De: "Lenio Luiz Streck"
Data: Sab, Janeiro 29, 2011 10:35
Para: "Dierle Nunes"
Prioridade: Normal
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Controle Preventivo e Juristocracia
*Constituição não prevê controle de constitucionalidade preventivo*
Por Lenio Luiz Streck e Martonio Mont'Alverne Barreto
Lima
*O Poder Legislativo é o coração do Estado, o Poder Executivo é o cérebro,
que dá o movimento a todas as partes. O cérebro pode cair em paralisia e o
indivíduo prosseguir vivendo. Um homem fica imbecil e vive, mas assim que o
coração cessar suas funções, o animal está morto. Não é pela lei que o
Estado subsiste, mas pelo poder legislativo -* Rousseau.
[1]
*1. Considerações preliminares necessárias: o nascimento do voto e a
“superação” do preconceito contra as “massas incultas”.*
Em seu trabalho *Democracia ou Bonarpartismo*, Domenico
Losurdo[2]
dedica a observar a trajetória da tormentosa luta pelo sufrágio
universal, especialmente nos últimos 200 anos das aventuras das sociedades
ocidentais. Em outras palavras: o que nos parece hoje prosaico – o direito
de que todos podem votar e ser votados – nem sempre assim foi. A história
exibe a dura realidade dos fatos concretos a comprovarem o sangue, a
violência e o elevado preço pago para que, por exemplo, mulheres pudessem
votar e ser votadas. Como diria Jorge Luis Borges “não há nada como a morte
para melhorar as pessoas”.
A tese central desta obra de Losurdo, explicitada logo no prefácio do autor
à edição brasileira, é a rediscussão de que o liberalismo teria “por um
impulso puramente interno” produzido uma democracia “cada vez mais rica e
mais ampla”. Losurdo insiste, com maestria, na tese contrária. Para ele, o
liberalismo resistiu, enquanto lhe foi possível, à ampliação da democracia,
ao aumento de seus participantes, e principalmente, à dilatação das
atribuições dos órgãos compostos por aqueles que, agora, podiam participar
dos processos decisórios das sociedades. Os clássicos do liberalismo
transbordam erudição a comprovarem sua disposição firme de enfrentar o
assunto com os melhores momentos de suas melhores cabeças, sempre no sentido
de deixar claro que “política não é assunto de todos”.
Recorrendo às obras e discursos de gente com Hamilton (para quem o povo “nem
é a voz de Deus (...), e é turbulento e inconstante”), até aquela de Arthur
Schlesinger Jr. (para este, a inclusão dos negros como eleitores nos Estados
Unidos na primeira metade do século XX, “sem considerar sua inteligência e
capacidade”, consistiria num atentado ao “melhor da herança anglo-saxã”),
Losurdo[3]
que o
*front* da disputa sobre a universalização do sufrágio não se localizava
somente nas ruas, nos jornais ou nos debates da imprensa: estava, sobretudo,
amparado por uma competente rede de suporte intelectual. E, neste ambiente,
o mais importante era impedir o acesso ao voto dos que não possuíam cultura
e instrução para tal.
Aqui, a inspiração remonta eras mais passadas, com as formulações de Edmund
Burke (com sua “multidão suína”, que precisa trabalhar para sobreviver,
faltando-lhe o tempo para estudos) e Walter Bagehot, (com a seleção natural
para as coisas da política). Com a derrota destas ideias, o liberalismo
obrigou-se a incorporar as incultas multidões nos processos decisórios.
Restava, portanto, um flanco a ser atacado pelos liberais: o produto destas
“maiorias loucas”, agora representadas no poder legislativo. Nada como algum
tipo de controle sobre a produção legislativa. E, se tal controle puder ser
preventivo, resolve-se o desafio da estabilidade institucional de qualquer
sociedade, a ter nas mãos de poucos homens cultos o bom destino da
estabilidade econômica, política e social, tão necessárias ao bom governo.
Nada melhor do que colocar quem não foi eleito para dizer, mesmo sem o texto
votado “ir para as ruas”, que ele não é constitucional.
