domingo, 25 de novembro de 2007

O caso Grootboom e o controle judicial "intermediário"

Como tive oportunidade de ressaltar no comentário ao último post, uma das questões subjacentes (assim entendo) à idéia de controle judicial "fraco" ou "forte" é a constitucionalização dos direitos sociais. Por certo, poucos acadêmicos norte-americanos teriam coragem de levantar a idéia de "não-justiciablidade" da 1ª Emenda, algo próximo de uma religião para os constitucionalistas daque país. Quanto aos direitos sociais, porém, tanto conservadores quanto progressistas têm receio em entregar à Suprema Corte a tarefa de definir a extensão dos deveres do Estado na prestação dessas garantias.

Para enriquecer essse debate, trago à discussão a jurisprudência da Corte Sul-Africana, e em especial o caso Grootboom, altamente elogiado por Sustein como uma forma intermediária de judicialização das políticas públicas.

Algumas semelhanças ligam o Brasil à África do Sul. Assim como o nosso país, aquela república africana possui uma Constituição recentemente estabelecida (sua nova Constituição é de 1996), baseada no princípio democrático e na dignidade humana, e com supremacia sobre o ordenamento jurídico. A Constituição sul-africana possui um catálogo de direitos (Bill of Rights) que inclui não somente as clássicas liberdades civis e políticas, mas também direitos econômicos, sociais e culturais, que podem ser aplicados diretamente pelo Judiciário. É importante observar que, ao enumerar esses direitos sociais, a Constituição sul-africana os associa à reserva do possível, afirmando que o Estado deve tomar “razoáveis” medidas legislativas e outras medidas que promovam a “progressiva realização” desses direitos, “na medida dos recursos disponíveis”.

Além da semelhança entre as propostas constitucionais, Brasil e África do Sul compartilham uma realidade social nada invejável, marcada pela profunda desigualdade. A África do Sul, após anos sob o regime do apartheid, encontrava-se com enorme contingente populacional na linha da pobreza ou abaixo desta. Mesmo após anos do término do regime discriminatório e da implementação da nova e progressista Constituição, a África do Sul continuava entre as nações com maior desigualdade social do mundo, e o motivo era bem simples: o Estado simplesmente não tinha recursos para atender a todas as necessidades da população.

Nesse contexto, englobando, de um lado, a existência de uma Constituição consagradora de direitos prestacionais dotados de justiciabilidade, e, de outro, uma extensa parcela da população ainda padecendo das mazelas da pobreza, não seria estranho que alguns casos chegassem à Corte Constitucional daquele país. Desses, um dos que tem sido destacados como paradigma da intervenção estatal nas políticas públicas é o caso Government of Republic of South Africa and others v Grootboom and others, que já encontra razoável repercussão na doutrina jurídica.

A questão básica em Grootboom era o direito a uma residência adequada, previsto no art. 26 da Constituição sul-africana. A senhora Grootboom e outros autores moravam em acampamentos informais em uma região sujeita a alagamentos. Muitos deles se candidataram a programas governamentais de habitação popular, mas esperavam na lista há algum tempo e não tinham previsão de disponibilidade de residências. Com a proximidade da estação das chuvas, mudaram-se para um terreno com maior drenagem que, todavia, pertencia a um particular. Despejados judicialmente, tentaram voltar para o antigo acampamento, mas este já se encontrava ocupado por outras pessoas. Moveram, então, uma ação perante a High Court sul-africana, a qual não entendeu haver violação do art. 26 da Constituição, mas sim violação do art. 28, que confere às crianças o direito a um abrigo, dentre outros. Dessa forma, a High Court determinou o imediato atendimento da pretensão dos autores, determinando ao governo prover refúgio às famílias com crianças, fixando ainda condições mínimas como a existência de sanitários e fornecimento regular de água.

O governo recorreu então à Corte Constitucional, alegando questões ligadas à reserva do possível, firmando-se no precedente estabelecido no caso Sobramoney. O ponto central em Grootboom era estabelecer o alcance das “medidas razoáveis” impostas pela Constituição. A Corte fixou que a razoabilidade constitucional requeria que um programa implementado para a realização de direitos socioeconômicos deveria ser abrangente, coerente, equilibrado e flexível, insistindo que um programa que exclui parcela relevante da sociedade não poderia ser assim considerado. Dessa forma, o programa governamental de habitação não poderia ser considerado válido na medida em que falhou ao prover as necessidades de pessoas em imediata e desesperada necessidade, devendo ser modificado para atender a essas pessoas, mesmo em prejuízo de objetivos de longo prazo ou da construção de residências permanentes. A Corte, então, determinou que parcela razoável do orçamento para moradia fosse alocada para atender aquela situação emergencial, não aceitando, porém, a solução adotada pela High Court.

