Conjur 20 de janeiro de 2011
EntrevistashomevoltarJulgamento reservadoTribunal não pode tomar decisões em praça públicaPor Aline PinheiroO Tribunal Constitucional de Portugal não desfruta, nem de longe, da popularidade que tem o Supremo Tribunal Federal no Brasil. Pudera. Lá não tem TV Justiça. E, mais ainda, os julgamentos acontecem de portas fechadas, como nos outros países europeus. O atual presidente da corte constitucional portuguesa, Rui Manuel Gens de Moura Ramos, defende a importância de se preservar o colegiado das pressões externas. Enquanto os julgadores formam o entendimento do tribunal, diz, opinião da sociedade tem de ficar do lado de fora.
Moura Ramos não é, no entanto, um defensor da figura do juiz como uma autoridade anônima. Pelo contrário. À frente do Tribunal Constitucional de Portugal desde 2007, luta para tornar a corte mais conhecida no país. Ele recebeu a Consultor Jurídico em seu gabinete, na sede do Tribunal Constitucional, em Lisboa. Durante uma longa conversa no final do ano passado, contou que, na tarefa de aumentar a popularidade do tribunal, tem como amiga e inimiga a imprensa que, em sua opinião, muitas vezes despeja no ralo o esforço da corte de se fazer conhecer. "As notícias que saem do tribunal, por vezes, são mal compreendidas, até porque às vezes a imprensa não divulga a decisão, mas os votos vencidos, que são aquilo que o tribunal não decidiu", lamenta.
Outra barreira que ele enfrenta para tornar o tribunal conhecido é o distanciamento do cotidiano das pessoas. O Tribunal Constitucional não julga pedidos de Habeas Corpus, como faz o STF brasileiro, nem condenações de ninguém, apenas se uma norma viola ou não a Constituição portuguesa. "O processo aqui é com menos paixão e, por isso, a sociedade está mais longe."
A Corte Constitucional portuguesa começou a funcionar em 1983, ano em que julgou 30 casos. Desde então, vive um crescimento constante do número de processos. Em 2009, foram quase 1,2 mil julgados. Moura Ramos conta, no entanto, que a quantidade de processos ainda não é problema. Os julgadores têm dado conta do trabalho e o número de casos pendentes para julgar não tem crescido.
Em épocas de eleições, como acontece agora em janeiro, o tribunal português deixa a exclusividade da análise de constitucionalidade das leis para também atuar como tribunal eleitoral. Em Portugal, não há um Tribunal Superior Eleitoral. É a corte constitucional que faz esse papel.
As diferenças com o seu equivalente brasileiro não param por aí. Em Portugal, não é o presidente da República que indica juiz para a corte constitucional. Dos 13 julgadores que compõem o tribunal, 10 são eleitos pela Assembleia da República, o Parlamento português, e os três restantes são escolhidos pelos próprios juízes da corte. Os critérios de escolha também são mais objetivos: pelo menos seis julgadores da corte constitucional têm de ser escolhidos entre os juízes das outras instâncias. Dos outros, exige-se apenas formação em Direito.
Moura Ramos chegou ao tribunal escolhido pelos próprios colegas. Lá, ele e os demais julgadores cumprem mandato de nove anos. O de Moura Ramos termina em 2012. Antes de se tornar juiz constitucional, especializou-se em Direito Internacional e desempenhou funções de peso, como delegado do governo português na Comissão da ONU para o Direito do Comércio Internacional e juiz do tribunal de primeira instância da União Europeia.
Na entrevista exclusiva à Consultor Jurídico, também analisou a relação da corte — e da Justiça, como um todo — com a sociedade, falou da importância de modular os efeitos de uma decisão para não devastar um país e contou que a crise econômica no continente desequilibrou também o Judiciário.
Leia a entrevista:
ConJur — Que imagem o senhor tem do Judiciário brasileiro?
Moura Ramos — O Brasil é um Estado muito plural e, por isso, é difícil falar do Judiciário brasileiro como um conjunto. Meu maior contato é com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e posso dizer que a imagem que eu tenho é muito boa. Aliás, o nosso sistema de controle de constitucionalidade é inspirado no brasileiro. Por exemplo, o controle difuso de constitucionalidade, que permite que todo e qualquer tribunal se recuse a aplicar uma lei que entende estar em desacordo com a Constituição. Nós herdamos essa tradição.
