domingo, 10 de outubro de 2010

O aborto além da vida

O aborto além da vida Estado de São Paulo
O direito a viver tem previsão constitucional, é cláusula pétrea e fundamentaria, em última instância, a ampla restrição ao direito de abortamento. Mas com seres humanos as coisas não são tão simples
09 de outubro de 2010 Rafael Mafei Rabelo Queiroz
O tema do aborto ganhou páginas de jornais recentemente, motivado por seu protagonismo na reta final da campanha eleitoral. É um tema dormente na esfera pública brasileira, sempre à espera de uma fresta pela qual possa emergir. Talvez isso explique o porquê de a discussão atual a seu respeito dar-se de forma tão simplória: não estamos acostumados a debater o aborto como importante questão política que é. Quando enfim surge a oportunidade de fazê-lo, o debate ora é travestido de uma gincana de aparências onde cada qual tenta mostrar que é mais a favor da vida ("em todas as suas dimensões"), ou então é renegado sob a falsa alegação de que se trata de questão de foro íntimo. O aborto é sim um tema íntimo, mas para gestante, não para a pessoa pública com poderes sobre a questão. Ele tem enorme relevância enquanto tema político, pois revela posições não só sobre a extensão que se atribui a um conjunto relevante de direitos fundamentais que vão muito além do direito à vida, como também as circunstâncias em que cada um desses direitos deve prevalecer sobre os demais, além de permitir a reflexão sobre as dimensões de nossa vida privada nas quais é legítima a intervenção estatal.

O argumento central a favor da restrição do aborto decorre das seguintes premissas: (P1) É errado matar um ser humano; (P2) O feto é um ser humano; (C) Logo, é errado matar um feto. O senso comum das opiniões favoráveis à ampliação do direito ao aborto ataca a segunda premissa, argumentando que o feto não é um ser humano. Esse argumento é problemático; dizer que o feto não é um ser humano obriga-me a dizer o que ele é, e é difícil dizer que ele seja algo que não um ser humano. Poder-se-ia sustentar que o feto é apenas um ser humano em formação. Tal argumento tampouco convence, pois um ser humano em formação é um ser humano, assim como uma muda de laranjeira, que é uma laranjeira em formação, é uma laranjeira.


A premissa chave é a primeira. O fato de ela ser menos questionada é por si só revelador da força que tem a ideia de sacralidade da vida humana, que a fundamenta. Existem razões variadas para isso. Em primeiro lugar está a maior empatia que temos em relação a outros seres humanos: imagino que uma galinha sofra ao ser escaldada viva em água fervente, mas sou capaz de assemelhar com mais vividez o sofrimento de um ser humano que queime a língua em sopa quente. Há também forte pano de fundo religioso envolvido, pois a tradição religiosa judaico-cristã atribui apenas à espécie humana o fenômeno da animação (receber uma alma), além de reconhecer no ser humano um espelho do ser divino - "à Sua imagem e semelhança".


Do argumento de que é errado matar um ser humano deriva-se a percepção de que os seres humanos têm direito à vida. Aqui, a demarcação entre razões jurídicas, morais e religiosas esmaece, pois o direito à vida tem previsão constitucional e é cláusula pétrea. Esse direito fundamentaria, em última instância, a ampla restrição ao direito de abortamento.


Mas as coisas não são tão simples. Nem sempre "tenho direito a x" implica "não posso ser privado de x". Mesmo que eu tenha direito a x, posso perder x se alguém tiver direito a y e esse direito implicar eu ser privado de x. A própria disciplina do aborto ilustra isso: o direito do feto à vida não impede que a mãe interrompa a gestação proveniente de estupro (Código Penal, art. 128, II). Seria enganoso dizer que o feto concebido em estupro não tem direito à vida. Ele tem direito à vida, mas há outra pessoa envolvida na situação, a gestante, que tem um direito de dignidade que independe do feto, cujo exercício a permite manter a gravidez ou abortá-la e, neste último caso, o direito do feto à vida não prevalecerá.


Toda a discussão filosófico-jurídica em torno do aborto está em saber quais são as circunstâncias em que direitos de uma outra pessoa, a gestante, que são igualmente constitucionais, fundamentais e pétreos, podem prevalecer sobre o direito do feto à vida. A questão não se resume, portanto, ao apreço que se tenha pela vida humana, ainda que evidentemente passe por isso.


Se o problema é de embate de direitos, poder-se-ia defender que os direitos que podem competir paritariamente com o direito do feto à vida são mais amplos do que o que se prevê nos permissivos do Código Penal, que permite o abortamento em caso de risco à vida da gestante ou gravidez proveniente de estupro. Por essa via é que deve ser debatido, por exemplo, o direito a abortamento de fetos anencéfalos, eufemisticamente chamado de "antecipação eugênica do parto" na ação que tramita no Supremo Tribunal Federal e desde 2004 espera uma decisão.


É também fundamental determinar se o feto, que é ser humano, é também pessoa humana. A distinção importa. pois é à pessoa humana que a Constituição atribui o mais forte dos direitos fundamentais, o direito à dignidade (art. 1º, III). Se o feto, mesmo que ser humano, não for pessoa humana, ele entra enfraquecido nesse embate de direitos. Esse foi o principal fundamento da decisão Roe vs. Wade, da Suprema Corte dos EUA, que, em 1973, declarou inconstitucionais muitas leis que proibiam o aborto. No Brasil, na decisão da Adin 3510 (Lei de Biossegurança), o STF reconheceu a distinção entre embrião, feto e pessoa: "As três realidades não se confundem: o embrião é o embrião, o feto é o feto e a pessoa humana é a pessoa humana. Donde não existir pessoa humana embrionária, mas embrião de pessoa humana". Assim, não existiria pessoa humana fetal, mas sim feto de pessoa humana, que seria protegido contra atentados frívolos, mas não teria, ao menos não durante todas as fases da gestação, um direito moral e legalmente equiparável à dignidade da pessoa já nascida. Pela coerência que se espera que uma corte constitucional tenha no tratamento de temas importantes, não espantará se esse mesmo raciocínio aparecer no julgamento da ação dos fetos anencéfalos, que deverá ser julgada em breve.


Essas razões, que dão mostra apenas de pequena parte do atual debate político-jurídico em torno do aborto, já permitem dimensionar a importância pública e política que o tema tem. Essa é a substância que se esperaria de um debate público a respeito do aborto, mas que, infelizmente, desapareceu em favor de um vazio "show da vida" que pouco acrescentará à forma como reconhecemos e protegemos os muitos e diferentes direitos pertinentes à situação.


RAFAEL MAFEI RABELO QUEIROZ É DOUTOR EM DIREITO PELA USP, PROFESSOR E COORDENADOR DE PESQUISAS DA DIREITO GV

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