terça-feira, 6 de novembro de 2007

Os penduricalhos do Supremo Tribunal Federal

O então Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Velloso sempre afirmava que o Supremo Tribunal Federal deveria abrir mão de seus "penduricalhos". Esta afirmativa é importante para refletirmos sobre as ponderações do Prof Oscar Vilhena Vieira no texto publicado no jornal O Valor de 06 de novembro de 2007. As possíveis distorções notadas na "Supremocracia" decorrem do próprio "lobby" exercido pelo STF durante a Constituinte de 87 e 88 de não querer perder espaço institucional ao ficar apenas com a atribuição de Justiça Constitucional
Supremocracia: vícios e virtudes republicanas
Por Oscar V. Vieira
06/11/2007

Difícil pensar um tema relevante em nossa vida política que não venha a
exigir, mais dia menos dia, a intervenção do STF: troca-troca de
partidos, cláusula de barreira partidária, julgamento de altas
autoridades (vide Collor e mensalão), limites de atuação das CPIs, do
Ministério Público e do Conselho Nacional de Justiça, sessões secretas
do Senado, direito de greve dos servidores públicos, guerra fiscal,
aposentadorias de governadores, reforma administrativa, previdenciária
e do próprio Judiciário, pesquisa com células-tronco, quotas nas
universidades, desarmamento, distribuição de medicamentos, aborto,
direito adquirido - sem falar em milhares de habeas corpus, como o
concedido para Salvatore Cacciola. Tudo parece exigir uma última
palavra do STF. Se por um lado isto demonstra a grande fortaleza desta
instituição, por outro é sintoma de uma forte crise, para não dizer
degradação, de nosso sistema democrático, que hoje depende deste novo
"Poder Moderador" para funcionar.
Múltiplas são as razões para esta proeminência do STF em nosso
sistema político. A primeira delas decorre da própria ambição da
Constituição de 1988 que, corretamente desconfiada do legislador, sobre
tudo legislou. O efeito colateral do compromisso maximizador assumido
pelo texto de 1988, no entanto, foi a criação de uma enorme esfera de
tensão constitucional. A equação é simples: se tudo é matéria
constitucional, o campo de liberdade dado ao corpo político é muito
pequeno. Assim, qualquer movimento mais brusco gera um incidente de
inconstitucionalidade e, conseqüentemente, a judicialização de uma
contenda política.
A segunda razão está ligada à própria arquitetura do STF. A
Constituição de 1988 conferiu ao STF amplos poderes de guardião
constitucional. Ao Tribunal foram atribuídas funções que na maioria das
democracias contemporâneas estão divididas em pelo menos três tipos de
instituições: tribunais constitucionais, foros judiciais especializados
e cortes de última instância.
Na condição de tribunal constitucional, o STF tem por obrigação julgar
ações diretas voltadas a verificar a constitucionalidade de leis e atos
normativos produzidos pela esfera federal e estadual, assim como
apreciar a omissão dos poderes Legislativo e Executivo na implementação
de programas ou diretrizes constitucionais. Dada a total falta de
cerimônia de nossos políticos em agredir a Constituição, o STF tem sido
obrigado a declarar inconstitucionais cerca de três quartos de todas
leis a ele submetidas. Mais recentemente tem substituído o legislador
omisso, criando novas regras para o nosso sistema político. Isto
demonstra a enorme fragilidade das instituições de representação
política, o que certamente não é um bom sinal.
No exercício da função de foro especializado, o Tribunal foi
colocado em uma delicada posição. Em primeiro lugar cumpre-lhe julgar
criminalmente altas autoridades. Em função da elevada taxa de
criminalidade no escalão superior de nossa triste República, o Supremo
passou a agir como juízo de primeira instância, como vimos no caso da
recém-aceitação da denúncia contra os mensaleiros. Só para ter uma
dimensão do problema, há mais de 250 denúncias contra políticos
aguardando manifestação do Supremo. O Tribunal não está equipado para
isto e mesmo que estivesse, seu escasso tempo seria consumido em
intermináveis instruções criminais, desviando-o de suas
responsabilidades essenciais. A segunda pedra no caminho do STF é ter
que apreciar, às vezes em caráter imediato, como ocorreu no caso Renan
Calheiros, atos secundários do parlamento. Desconheço qualquer outro
tribunal supremo do mundo que faça plantão judiciário para solucionar
quizílias que os parlamentares não são capazes de resolver por si
mesmos, de maneira racional e compatível com a Constituição.
Por fim, o STF serve como última instância judicial, revisando
centenas de milhares de casos resolvidos pelos tribunais inferiores,
todos os anos. De 1988 para cá, foram mais de um milhão de recursos
extraordinários e agravos de instrumento apreciados por 11 juízes, isto
sem falar nos milhares de habeas corpus, pedidos de extradição e outros
processos que chegam ao protocolo do Tribunal todos os dias. Além de
desumano com os ministros, é absolutamente irracional fazer com que
milhões de jurisdicionados fiquem aguardando uma decisão do Tribunal,
enquanto seus devedores se beneficiam da demora na solução destes
casos. Desnecessário dizer que o maior beneficiário deste sistema
irracional é o próprio Estado brasileiro. Neste sentido, a argüição de
repercussão geral e a própria súmula vinculante, se bem empregadas,
podem contribuir para desanuviar o Tribunal.
A questão fundamental é saber até quando o STF poderá suportar esta
enorme pressão decorrente da incapacidade de nosso sistema político de
deliberar dentro de parâmetros legais e racionais. Como a função de
interpretar a Constituição é em grande medida política, dada as
ambigüidades e a alta carga de valores morais abrigada pelo texto
constitucional, corre-se o risco de um processo de fadiga, que leve ao
esgarçamento da preciosa autoridade do STF. Não há aqui nenhuma
sugestão de que o Supremo deva abster-se num momento como este. Antes o
contrário: é momento de resistir. Mas certamente deve o Tribunal ser
desonerado, no futuro, de inúmeras funções que podem ser absorvidas por
outras instâncias judiciais. O fim do foro privilegiado, a
transferência de competências recursais, a eliminação do varejo de
liminares e habeas corpus, entre outras medidas, poderiam contribuir
para preservar a autoridade do STF. É uma ilusão achar que as virtudes
do STF possam suprir ilimitadamente os vícios da participação política.
Ainda que isto fosse possível, seria desejável?
Oscar Vilhena Vieira, professor de Direito Constitucional da Escola
de Direito da Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, onde coordena o
Programa de Pós- Graduação em Direito e Desenvolvimento; diretor
jurídico da organização Conectas Direitos Humanos; mestre em direito
pela Universidade de Columbia, Nova York, e doutor em Ciência Política
pela Universidade de São Paulo; autor de "Direitos Fundamentais: uma da
jurisprudência do STF", Malheiros editores, 2006.

Um comentário:

Daniel Ferreira disse...

O STF só deveria atuar em questões de relevância assim como a Suprema Corte Americana. A emergência da democracia que nos levou a isso. Acredito que nesse momento de crise a melhor solução mesmo é jogar para o STF, afinal melhor ter as questões decididas do que deixar a mercê de um legislativo inatuante.