ConJur — Mas, diferentemente do STF, o tribunal de Portugal não julga pedidos de Habeas Corpus, por exemplo.
Moura Ramos — Não, nós só julgamos a constitucionalidade de normas. No Brasil, o que há é um sistema Judiciário que tem como vértice o Supremo Tribunal Federal. Em Portugal, o sistema judiciário tem como vértice o Supremo Tribunal de Justiça. Ao lado, existe o Tribunal Constitucional que tem competência exclusiva, concreta e definitiva em matéria de controle da constitucionalidade.
ConJur — Recursos de quaisquer tribunais do país podem subir à Corte Constitucional?
Moura Ramos — É necessário que se esgotem os recursos no trajeto ordinário, a menos que um tribunal se recuse a aplicar uma norma por considerar que é inconstitucional. Aí o Ministério Público pode trazer imediatamente a questão para cá.
ConJur — Qualquer cidadão pode questionar a constitucionalidade de uma lei?
Moura Ramos — Qualquer cidadão pode recorrer ao Tribunal Constitucional de uma decisão que tenha aplicado uma norma que ele julgue contrária à Constituição. Quando o tribunal decide três vezes em casos concretos que a norma é inconstitucional, o Ministério Público pode pedir que o tribunal declare a inconstitucionalidade daquela lei para ela deixar de existir. Agora, sem ser em caso concreto, só o presidente da República, o Ministério Público e um grupo limitado de instituições é que podem questionar uma lei.
ConJur — A sociedade portuguesa conhece o Tribunal Constitucional de Portugal? Sabe da importância da corte para o país?
Moura Ramos — Eu faço o possível para que conheça. Estou a falar com você, jornalista brasileira, e mais cedo dei entrevista para a primeira cadeia de rádio portuguesa, a Antena 1. Mas, aqui, nós não decidimos se um sujeito vai para a cadeia ou não vai. Nós decidimos se uma norma é contra a Constituição. O processo aqui é com menos paixão e, por isso, a sociedade está mais longe.
ConJur — Como é a relação do tribunal com a imprensa?
Moura Ramos — Criamos formas de a imprensa conhecer as nossas decisões, mas tenho a impressão de que o tempo da Justiça e do jornalismo são diferentes. Se há um acontecimento, os jornalistas querem saber a opinião do tribunal na hora, mas o tribunal não pode se manifestar de imediato. Precisa esperar o caso chegar até ele como processo, ouvir as partes, decidir e só depois divulgar o que pensa. Hoje mesmo recebi uma jornalista de rádio aqui e ela queria que eu me pronunciasse sobre propostas de lei ainda em votação no Parlamento. É claro que não pude me manifestar.
ConJur — Essa falta de entendimento do tempo da Justiça também contamina a sociedade?
Moura Ramos — A sociedade precisa da resolução rápida dos seus problemas. Também não compreende bem o papel do Tribunal Constitucional. As notícias que saem do tribunal, por vezes, são mal compreendidas, até porque às vezes a imprensa não divulga a decisão, mas os votos vencidos, que são aquilo que o tribunal não aprovou. Por vezes, é veiculado o que aparentemente é mais atrativo para o público.
ConJur — Os portugueses conhecem os juízes do Tribunal Constitucional?
Moura Ramos — Isso tem muito a ver com a tradição. Nos Estados Unidos, por exemplo, o tribunal é conhecido como tribunal do juiz fulano. Há uma maior personificação da instituição. A Inglaterra é um pouco como os Estados Unidos. Na Europa continental, não é tanto assim. Os juízes não são conhecidos individualmente. Ainda assim, tendo a pensar que, em Portugal, pelo menos o presidente do Tribunal Constitucional é conhecido.
ConJur — A popularidade do juiz é boa ou ruim?
Moura Ramos — É boa, dependendo do papel que o juiz representa. Quanto maior for a importância do seu papel como juiz, melhor é que ele seja conhecido como tal.
ConJur — Para o senhor, o juiz tem de ouvir os anseios da sociedade ou julgar única e exclusivamente de acordo com a lei?
Moura Ramos — O juiz é um cidadão e vive imerso na sociedade. Não tem como deixar de conhecer as pulsões sociais. Dito isso, ele tem uma missão, que é aplicar a lei ao caso ou, aqui no nosso tribunal, julgar as normas de acordo com a Constituição. Enquanto julgador, tem de decidir de acordo com os quadros da lei e da Constituição, e não pretender satisfazer a opinião da sociedade. A sociedade não compreenderia que o juiz se afastasse do seu papel de aplicador da lei para se basear na opinião dela.
