terça-feira, 9 de setembro de 2008

Participação popular no Brasil: o direito e o avesso constitucional

Fábio Konder Comparato, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e presidente da Comissão Nacional de Defesa da República e da Democracia da Ordem dos Advogados do Brasil, publica artigo no periódico Le Monde Diplomatique Brasil (setembro/2008), no qual analisa a realidade diversa dos institutos de participação popular previstos na Constituição Federal de 1988.

Segundo Comparato, as manifestações de soberania popular, que derivam do Estado Democrático de Direito (art. 1º § 1º da Constituição Federal) estão previstas no art. 14: sufrágio eleitoral, o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular de projetos de lei. Limitando-se ao texto constitucional, constata que um dos poderes inerentes da soberania (o de mudar, total ou parcialmente a Constituição) não pertence ao povo brasileiro, mas exclusivamente ao Congresso Nacional (art. 60 § 2º ). Ao povo não se reconhece nem mesmo o direito de iniciativa de emendas constitucionais. Mesmo aceitando-se a idéia de que o Congresso Nacional, ao alterar a Constituição, não o faz em nome próprio, mas como representante do povo, o mecanismo de representação da vontade política revela-se um grosseiro embuste:

“Em momento algum, os eleitores têm consciência de que estão conferindo aos parlamentares eleitos o poder de alterar a Constituição. E, bem entendido, em momento algum a Congresso, que já remendou o texto constitucional 62 vezes em 20 anos (uma apreciável média de mais de 3 emendas por ano), decidiu submeter sua decisão ao referendo popular.

As conseqüências práticas desse sistema bastardo são bem evidentes. O Congresso Nacional, transformado de poder constituído em poder constituinte, jamais consentirá em abdicar de qualquer de suas prerrogativas. Ou seja, a reforma política, entre nós, está submetida a um dilema: ou nada se muda, ou se rompe a Constituição. Alguns países da América Latina, como se sabe, optaram pelo rompimento, mas os resultados não foram muito animadores.”


Por outro lado, afirma Comparato que as exigências formais para a iniciativa popular de projetos de lei são tais que, em 20 anos de vida constitucional, as leis originárias do povo formam 0,05% (cinco centésimos por cento) do total de leis votadas pelo Congresso Nacional. E quanto ao plebiscito e ao referendo, o povo só pode votar quando o Congresso assim decidir, segundo a interpretação literal dada ao artigo 49, inciso XV da Constituição. Em outras palavras, “o mandante fica obrigado a obter o consentimento prévio do mandatário para poder manifestar, validamente, a sua vontade dita soberana. Nada de surpreendente, portanto, se essa autorização parlamentar para o exercício da soberania popular tenha sido dada apenas uma vez, em 20 anos de vigência da Constituição.”

É por essas e outras razões, conclui o jurista, que a Ordem dos Advogados do Brasil resolveu fazer várias proposições de reforma política ao Congresso Nacional: notadamente, a de desbloquear a realização de plebiscitos e referendos, a de facilitar a iniciativa popular de projetos de lei (PL 4718/2004, na Câmara dos Deputados, e PL 01/2006, no Senado Federal), e de instituir o recall, ou seja, a revogação popular de mandatos eletivos (PEC 073/2005 no Senado Federal).

Em posição contrária a essa idéia, cabe referir o argumento de Bruce Ackerman e James Fishkin de que o instrumento mais típico do populismo é o referendo, uma vez que impede o exercício da democracia deliberativa, ou seja, aquela em que o voto ou a decisão política são precedidos de debates estruturados dentro da sociedade. (A better way with referendums. Financial Times, 17.06.2008)

Um comentário:

Guilherme Costa disse...

Trata-se mesmo de um tema muito polêmico, com potencial para gerar um interessante debate, pois, afinal, ambos os lados apresentam argumentos fortíssimos. Não se equivoca o professor Fabio Konder ao propor a extensão destes instrumentos como caminho para o aprofundamento da democracia, se por "democracia" compreendemos a efetiva participação do povo na tomada de decisões, e a consequente legitimação destas. Quem sabe ainda sejamos um grupo de "bestializados"... Ou quem sabe um público, em vez de povo (Lima Barreto)...

Já, por outro lado, acontecimentos recentes em países de realidade muito próxima (Bolívia, Venezuela, Colombia...) trazem-nos um pouco de receio. Afinal, o que representa o uso do instrumento de consulta popular, quando este é submetido a fim de aprovar um projeto constitucional de tendencia política notoriamente viciosa? Está o povo legitimado a instaurar, contra si próprio, um governo autocrático? E o que pensar de um referendo para a aprovação de um terceiro mandato presidencial?