Em Grootboom, a Corte Constitucional não rejeitou completamente o programa governamental de habitação, chegando a afirmar que a quantidade de recursos a ele destinada era substancial. O problema, como já destacamos, é que ele falhava quanto à demanda das pessoas urgentemente necessitadas. Mas para resolver esse problema, a Corte evitou determinar quais prestações eram devidas e como deveriam ser fornecidas, preferindo apenas intervir através da realocação de recursos no orçamento da habitação, deixando, todavia, que a implementação específica ficasse a cargo das autoridades administrativas, a quem em primeira instância incumbe tratar dessas questões.

Outro ponto interessante é que, para a fiscalização do cumprimento da decisão, a Corte nomeou um órgão independente, no caso a Comissão de Direitos Humanos. Como medidas de implementação de direitos prestacionais não se esgotam em único ato, exigindo uma contínua relação do Judiciário com a instituição controlada, essa estratégia da Corte Constitucional sul-africana parece uma boa opção para evitar a personificação do processo e a perda da imparcialidade judicial, observadas por Owen Fiss na experiência com a structural injunction norte-americana.

Como Sunstein ressalta, a Corte em Grootboom teve o mérito de trilhar um caminho intermediário entre as duas posições diametralmente opostas, que normalmente são apresentadas para a solução de casos envolvendo direitos socioeconômicos: ou bem esses direitos são colocados como não justiciáveis; ou bem eles são vistos como fonte de dever absoluto para o Estado, para assegurar proteção a todos aqueles que necessitam dessas prestações. Em Grootboom, a Corte impôs o direito constitucional à habitação ao governo não de forma a garantir que todos recebam abrigo, mas determinando que sejam alocados mais recursos do que ordinariamente seriam destinados ao problema da insuficiência de residências para os pobres, notadamente exigindo a manutenção de um plano para atender pessoas em situação de emergência.

Certas críticas foram dirigidas à decisão em Grootboom, notadamente quanto ao não reconhecimento de um núcleo básico dos direitos sociais constitucionais, exigível de forma direta e individual, mas, como disse Sunstein, a solução adotada pela Corte Constitucional sul-africana permitiu a possibilidade de prover proteção judicial a certas prestações sociais ligadas ao mínimo existencial em um modo que respeita as prerrogativas democráticas e o fato de existirem limitações orçamentárias. Em Grootboom, garantiu-se respeito às prioridades constitucionais e especial atenção a necessidades particulares sem menosprezar os julgamentos democráticos sobre como definir essas prioridades. Enfim, ao exigir o estabelecimento de programas razoáveis, com cuidadosa atenção às limitações orçamentárias, a Corte assentou a possibilidade de prestações estatais serem justiciáveis sem que se menospreze a reserva do possível.

2 comentários:

Farlei Martins Riccio disse...

Complementando a pertinente análise comparativa realizada pelo colega Alceu Maurício sobre as políticas públicas, gostaria de fazer alguns comentários sobre o tema.

Não há dúvida de que no Estado Democrático de Direito as políticas públicas são indispensáveis para a garantia e promoção dos direitos fundamentais, especialmente os direitos sociais. Mas o fato é que toda e qualquer política pública envolve gasto de dinheiro público, e os recursos públicos são limitados. A principal limitação que se impõe no tocante à definição de políticas públicas tem sido a alegação da reserva do possível, teoria surgida na Alemanha e amplamente utilizada nos países europeus, segundo a qual, a prestação reclamada pelo administrado deve corresponder ao que o indivíduo pode, razoavelmente, exigir da sociedade, de modo que, ainda que o Estado disponha de recursos e poder de disposição, não há obrigatoriedade de prestar algo que sobressai aos limites do razoável. (consulte-se, por todos, KRELL, Andréas. Direitos Sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional comparado. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2002).

Será preciso então priorizar e escolher onde o dinheiro público disponível será investido. Além da definição genérica em que gastar, é preciso ainda decidir como gastar, tendo em conta os objetivos específicos que se deseja alcançar.

Essas decisões configuram o que CASS SUNSTEIN e STEPHEN HOLMES (The Cost of Rights. Cambridge: Harvad University Press, 1999) denominam de escolhas trágicas, uma vez que a escassez de recursos econômicos e financeiros públicos impedem a realização de todos os objetivos sociais, de tal sorte que a realização de alguns desses relevantes objetivos impõe necessária e inevitavelmente o sacrifício de outros, igualmente importantes.

Ainda segundo os mesmos autores, o óbice da exaustão orçamentária para realização dos direitos sociais presta-se unicamente a encobrir as trágicas escolhas que deixaram de fora do universo do possível a tutela de um determinado direito, já que os recursos públicos são captados em caráter permanente – a captação nunca cessa, de forma que, a rigor, nunca são completamente exauridos. Assim sendo, nada obstaria a que um outro orçamento posterior assumisse a despesa em questão.