ConJur — Será que não compreenderia? Uma pessoa é acusada, é estampada em páginas de jornal como condenada e, quando o juiz absolve, ele é mal compreendido. Se ele condenasse, poderia até ser aplaudido.
Moura Ramos — A responsabilidade é da imprensa, que não deve julgar nas páginas de jornal quem ainda não foi julgado pela Justiça. Julgar alguém é uma atividade difícil. Se uma pessoa tem que ser julgada, que seja ao menos com as garantias que o tribunal dá e que o palco social não pode dar. A imprensa precisa entender que uma coisa é o seu papel na procura de esclarecer os fatos, outra coisa é a situação do julgamento. Uma pessoa não pode ir para julgamento com a sociedade já convencida da sua culpa.
ConJur — O senhor entende que o sigilo judicial de um processo vincula o jornalista?
Moura Ramos — Em Portugal, se um processo está em segredo de Justiça, a imprensa não deveria saber. Na prática, os jornalistas acabam sabendo e, se sabem, foi a partir de pessoas que têm contato com o processo e que não deveriam permitir que a imprensa soubesse. O que eu quero dizer é que, quando a imprensa divulga algo que está em sigilo, está violando a lei. Mas, para que isso acontecesse, alguém violou antes. A irregularidade cometida pela imprensa está associada à irregularidade cometida por outro.
ConJur — Mas a imprensa tem de ser responsabilizada? O jornalista tem de ser punido?
Moura Ramos — Se causa danos a alguém, a imprensa tem que pagar por isso. Há um direito importante que é a presunção de inocência. A pessoa tem direito a ser tratada como inocente enquanto não for condenada pelo tribunal. A imprensa ainda não é um tribunal que possa condenar em praça pública.
ConJur — E o jornalista? Tem de ser responsabilizado criminalmente, como quer o governo da Itália?
Moura Ramos — Não, criminalmente não. Entendo que tem de haver uma responsabilização do órgão de comunicação social, mas também tem de se responsabilizar a pessoa que esteve na origem da fuga, que conduziu para que aquilo pudesse ser publicado. A imprensa não vai lá sem que abram a porta.
ConJur — O juiz deve considerar as consequência políticas, econômicas e sociais da decisão que vai tomar?
Moura Ramos — Sim. Suponha que uma lei decrete que as pessoas têm de pagar determinado imposto e, anos mais tarde, seja questionada aqui no tribunal. Se decidirmos que a lei viola a Constituição, todo mundo pagou o imposto indevidamente e, portanto, teria direito a receber de volta. É evidente que o tribunal não pode ser indiferente a isso. O que nós fazemos é dizer que a lei é inconstitucional, que o imposto não deveria ser cobrado, mas, porque seria tão complicado e oneroso para o Estado restituir tudo que foi pago, a decisão só produz efeitos daqui para frente. Ou seja, não vale para trás. É necessário ter em conta as consequências da decisão para poder modular seus efeitos, se preciso.
ConJur — Quando o Tribunal Constitucional foi criado, em 1983, julgava menos de 300 processos por ano. Hoje, julga mais de mil. A que se deve esse crescimento?
Moura Ramos — Há várias causas. A Justiça constitucional ficou mais conhecida. É crescente a conscientização de que há leis injustas, que não podiam ser promulgadas. Há também o fato de muitas partes quererem protelar a decisão. Mandam o processo para cá como forma de ganhar tempo. É claro que não ganham muito porque o tribunal decide rapidamente.
ConJur — Em quanto tempo o Tribunal Constitucional julga um processo?
Moura Ramos — Depende. Quando o presidente da República entende que uma lei aprovada pelo Parlamento está em desacordo com a Constituição, ele pode questioná-la antes de ser promulgada. Nesses casos, o tribunal tem poucos dias para julgar. Quando o questionamento é de uma lei já em vigor, é diferente o tempo. Pode demorar um mês para ser julgada ou mais de um ano, dependendo da complexidade do que está em discussão.
ConJur — E quanto tempo demora um processo em Portugal, do começo lá na primeira instância até o fim?