*2. O controle abstrato preventivo da constitucionalidade.*
No momento, parece ter retomado fôlego a antiga ideia de um controle
preventivo – judicial - da constitucionalidade. Por tal mecanismo, em *terrae
brasilis*, o Supremo Tribunal Federal poderia declarar inconstitucionais,
ainda durante o processo legislativo, atos que viriam a ser sancionados pelo
presidente da República ou os decretos legislativos, expedidos sem a sanção
presidencial. Este singelo (*sic*) mecanismo, utilizado em outros países,
como em Portugal, poderia, na opinião de alguns de seus importantes
defensores, “neutralizar desvios no exercício inadequado do poder
regulamentar” ou ainda, com a introdução de tal medida “evitaríamos inúmeras
ações se o STF já pudesse definir sua
validade”[4]
.
Proporíamos como direções ao debate sobre este tema duas perspectivas:
primeira*,* aquela que se vincula à teoria de democracia atual e o que
poderia significar, para o conceito de democracia e sua realidade
brasileira, a adoção desta medida; no segundo instante (porém jamais
secundário!) uma abordagem sob as determinações a respeito do assunto,
expressadas no texto de nossa Constituição Federal.
Já lembrou um Ministro do nosso STF, não há muito tempo, que nos Estados
Unidos proliferam textos sobre as decisões da Suprema Corte quase ao mesmo
tempo em que são proferidas. Desta forma, a mesma Suprema Corte está,
positivamente, sempre atenta às repercussões do que decide, porque sabe que
é vigiada de perto. Pois bem. Concordamos totalmente com o Ministro e
esperamos que estas breves reflexões possam desencadear outros debates,
noutros rumos, com outras perspectivas.
*3.* *Controle judicial preventivo e democracia.*
Não nos parece outro entendimento capaz de subsidiar a idéia da instituição
de um controle abstrato preventivo da constitucionalidade no Brasil senão
aquela da desconfiança em relação ao Poder Legislativo. Aliás, esta abunda
em trabalhos acadêmicos, em discursos proferidos em grandes salas e grandes
ante-salas de monumentais eventos jurídicos realizados anualmente no País.
Aliás, a produção democrática do direito cada dia é levada menos em conta em
nosso país, bastando, para tanto, examinar o modo como os Tribunais “passam
por cima” das leis (bem recentemente, o STJ, sem uma justificativa em nível
de jurisdição constitucional, fez soçobrar o dispositivo do Código Penal que
estabelece que a prescrição somente se conta depois de transitada a sentença
condenatória para o Ministério Público; ou os Tribunais da federação,
inclusive parcela do STJ, que negam validade ao artigo 212 do CPP, que
estabelece o sistema acusatório na inquirição de testemunhas; isso para
dizer o mínimo). Talvez o argumento – não confessado – é de que o Parlamento
não sabe “fazer leis”.
Voltando às salas de aula e aos auditórios: uma multidão de juristas a
discursar a respeito de uma eventual má qualidade da representação política
que chega a cada legislatura e Brasília e nas assembléias estaduais; todos
recebem aplausos e são “apoiados” de todas as formas. Sempre nos restou
complexa a seguinte pergunta: mas como desaprovamos aqueles que nós mesmos
elegemos? Somos *outsiders* da política? Complexa a resposta, mas não
absolutamente impossível.
A esmagadora maioria dos presentes a aplaudirem de pé tais discursos e seus
autores não representam mais do que vinte por cento do povo brasileiro e, na
verdade, guiam-se pelo puro costume fácil de criticar a política e os
políticos pelo simples criticar. Não foi sem sentido que Maria Rita
Kehl[5]
em conhecido e polêmico artigo, o preconceito que se tem com
resultados de processos políticos decisórios quando as “maiorias loucas”
podem se manifestar. Por este entendimento, um Congresso Nacional composto
por aqueles que pouco ou nada entendem de constitucionalidade, técnica
legislativa etc., são propensos à produção legislativa desenfreada e, mais
grave, desrespeitosa à Constituição. Desta forma, um controle preventivo,
emanado do Supremo Tribunal Federal, poderia corrigir estas distorções.
