sábado, 15 de agosto de 2009

A concordata é inconstitucional?

Folha de São Paulo de 15 de agosto de 2009

TENDÊNCIAS/DEBATES


O Congresso deve ratificar o acordo assinado entre o governo brasileiro e o Vaticano?
NÃO

Tratado problemático e inconstitucional

LUIZ ANTÔNIO CUNHA

NO MAIOR sigilo, a Santa Sé conseguiu extrair do governo brasileiro uma Concordata. E agora apressa o Congresso Nacional para que referende o tal acordo. E sem discussão.
Em novembro de 2008, quando da assinatura da Concordata, no Vaticano, os cardeais e os diplomatas do Itamaraty foram unânimes: o acordo apenas consolidava a legislação brasileira concernente à Igreja Católica.
Que ficassem tranquilos os crentes das demais religiões, assim como os não crentes, porque nada mudaria.
Pois muda -e muito.
Não dá para acreditar que a Igreja Católica precise de uma Concordata para regulamentar sua atuação. No Brasil, onde ela desfruta de privilégios históricos, que interesses estariam ameaçados? Nenhum. Por quem? Por ninguém.
O que a Igreja Católica teme é o rápido aumento do número de evangélicos, de agnósticos e de ateus, correlativo à redução do número de católicos. Tentar reverter esse quadro é um direito de seus dirigentes, mas não instrumentalizando o Estado como na época do império, quando era religião oficial.
Dos 20 artigos da Concordata, 3 tratam de temas especificamente educacionais. Aliás, a Igreja Católica é a única instituição que sempre fechou questão em torno do ensino religioso nas escolas públicas.
Dentre outras religiões e denominações cristãs, as igrejas evangélicas foram tradicionalmente contra a inclusão dessa disciplina nos currículos dos sistemas públicos de ensino. As igrejas pentecostais, mais recentes, não fecharam questão sobre isso -umas são manifestamente contra, outras se dividem.
O conteúdo do artigo 11 do acordo remete a algo que a cúpula da Igreja Católica já teve e quer de volta: reserva de mercado no ensino público. Ela pretende manter uma disciplina no currículo das escolas públicas, contra o que existe, há muito, um amplo movimento, que se fortalece em diferentes setores e pelas manifestações de personalidades históricas do calibre de Rui Barbosa e Anísio Teixeira.
Aliás, o ensino religioso nas escolas públicas é a única disciplina do currículo escolar mencionada pela Constituição. O simples fato de ela constar da Carta Magna já denota a existência de uma força contra a qual esse dispositivo foi inserido -a laicidade prevalecente no âmbito do professorado e da população em geral, religiosa ou não. Laicidade que só quer pôr cada coisa em seu lugar, ensino na escola, e educação religiosa na família e na comunidade de culto.
A Concordata afronta, essencialmente, o artigo 33 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Ele determina que o conteúdo da disciplina ensino religioso seja estabelecido pelos sistemas de ensino (especificamente pelos respectivos conselhos de educação), depois de ouvidas entidades civis constituídas pelas diversas confissões religiosas.
Assim, pode não haver "ensino religioso católico", como estipula a Concordata, nem de nenhuma confissão específica.
Se esse conteúdo será de caráter histórico, sociológico, antropológico ou uma mescla das doutrinas religiosas conveniadas etc., isso dependerá das decisões de tais entidades civis.
A Concordata obriga o Estado brasileiro a tomar partido numa luta que divide o campo religioso: o ensino deve ser confessional ou interconfessional? Ora, um Estado laico não pode se envolver num problema desse tipo, que só diz respeito ao campo religioso -portanto, privado.
Por isso, a Constituição Federal foi lacônica ao tratar o tema. Ela não conseguiu evitá-lo, dadas as pressões do momento, mas garantiu um mínimo de liberdade curricular, determinando que o ensino religioso nas escolas públicas fosse facultativo para os alunos.
Tudo somado, o Congresso tem três boas razões para rejeitar a Concordata: ela é inconstitucional, porque feita com uma instituição religiosa, o que é vedado; ela é desnecessária para a livre prática do culto católico romano; e ela cria problemas com os crentes e os não crentes justamente onde há entendimento e tolerância.

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