quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Constitucionalismo latino-americano - Bolivia

As cinco leis fundamentais do Estado Plurinacional

Vinicius Mansur
correspondente em
La Paz (Bolívia)


Com a promulgação da Lei Marco de Autonomias e Descentralização
pelo presidente Evo Morales, no dia 19 de julho, foi conformado o corpo legal
básico que permitirá o pleno funcionamento do novo Estado boliviano, conforme a
Nova Constituição Política de Estado (NCPE). O prazo para a aprovação deste
corpo, também composto pelas outras quatro leis orgânicas citadas, já estava
definido nas disposições transitórias da nova Constituição: o Congresso
boliviano tinha o dia 22 de agosto como data limite para entregá-las ao
presidente.


A oposição à Morales classificou de autoritária a rapidez
empreendida ao processo de aprovação, porém, pouco pode fazer diante de uma
bancada governista que corresponde a mais de dois terços do Parlamento. Alguns
pontos das novas leis também foram taxadas de autoritárias pelos oposicionistas,
mas até mesmo a Lei Marco de Autonomias e Descentralização, alvo das maiores
polêmicas, foi considerada um avanço por Ruben Costas, governador de Santa Cruz,
departamento que reúne a mais forte oposição à Morales. “Se recorremos a
história da Bolívia e de Santa Cruz, encontraremos que nunca houve tantos
avanços em autonomia como tivemos nos últimos cinco anos”, declarou.




Autonomias e Descentralização
Denominada de Andrés Ibáñez, em homenagem ao líder da Revolução
Igualitária de 1877, em Santa Cruz, a Lei Marco de Autonomias e Descentralização
define o regime de competência e os mecanismos de coordenação entre os
diferentes níveis de governo, além de criar o Conselho Nacional de Autonomias e
do Serviço Estatal Técnico de Autonomias para acompanhar o processo de
descentralização. A nova lei concede diferentes níveis de autonomias a regiões,
departamentos, municípios e territórios indígenas autônomos, descentralizando
ações em mais de 20 áreas, como saúde, educação, transporte, obras públicas,
meio ambiente, entre outras.


De acordo com o ministro de Autonomias, Carlos Romero, a nova
lei serve para promover o desenvolvimento econômico e produtivo do país: “Uma
vez aprovada a lei de classificação de impostos, vão poder [as unidades
autônomas] exercer sua reforma tributária, o que os vai permitir aumentar seus
recursos, mas também assumir empreendimentos econômicos que os permitam dar
sustentabilidade às autonomias, captando receitas próprias e não sujeitando-se
somente às projeções de renda geradas pela exploração de recursos naturais”. Um
Fundo de Produção e Solidariedade foi criado pela nova lei para complementar a
renda dos departamentos mais pobres.


A desconcentração de poderes prevista pela NCPE e especificada
na nova lei, a princípio, pode não soar muito inovadora para a realidade
brasileira de Estado federal. Porém, significa grandes mudanças na Bolívia, país
com forte herança centralista, no qual seu povo sequer tinha o direito de eleger
os governadores antes da NCPE, sendo estes indicados diretamente pelo
presidente. Tal herança se justifica na histórica dificuldade boliviana de
forjar a unidade e a identidade nacional, fato que sempre travou a
descentralização de poderes em nome do medo da fragmentação do Estado. Ou, ao
contrário, motivou movimentos separatistas que se camuflavam sob a bandeira da
“autonomia”. O exemplo mais recente aconteceu em 2008, quando quatro
departamentos do oriente boliviano (Santa Cruz, Pando, Tarija e Beni),
governados pela oposição à Morales, realizaram, sem reconhecimento dos órgãos do
Estado nacional, os chamados referendos autonômicos, aprovando estatutos que
conferiam aos governos departamentais poderes até então monopolizados pelo
governo central.




Enquadrando a oposição
O estatuto de Santa Cruz, por exemplo, permitia ao departamento
ter seu próprio regime eleitoral, ter o controle de titulação de terras, sobre
os serviços de telecomunicações, sobre recursos naturais, entre outros. Com a
Lei Marco de Autonomias e Descentralização, estes departamentos estão obrigados
a enquadrar seus estatutos às novas disposições legais, o que, de acordo com a
presidenta da Comissão Mista de Autonomias e Descentralização da Assembléia
Legislativa Plurinacional, a masista Betty Tejada, obrigará Santa Cruz a
modificar 40 dos 168 artigos de seu estatuto.


Tejada explicou que todos os departamentos terão até dezembro
para adequar seus estatutos ou para redigir novos. Em 5 de dezembro, o Tribunal
Constitucional será eleito por voto popular, em janeiro de 2011 tomará posse,
tendo até maio para aprovar os estatutos elaborados. Em setembro do mesmo ano,
todos os estatutos deverão ser submetidos à referendos populares.


A adequação dos estatutos deverá ser feita pelas Assembléias
Legislativas Departamentais e aprovada por dois terços dos assembleístas,
condição que não é alcançada pelos opositores à Morales em nenhum departamento,
o que os obrigará a pactuar. Para o senador masista Eduardo Maldonado, “mais do
que debater e aprovar o estatuto, esse processo deve buscar participação dos
municípios, povos indígenas e organizações da sociedade civil para conseguir um
documento altamente representativo e consensuado”. Diante de um cenário
amplamente desfavorável, três dos quatro departamentos que precisam remodelar
seus estatutos já começaram os trâmites. Apenas Santa Cruz está com o processo
parado. Os cruceños questionam, sobretudo, o artigo 145 da Lei Marco, que ordena
a suspensão de autoridades elegidas quando apresentada, contra ela, uma acusação
formal, por algum órgão de Justiça, de supostos atos de delito.