Na verdade, esta idéia esconde duas formas de se atingir a democracia com um
só cajado. Primeiramente, revela o quanto nosso legislativo é suspeito aos
olhos de muitos dos que são responsáveis pela produção da cultura jurídica
nacional. Não se enxergar que legislativo algum do mundo, em período algum,
deixou de se envolver em toda sorte de escândalos, de oportunismos, de
cinismos e de sofismas traduz uma análise superficial sobre o funcionamento
da democracia.
Deixar de ver a fática realidade de que o legislativo brasileiro tem sido um
dos mais atuantes do mundo – acumula as funções de legislar de fiscalizar e
de julgar – sendo ele o responsável por uma consolidada democracia, que
construiu uma das assembléias constituintes mais abertas do mundo, enfrentou
o *impeachment* de um Presidente no escorreito limite da legalidade, tendo
passado por escândalos de toda ordem sob todos os governos, corresponde a
ignorar com preconceito o que o voto dos pobres, dos incultos também ajudou
a produzir.
O que se faz necessária é a compreensão de que a aparente confusão a imperar
nos parlamentos é parte da política, já que política democrática é conflito.
A heterogeneidade das tensões sociais lá representadas bem denuncia o quanto
heterogênea é a sociedade que a produziu. Não cabe ao poder constituído
questionar o que foi questionado quando do momento constituinte. Se elegemos
bem ou mal, que paguemos por isso, ou usufruamos o bônus da felicidade da
boa escolha. Para os momentos excepcionais, a Constituição previu as regras
de exceção, esta dentro do direito constitucional.
Ao deparar-nos com parlamentares de atividade incompatível com o elevado
cargo que exercem, temos leis e regulamentos a poderem afastá-los.
Recorramos à legalidade constitucionalizada (lembremos Elias Diaz) e
aceitemos que, em quatro anos, teremos a oportunidade de correções das
escolhas que fizemos. Merece ser ressaltado que nenhuma sociedade
democrática deixa de atirar pedras à política e a seus políticos. Nenhuma
delas, ao que se tem notícia, rejeita a democracia ou decide que a solução é
o enfraquecimento de seus legislativos.
Se se toma como exemplo as sociedades parlamentaristas, esta afirmação
adquire conotação mais decisiva, uma vez que neste sistema o parlamento é ao
mesmo tempo o governo. Se o parlamentarismo levou a duas guerras mundiais
somente no séc. XX, foi o mesmo sistema, pela virtude e fortuna (e também
por todos os defeitos) de seus dirigentes parlamentares, que garantiu ao
mundo o mais longo período de paz ininterrupto de que se tem notícia.
Permitir, como o fazem alguns países, que os atos ainda em tramitação no
poder legislativo sofram controle judicial, equivale a permitir ingerência
decisiva sobre a política. Dito com outras palavras: significa o
enfraquecimento do poder legislativo, do voto direto e secreto, com igual
valor para todos. Reivindica-se a infalibilidade para um poder constituído,
mais preparado, mais “prudente”, para a correção daquilo que um poder
eminentemente político é capaz de realizar.
Este conjunto de pensamento não é recente no Supremo Tribunal Federal, de
idêntica maneira que também não o é sua antípoda, sempre no próprio Supremo
Tribunal Federal,
lembre-se[6]
Se o fortalecimento da democracia não se dissocia do papel do poder
legislativo – afinal, é este quem elabora as leis para todo, a introdução de
um controle judicial preventivo atrai para o cenário judicial os embates que
deveriam se desenvolver na arena dos parlamentos. É provável que se teria
mais governabilidade; porém é certo de que teríamos menos democracia.
*4.* *Controle preventivo e sua inconstitucionalidade.*
Por esta dignidade histórica que acompanha o poder legislativo, é que a
Constituição Federal representa um texto concebido a partir da
racionalidade. Neste sentido, a separação de poderes existe no âmbito de um
controle judicial da constitucionalidade sobre atos normativos e não sobre o
“vir-a-ser” de atos normativos. Deixemos, pois, que o texto da Constituição
nos diga algo, senão sobre o que devemos fazer, *pelo menos acerca do que
não podemos fazer*. Ora, enquanto uma discussão se localiza no âmbito do
poder legislativo, não é ela nada mais que um projeto de lei, projeto de
decreto legislativo, projeto de emenda à constituição etc.; instrumentos, em
qualquer dos casos, sem vigência, sem validade e sem eficácia. Ao
ingressarem, tais atos, no “mundo dos vivos” (o que se dá com a sanção e
promulgação/publicação), aqui, sim, começa o controle da constitucionalidade
a cabo do poder judiciário. Antes, não!