Porém, na realidade brasileira, não é incomum que uma parte considerável dessas escolhas deixe de atender às verdadeiras necessidades da população, ou, ainda, que as atenda de forma incompleta, precária e equivocada. Mas não é só, há ocasiões em que a Administração acaba por realizar ações que não seguem os princípios da eficiência e moralidade, como as previsões orçamentárias superestimadas ou subestimadas, patrocinando verdadeiros cemitérios de obras inacabadas, ou, ainda, preferem aplicar os recursos em iniciativas que “aparecem”, como obras físicas, deixando de cumprir com as obrigações determinadas na Constituição. (consulte-se DAL BOSCO, Maria Goretti. Discricionariedade em Políticas Públicas, Curitiba: Juruá, 2007)

A doutrina publicista brasileira tem produzido um profundo debate sobre o controle judicial das políticas publicas (consulte-se, por todos, BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das Políticas Públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. Revista de Direito do Estado, ano 1, n. 3, jul/set, 2006; e COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 35, n. 138, abr/jun, 1998).

Parece-me que a melhor posição doutrinária sobre o tema é a aquela apresentada por MARCOS JURUENA VILLELA SOUTO que desenvolve o argumento de um controle na execução das políticas públicas pelo planejamento econômico da atividade, demonstrando a legitimidade das escolhas, por meio de uma conciliação entre o sistema eleitoral, o sistema econômico e o sistema financeiro. (Neoconstitucionalismo e Controle de políticas públicas. Direito Administrativo em Debate - 2a Série. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007)

Para o autor, a idéia de planejamento impõe a racionalização das escolhas públicas, em função das possibilidades, dos custos e da sustentabilidade, a longo prazo, de opções do Estado, que ultrapassam a noção de opção de governo e decisões judiciais varejistas. Por outro lado, dado que o conceito de eficiência econômica (alocativa e produtiva) se revela insuficiente para a fixação de eficiência administrativa, o autor propõe que se deva trabalhar com a noção de eficiência pela subsidiariedade, de modo a se definir precisamente a partilha de competências entre o Estado e a sociedade. Dessa forma, impede-se que o Estado atue ineficientemente onde a sociedade já consegue prover os bens e serviços adequadamente.

Por fim, cabe recordar que na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o controle judicial das políticas públicas é admitido, excepcionalmente, desde que: (i) se trata de políticas definidas no texto constitucional, posto ser tal definição vinculante da ação estatal e limitadora da discricionariedade administrativa; (b) o Estado se omita, total ou parcialmente, no exercício de seus deveres jurídico-sociais de prestações positivas, com vistas à implementação dessas políticas; (c) eventuais carências financeiras ou orçamentárias não escusem a omissão, salvo se comprovado o esgotamento dos meios disponíveis e/ou mobilizáveis para o atendimento às prioridades decorrentes das políticas constitucionais. (consulte-se os seguintes acórdãos: RE 410715-5-SP, RE 410715-5-SP, SS 3205-AM, ADPF 45-DF. )

Parece inegável que o controle das políticas públicas pelo Poder Judiciário é permitido, devendo a meu ver ser até mesmo facilitado o acesso à jurisdição a órgãos coletivos intermédios da sociedade, como garantia de legitimidade do poder político, da democracia e do mínimo existencial de direitos sociais aos cidadãos. A noção de mínimo existencial é proposta por parte da doutrina como solução para o problema dos custos envolvidos na realização dos direitos sociais. Um contraponto, portanto, à teoria da reserva do possível. (sobre o tema consulte-se, por todos, BARCELLOS, Ana Paula de. O mínimo existencial e algumas fundamentações: John Rawls, Michael Walzer e Robert Alexy. In TORRES, Ricardo Lobo (org.). Legitimação dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2007).

Todavia, penso que o Poder Judiciário não pode descurar no exame das políticas públicas, de uma ponderação razoável e proporcional do impacto de suas decisões sobre os orçamentos públicos, sob pena de transformar o governo do povo em governo de “juízes”.

George Marmelstein disse...

Inicialmente, gostaria de parabenizar pela iniciativa do blog. Está na hora mesmo de os juristas aproveitarem essa nova ferramenta de democratização do conhecimento.
Quanto ao tema em questão, sugiro a leitura do seguinte texto:
http://georgemlima.blogspot.com/2008/04/direitos-econmicos-sociais-e-culturais.html
que faz parte de um capítulo da minha dissertação de mestrado onde falei sobre a "efetivação judicial dos direitos econômicos, sociais e culturais" (2005).
No blog: georgemlima.blogspot.com, disponibilizo a dissertação na íntegra.
Obrigado,
George Marmelstein
juiz federal e professor de direito constitucional