estado e deixando de levar em conta os demais indivíduos. Mas, inserido no Estado Democrático de Direito e considerando o princípio da separação de poderes (funções) vigente no Brasil, é conveniente perquirir sobre quem tem legitimidade democrática para decidir sobre essas questões, ou seja, os integrantes dos poderes Judiciário, do Executivo ou do Legislativo?

Em razão da constatação de um quadro onde se verifica um excessivo número de lides em tramitação em várias esferas da Justiça, nas quais são requeridos principalmente medicamentos e tratamentos médico-hospitalares, redundando no fenômeno denominado "judicialização da saúde", é necessário estabelecer critérios para racionalização da atuação judicial considerando o grande impacto administrativo e orçamentário que as inúmeras e díspares decisões judiciais ocasionam.

Quanto a este ponto é importante mencionar que a fundamentação das sentenças deve conter padrões mínimos de acei tação, tanto pela comunidade jurídica quanto pelos cidadãos, ao enfrentarem as escolhas dos outros poderes ou se houver eventual quebra do princípio da isonomia, previsto no texto constitucional e também aplicável ao direito à saúde e ao respectivo sistema encarregado de executar as ações previstas para conferir efetividade a esse direito, as quais, em sua maioria, estão previstas em políticas públicas ou programas específicos destinados a essa finalidade. É conveniente que os juízes tenham uma postura de auto-contenção ou estabeleçam preferência às escolhas dos ramos executivo - tendo em vista as questões administrativas, técnicas e orçamentárias - e legislativo, em virtude do princípio democrático.

Esses conflitos, em verdade, constituem válvulas de escape da ineficiência tanto dos órgãos administrativos quanto dos legisladores, os quais não assumem os riscos de uma decisão política, preferindo deixá-la aos magistrados, pois estes não estão sujeitos ao escrutínio popular. Logo, a resolução do problema exige providências nesses dois âmbitos, abrangendo, se for o caso, refazer o próprio planejamento e corrigir aspectos relacionados à execução das atividades pertinentes, para que as demandas não sejam canalizadas somente ao foro judicial.

É inegável que muitas sentenças constituem um avanço em termos de reconhecimento de direitos, entretanto, o excesso e a disparidade dos comandos por elas emitidos podem colocar em risco a garantia ao acesso à Justiça em situações em que seja realmente necessário recorrer ao Judiciário. Deve-se analisar, portanto, qual a forma de controle judicial dos atos públicos, pois se percebe que a arena judicial tem sido utilizada de uma forma pontual, geralmente no tocante ao fornecimento de medicamentos, mas a saúde deve ser considerada sob o prisma da integralidade, constituindo-se de uma série de medidas, tais como, exemplificativamente, a prevenção de doenças, os tratamentos médico-hospitalares etc.

Pode-se indicar como uma solução para os mencionados conflitos de massa, que seja conferida prioridade para a utilização dos processos coletivos, pois estes possibilitam uma maior abertura para a discussão dos vários aspectos de caráter multidisciplinar em questão. Por outro lado, também ampliam o diálogo institucional entre a comunidade, as esferas administrativas e o próprio legislador. Uma constatação também digna de nota é que, quando ajuizada uma ação coletiva, esta se refere geralmente à implementação ou execução de uma política pública ou a algum aspecto do serviço de saúde, do que à criação de um novo programa, porquanto já existe a previsão de uma série de procedimentos, os quais podem, apenas, não estar dimensionados de forma adequada. Contudo, não se pode esquecer que essas ações também são passíveis de críticas, pois não resolvem o problema sistêmico. Ademais, quem decide sobre as prioridades orçamentárias é o Executivo e o Legislativo e, quanto a isto, é importante a participação da sociedade para influenciar nessas escolhas.

Para concluir, é pertinente mencionar a discussão candente sobre o modo de assegurar esses direitos sociais, destacando-se a premência da introdução de guias e parâmetros de boas práticas, úteis à efetivação do controle de desempenho e eficiência, com o aprimoramento dos instrumentos legislativos e reguladores aptos a essa verificação pela sociedade e pelos órgãos de controle interno e externo, especialmente os Tribunais de Conta e órgãos do Ministério Público.


Mônica Campos de Ré é mestre em direito público pela PUC-Rio e procuradora regional da República - 2ª Região (Rio de Janeiro e Espírito Santo)

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