Cidob protesta
A Confederação de Povos Indígenas do Oriente Boliviano (Cidob)
iniciou uma marcha no dia 21 de junho, saindo da capital do departamento de
Beni, Trinidad, enquanto a Lei Marco estava em debate no Congresso. A
organização apresentou um documento com 13 reivindicações, entre elas a
regularização de terras, anulação de concessões florestais e mineiras em suas
áreas e autonomia plena. Antes que a marcha chegasse a La Paz, Cidob e governo
assinaram um acordo que contemplava 11 dos 13 pontos, entre eles, um
financiamento de 1,5 milhões de dólares para a regularização de terras e a
revisão de todas as concessões. O acordo suspendeu a marcha, porém o dirigente
da Cidob, Johnny Rojas, afirmou que “os projetos de desenvolvimento são uma
derrota” e que “vão denunciar ao mundo inteiro que não somos atendidos, apesar
de termos um governo indígena”.


De acordo com o ministro de Autonomias, Romero, o único
problema na negociação foi a “chantagem” imposta pela Cidob que reivindicava um
cargo no órgão público Autoridade de Fiscalização e Controle Social de Florestas
e Terras.




Próximos passos
Segundo o diretor do curso de Sociologia da Universidad Mayor
de San Andrés (UMSA), Eduardo Paz, “as leis aprovadas até aqui tratam de
modificar a superestrutura, de maneira a afiançar o atual governo”. Paz destaca
que, após conquistado o poder Executivo, as novas leis vêm para permitir uma
mudança da classe dirigente em outros níveis de poder, especialmente no
Legislativo. Passada a aprovação das cinco leis, o sociólogo acredita que o
governo impulsionará a Assembléia Legislativa Plurinacional a tratar de temas
mais diretamente ligados à vida do povo, como aposentadoria, saúde, educação e
código de trabalho.




Principais novidades das outras quatro leis


Lei de Regime Eleitoral
Regulamenta referendos e eleições, estabelecendo critérios para
aumentar a presença das mulheres e a diversidade étnica em eleições para o
Legislativo e o Judiciário. Define que os mais altos cargos do Órgão Judicial
serão eleitos por voto popular. Promove a democracia interculural, reconhecendo
como legítimos os mecanismos de democracia direta, participativa, representativa
e também comunitária. O texto convida os bolivianos a “reconhecer e respeitar as
distintas formas de deliberação democrática, diferentes critérios de
representação política e os direitos individuais e coletivos da sociedade
intercultural boliviana”. Reconhece o direito a consulta prévia, livre e
informada aos povos indígenas. De maneira inédita na Bolívia, estabelece o
segundo turno nas eleições para cargos do Executivo. Foi criticada por impor
limites às campanhas e às coberturas jornalísticas nas eleições para o Órgão
Judicial e também por estabelecer somente sete circunscrições especiais
indígenas (equivalentes a sete cadeiras no Congresso), uma vez que dentro destas
sete circunscrições existem mais de 30 povos indígenas.


Lei do Órgão Eleitoral Plurinacional (OEP)
Estabelece que o novo órgão terá um Tribunal Supremo Eleitoral,
com sede em La Paz, Tribunais Departamentais em cada um dos departamentos, além
do Serviço de Registro Cívico. O Tribunal Supremo será dirigido por sete
membros, sendo um escolhido pelo presidente e os outros seis pela Assembléia
Legislativa Plurinacional, com pelo menos dois terços dos votos. Dos sete, pelo
menos três terão que ser mulheres e dois de origem indígena originária
camponesa. Os Tribunais Departamentais serão dirigidos por cinco membros, dos
quais pelo menos duas devem ser mulheres e um de origem indígena originária
camponesa.


Lei do Órgão Judicial
Reconhece a Justiça Indígena Originária Camponesa, que goza de
igual hierarquia à Justiça ordinária, porém não define seus limites
jurisdicionais, que serão estabelecidos pela Lei de Deslinde Jurídico. Define
que os magistrados do Tribunal Superior de Justiça (TSJ) e do Tribunal
Agroambiental, além dos conselheiros do Conselho de Magistratura serão eleitos
por sufrágio universal. A Assembléia Legislativa Plurinacional selecionará uma
lista de candidatos inscritos para ir a votação, garantindo a presença de pelo
menos 50% de mulheres e de uma pessoa de origem indígena originária camponesa.
No caso do TSJ, serão eleitos um magistrado titular e um suplente por
departamento. Caso o mais votado seja homem, sua suplente deverá ser a mulher
mais votada. Caso seja mais votada uma mulher, seu suplente será o homem mais
votado.


Lei do Tribunal Constitucional
Encarregado de elucidar os conflitos entre as novas autonomias
e receber ações de inconstitucionalidade. Serão eleitos, por sufrágio universal,
sete magistrados titulares e sete suplentes, sendo que pelo menos um deverá vir
do sistema indígena originário camponês, por auto-identificação. A Assembléia
Legislativa Plurinacional selecionará previamente 28 dos candidatos inscritos,
tendo que garantir 50% de mulheres na lista.

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