Acerto de contas deve chegar ao fim com a palavra da Justiça
Glenda Mezarobba, para o Valor, de São Paulo
21/08/2009
Os saguões dos aeroportos se transformavam em animados salões de festas na recepção dos exilados, como quando da volta de Herbert de Souza (à direita, ao lado de Teotônio dos Santos e Vânia Bambirra)
Prestes a completar três décadas, a lei 6.683 deve ser submetida, em breve, ao mais rigoroso teste desde que entrou em vigor. Praticamente não questionada, ao longo de todos esses anos, em tribunais de primeira instância, ela agora é colocada à prova não apenas em uma, mas em duas (altas) cortes jurídicas: o Supremo Tribunal Federal e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Impensável durante muito tempo, tal confronto legal exprime importantes transformações observadas desde a época da aprovação da lei. Afinal, foi justamente nesse período que a humanidade viu aprimorarem-se, de forma substancial, normas, tratados, instituições e redes de direitos humanos que, junto com os Estados, passaram a constituir uma estrutura internacional voltada à temática e capaz de disseminar a influência de preceitos internacionais de direitos humanos por todo o mundo.
A chegada da anistia a esses dois tribunais também explicita a incompletude do processo de acerto de contas do Estado brasileiro com as vítimas da ditadura militar. Não à toa, na introdução da demanda encaminhada à corte, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos observa que o caso "representa uma oportunidade importante para consolidar a jurisprudência interamericana sobre as leis de anistia em relação aos desaparecimentos forçados e à execução extrajudicial, e a resultante obrigação dos Estados de fazer a sociedade conhecer a verdade, e investigar, processar e sancionar as graves violações de direitos humanos". De forma sintética, para a comissão, o caso possibilita à corte "afirmar a incompatibilidade da Lei de Anistia brasileira com a Convenção, no que se refere a graves violações de direitos humanos".
O caso brasileiro é bastante peculiar. Se são inegáveis as semelhanças entre as ditaduras latino-americanas no contexto da doutrina de "Segurança Nacional", a ponto de países da região terem atuado de forma conjunta na Operação Condor, o processo nacional de acerto de contas guarda características específicas, sobretudo pelo fato de ter principiado com a entrada em vigor da lei 6.683 e, desde então, seguir se desenvolvendo tendo essa legislação como guia.
Ao contrário de democracias como a argentina e a chilena, que sempre viram a anistia como parte integrante de um legado perverso a ser superado, aqui ela não apenas foi reivindicada, mobilizando boa parte da sociedade em torno de sua aprovação, como tramitou no Legislativo, o que se mostraria decisivo para conferir à lei certa legitimidade não observada em suas congêneres e acabaria por contribuir para o aprisionamento do subsequente processo de acerto de contas à lógica imposta pela ditadura, de esquecimento e impunidade (evidenciado, por exemplo, no fato de a comissão de reparações aos perseguidos políticos ter sido designada de "Comissão de Anistia" e na obrigatoriedade de as vítimas, em plena democracia, ingressarem com pedidos de "anistia política", junto ao Estado).
É verdade que, no Brasil, o esforço em prol da anistia esteve sempre associado à luta pela retomada da democracia, pelo reconhecimento e respeito aos direitos humanos, bem como pelo fim da tortura, a libertação dos presos políticos e a elucidação dos casos de desaparecimento. Mas não foi exatamente isso que ocorreu, nem à época da elaboração da lei, nem depois, com o fim do regime militar.
Ainda que de inegável importância para a redemocratização do país e capaz de contribuir para o restabelecimento do estado de direito, como se sabe, a lei foi aprovada exclusivamente nos termos que os militares queriam, mostrando-se mais adequada aos anseios de impunidade dos integrantes do aparato de repressão do que à necessidade de justiça dos perseguidos políticos. Daí a oportunidade, propiciada pela efeméride do próximo dia 28, de se desfazerem construções equivocadas, como, por exemplo, a de que a lei sancionada pelo general Figueiredo seria "ampla, geral e irrestrita".
Ao deixar de fora determinadas manifestações de oposição ao regime, como o que foi classificado como terrorismo, a anistia não pode ser considerada "ampla"; ao excluir alguns enquadrados em atos de exceção, como aqueles que cometeram os chamados "crimes de sangue", também não foi "geral"; e ao restringir os beneficiários em potencial, contemplando apenas os não condenados, tampouco pode ser definida como "irrestrita". Prova disso é que, em 1984, quase duas dezenas de brasileiros ainda cumpriam penas, em liberdade condicional e com direitos políticos suspensos, sendo obrigados a apresentar-se periodicamente à auditoria militar da região em que viviam.
Outro sofisma que não se sustenta, embora repetido à exaustão, é de que seria impossível mexer na Lei de Anistia. Embora não seja imprescindível anulá-la ou revisá-la para que haja justiça às vítimas da ditadura, não apenas é possível modificá-la, como isso já foi feito várias vezes, atestam os artigos 2º, 4º e 5º, revogados no desenvolvimento do processo de acerto de contas, para provável espanto dos que acreditam que retomar esse debate seria revanchismo.
Característico de um discurso extemporâneo, reflexo de uma mentalidade típica da Guerra Fria, o temor da "desforra" não faz sentido quando se sabe, por exemplo, que o que ocorreu no Brasil, a partir do golpe de estado, não foi uma guerra. E que a violência não era natural, tampouco inevitável, sendo a repressão o resultado de uma opção feita pelos militares, interessados que estavam em disseminar o medo e desmobilizar a sociedade.
Assim, é preciso que se diga que, para além do simples exame dos termos da lei 6.683, neste momento a submissão da anistia às cortes representa fato de grande relevância para a história nacional. A partir das decisões dos dois tribunais, e os subsequentes desdobramentos por parte do Estado brasileiro, será possível verificar o grau de adesão do país, e de algumas de suas principais instituições, como o Judiciário e as forças de segurança, ao ideal da democracia.
Quem sabe, finalmente vamos conseguir avançar na implementação de princípios como o da "accountability" legal, em que todos, inclusive o Estado e, especialmente, seus representantes, respondem por seus atos, garantindo que a nenhum grupo de cidadãos será concedido o privilégio da impunidade. E sinalizar, de forma incontestável, que práticas hediondas, como a tortura, não podem - e não serão - mais toleradas.
Glenda Mezarobba é cientista política, pós-doutoranda no IFCH/Unicamp, pesquisadora do Cedec e Ineu e autora do livro "Um Acerto de Contas com o Futuro: A Anistia e Suas Consequências" (Humanitas/Fapesp)
sábado, 22 de agosto de 2009
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