Moura Ramos — É muito variado e eu não tenho esses dados aqui. O que posso dizer é que o tempo da primeira instância é muito diferente do tempo dos tribunais superiores. Estes são mais rápidos. Na primeira instância, demora mais. Temos, como exemplo de como as coisas não podem ser, o processo da Casa Pia [um dos maiores escândalos de pedofilia em Portugal]. Foram seis anos até sair uma decisão da primeira instância. Os acusados puderem arrolar testemunhas de defesa no número que quiseram, já que a lei portuguesa não prevê um limite. Não pode ser assim. Nem a sociedade e nem o arguido pode esperar tanto tempo.
ConJur — O aumento da quantidade de processos é um problema para o Tribunal Constitucional?
Moura Ramos — Não. O número de processos que temos hoje é bastante gerenciável, basta dizer que a pendência no tribunal não tem aumentado.
ConJur — Por que os julgamentos em Portugal e nos outros países europeus acontecem de portas fechadas? É uma forma de proteger o tribunal e seus julgadores?
Moura Ramos — O princípio é que o colégio deve ser preservado do contato com o exterior, quer dizer, não deve haver pressões da opinião. O processo é público, mas a decisão não pode ser discutida em praça pública.
ConJur — Transmissão ao vivo em rede nacional de julgamentos, como acontece no Brasil, nem pensar?
Moura Ramos — A transmissão ao vivo dos julgamentos é uma particularidade brasileira que não existe nos outros países e que permite maior contato da população com o Poder Judiciário. Pode-se questionar se os juízes continuariam a agir da mesma maneira se o julgamento não estivesse sendo televisionado. A TV Justiça é uma experiência do Brasil que não critico, mas julgo que no universo europeu estamos longe disso ainda.
ConJur — Em Portugal, os juízes cumprem mandato de nove anos no Tribunal Constitucional. Essa renovação constante é boa ou impede a consolidação de jurisprudência?
Moura Ramos — A experiência do tribunal mostra que as alterações na composição da corte não comprometem o essencial da jurisprudência. A segurança jurídica não fica prejudicada. Além do mais, estabilidade não significa que não possa haver uma ou outra alteração. Com o tempo, as mudanças na composição da corte também não vão ser tão juntas, já que com falecimentos e renúncias, os mandatos dos juízes vão deixando de coincidir.
ConJur — Portugal não tem Defensoria Pública. O senhor é a favor da criação?
Moura Ramos — Não. O Estado português já tem muitas instituições e, neste momento, não tem estrutura para a criação de um novo órgão. Aqui já existe uma assistência judiciária para quem não pode pagar advogado, que é gerida pela Ordem dos Advogados.
ConJur — A Constituição portuguesa passa por constantes processos de revisão. Isso gera instabilidade no país?
Moura Ramos — Enquanto no Brasil a Constituição pode ser emendada a qualquer altura, em Portugal só pode ser emendada com uma revisão. Ou seja, o nosso texto constitucional é menos suscetível do que o brasileiro ou italiano, por exemplo. Desde 1976, a Constituição foi revista sete vezes.
ConJur — O fortalecimento do Judiciário da União Europeia e também da Justiça do Conselho da Europa enfraquece o Poder Judiciário nacional?
Moura Ramos — Não. O Conselho da Europa tem uma jurisdição especial que é controlar se os Estados respeitam os direitos humanos. A corte do Conselho não reforma as decisões judiciais nacionais, mas condena o país a pagar indenizações se achar que houve violação dos direitos humanos. Os tribunais da União Europeia também não podem reformar decisões da Justiça nacional. Eles apenas analisam se houve ou não desrespeito ao Direito comunitário.
ConJur — É possível ter uma instituição forte como a União Europeia em outros continentes?
Moura Ramos — Acho inevitável uma maior aproximação dos países, mas não é inevitável que o grau de integração seja o mesmo em todos os casos. A União Europeia é resultado das guerras no continente, que tornaram claro que tinha de haver uma união. Na América Latina, felizmente, não se precisou ir tão longe.
ConJur — De que maneira a crise econômica afetou o Judiciário português?
Moura Ramos — De muitas maneiras. Aumentou o número de pedidos de falência nos tribunais e de ações contestando o não pagamento de dívidas. Deu uma desequilibrada no sistema. Esse equilíbrio ainda não foi recuperado e não sei em quanto tempo será.
quinta-feira, 20 de janeiro de 2011
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