Não há, desse modo, como se encontrar, em todo o texto da Constituição,
qualquer comando autorizador da introdução do controle preventivo abstrato
da constitucionalidade. Aliás, é assim que o STF, quando instado, vem
decidindo. E deve continuar assim.
E vejamos quão importante é a democracia e a essa concepção aqui defendida
(de *check and balances* e do que mais se queira chamar). Tão
inconstitucional seria a introdução de um controle preventivo de
constitucionalidade – e isso somente seria “possível”, paradoxalmente, com a
aprovação do próprio parlamento – que o próprio STF poderia declarar essa
emenda inconstitucional (em controle de constitucionalidade não preventivo,
é claro!).
Ou seja, quando dizemos que não há espaço para o controle preventivo de
constitucionalidade em nosso ordenamento, queremos dizer que isso se deve ao
conteúdo da nossa Constituição compromissória, que, ao reservar para a
fiscalização de constitucionalidade tão-somente o controle sucessivo (não
preventivo), fê-lo porque esse é o modo de preservar a democracia.
Trata-se daquilo que se chama de “vedações implícitas ao poder de emendar”.
Numa palavra: o próprio Poder Legislativo, ao aprovar o modo de controlar a
constitucionalidade, já deixou assentado, ainda que implicitamente, que isso
não poderia ser alterado. E por quê? Porque o Poder Constituinte jamais
faria um haraquiri institucional, admitindo que, no futuro, pudéssemos vir a
ter uma juristo-cracia em lugar da clássica (ou contemporânea) demo-cracia.
------------------------------
[1]
Jean-Jacques, *Do Contrato Social ou Princípios do Direito Político*, São
Paulo, Hemus, 1981, p. 96.
[2]
[2]*Democracia ou Bonapartismo – Triunfo e Decadência do Sufrágio Universal*.
RJ/SP. Ed, URFJ/UNESP, 2004.
[3]
pp. 24/52.
[4]
acordo com publicação de 21.01.2010 do CONJUR: Poder regulamentarCresce
debate sobre controle prévio de leis - Marília Scriboni.
[5]
Ma. Rita. *Dois Pesos.....* SP, O Estado de São Paulo, de 02.10.2010.
[6]
o jornal “O Estado de São Paulo, , de 20.09.1988, assim se manifestou o
então Ministro Moreira Alves: “O papel do Judiciário a partir de agora será
de extrema importância para a aplicação da Constituição, principalmente com
a elevação do STF à condição de seu guardião. Com o tempo serão corrigidas
as imperfeições que o texto apresenta (...)”.
No sentido oposto, o Min. Paulo Brossard, ao se posicionar sobre a
impossibilidade de o judiciário conhecer de questões políticas, afirmou: “O
Presdente pode cercar-se de elementos corruptos e incapazes (...). O Paço do
Governo pode converter-se numa praça de negócios. O opróbio pode atingir o
ponto de a suprema autoridade exigir pecúnia das potências estrangeiras ou
receber propinas em retribuição a atos que pratique (...). Este painel
terrível pode ser o retrato do país e obra de um governante (...). O Supremo
Tribunal Federal não é superior aos demais. Cada qual, no âmbito de suas
atribuições específicas e privativas, profere a palavra derradeira, ainda
que não seja a mais sábia (...). Em verdade, nenhum poder tem o monopólio do
saber e da virtude; os poderes acertam e erram, acertam mais do que erram,
felizmente, mas também erram. É da natureza humana. E o que decide em último
lugar erra ou acerta irremediavelmente. O certo ou desacerto serão
definitivos. Esta verdade, singela e trivial, não deve ser esquecida. Nem os
homens, nem as suas instituições, são perfeitas e infalíveis”. (Supremo
Tribunal Federal. *Impeachment*. Brasília, 1996, pp. 157/158/162).
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