Entrevista com José Eduardo Faria
Revista Getúlio
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Professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, e professor visitante do Curso de Especialização GVlaw, José Eduardo Campos de Oliveira Faria construiu reconhecida reputação como jornalista, jurista e pesquisador. Com dois prêmios Esso de Jornalismo, é dono de uma escrita precisa e elegante. Premiado como melhor orientador de doutorado em Ciências Humanas (1992), integra o conselho editorial de revistas como a do International Institute for the Sociology of Law, a Revista Direito GV, a portuguesa Economia e Sociologia, de Évora, além desta Getulio, entre muitas outras. Tem trabalhado com áreas como mudança social, poder e legitimidade, direitos humanos, globalização, transformações do poder judiciário, metodologia do ensino jurídico, direitos sociais e eficácia jurídica. Autor de mais de duas dezenas de livros – dentre os quais A Crise do Direito numa Sociedade em Mudança,O Direito na Economia Globalizada e Qual o Futuro dos Direitos? (este em parceria com Rolf Kuntz), foi professor visitante das universidades de Brasília, Andaluzia e Lecce, na Itália. Para falar sobre economia e direito em tempos de globalização, ele recebeu a reportagem de Getulio para a conversa que se segue.
O senhor acredita que haja um uso ideológico da palavra "globalização"?
José Eduardo Faria Há trinta anos, não se usava essa palavra, globalização. A expressão para designar o fenômeno de integração de mercados era "mondialização", e vinha da influência da literatura francesa, em matéria de historiografia. Depois do processo de desregulamentação da economia durante a gestão de Margaret Thatcher na Inglaterra e Ronald Reagan nos Estados Unidos, se iniciou o uso massivo do termo e uma espécie de naturalização da idéia de que esse fenômeno é inexorável, ou seja, não dá lugar para alternativas. A utilização ideológica dessa palavra impediu o cidadão comum de perceber que a globalização é problema e não destino. Ela não é necessariamente inexorável e também não é um destino indolor, pelo contrário, trouxe problemas e desafios nos mais variados setores econômicos, sociais, políticos e culturais ao longo desses trinta anos. Vejo a globalização como um processo multidimensional, multicausal e multiescalar. Ou seja, ele possui várias facetas, é fruto de diferentes fatores e se dá em várias escalas. Historicamente, é um processo antigo, que pode também ser visto a partir de uma idéia de destruição criadora, que vai se caracterizando por fases cada vez mais curtas. Se por um lado a globalização é um fenômeno antigo, por outro lado o que tem de novo é a velocidade, a intensidade e seu lado de exclusão. É um fenômeno extremamente veloz, avassalador e altamente excludente, do ponto de vista social.
Nos anos 50 houve uma visão otimista do futuro: as previsões davam conta de que as pessoas iriam trabalhar menos e, com a robotização, sobraria muito tempo para o lazer. A crueza da globalização jogou por terra o bem-estar que se previa?
Mudou tudo, porque o avanço da globalização nos levou a perder a inocência. Havia a idéia de que se poderia obter, com a pacificação do mundo e o enquadramento das divergências, um crescimento bastante significativo, capaz de gerar inclusão econômica e bem-estar social. Até os anos 60 do século passado houve, digamos, uma excessiva fé nas virtualidades de políticas keynesianas de crescimento, uma crença enraizada no senso comum de que elas conduziriam a uma sociedade afluente e a um Estado capaz de distribuir renda, proteger os mais fracos e produzir justiça social. Essa visão entrou em crise nos anos 70, a partir dos choques de petróleo, da estagnação do capitalismo do pós-guerra e do colapso do sistema relativo de preços, já que o barril pulou de 1,5 dólar, em 1972, para cerca de 36 dólares em 1979. Ou seja, o modelo de crescimento do capitalismo do pós-guerra, no século XX, esgotou-se nos anos 70 a 80.
Que reflexos traz esse esgotamento?
A partir daí, há uma tentativa do capitalismo de reduzir sua dependência do óleo, descobrir novas fontes de energia, desenvolver novas matérias-primas, baratear os custos de produção e tentar, a qualquer preço, recuperar margens de lucratividade. Isso levou a iniciativa privada a se aproximar da universidade, e naquele momento, houve uma espécie de pacto mefistofélico, ou seja, um processo de mercantilização da universidade e de instrumentalização da pesquisa acadêmica voltada para o mercado, com crescentes parcerias entre iniciativa privada e centros de pesquisa. A partir dos anos 90, o capitalismo retoma certa linha de crescimento, mas dentro de padrões bastante voltados à competitividade e à eficiência. Como conseqüência, ocorre um crescente acirramento das disputas comerciais no mundo inteiro. Como as empresas que sobrevivem são as que conseguem ganhar escala, houve um processo de concentração empresarial e, posteriormente, de deslocamento da decisão econômica do setor industrial para o setor financeiro, além da multiplicação dos mais variados tipos de riscos, desde os tradicionais riscos de crédito até os ecológicos, e dos problemas de sucateamento tecnológico precoce.
E houve a chegada da informática.
Sim, a partir dos anos 90, o desenvolvimento da informática muda o horizonte de tempo no âmbito da economia, tornando-o instantâneo, por meio da comunicação on line. É uma aceleração que alimenta e é alimentada pela lógica do sistema financeiro: o máximo de lucro possível no menor prazo de tempo, com o máximo de segurança e o menor risco. O ciclo de rotação do capital aumenta significativamente de ritmo, gerando conseqüências que afetam o Judiciário, o Estado de Direito e a democracia, e que relativizam alguns princípios que herdamos das revoluções burguesas dos séculos XVIII e XIX, como a idéia de Estado Nação, soberania e democracia representativa. Isso causa problemas estruturais complicados. O primeiro deles é o fato de que a decisão econômica é cada vez mais rápida, enquanto a decisão do Judiciário é, por sua própria natureza, mais lenta. A característica do Judiciário é a via do direito de defesa, do contencioso, do duplo grau de jurisdição, do garantismo processual. É um tempo diferido, de etapas bem definidas e sucessivas, portanto, um tempo incompatível com o tempo da economia.
E diferente da lógica de mercado.
A lógica de tempo da economia é a da rapidez, do aqui agora. Há um descasamento com o controle da economia pelas instituições jurídicas e políticas, agravado pela crescente natureza transterritorial da economia globalizada. Por um lado ocorre uma internacionalização e uma desterritorialização da decisão econômica, mas por outro lado a idéia de democracia representativa está presa à noção de um espaço, ou seja, a validade do processo político se dá dentro dos limites de um território. Com a transterritorialização e a internacionalização da decisão econômica, passa a haver dificuldade para controlar democrática e politicamente essas decisões econômicas.
Ocorre também a desnacionalização das empresas, que passam a não ter sede?
O problema não é a questão da sede, mas de perceber que esse processo de transnacionalização e integração de mercado, ou seja, de globalização, permite às empresas operar com um alcance maior. Daí o advento da empresa global. Trata-se de uma geração à frente, para o bem e para o mal, da multinacional, que por sua vez já era uma etapa à frente da velha empresa internacional. A fidelidade da empresa global é com o acionista, com o objetivo de oferecer a ele dividendos cada vez maiores. Ela não tem pátria, e o fato de sua sede estar aqui ou ali não quer dizer fidelidade a esse ou aquele país. Ocorre uma brutal concentração do poder empresarial de um modo geral e do poder financeiro de modo particular. Das cem maiores economias do mundo, hoje, 21 não são países, são conglomerados mundiais. Isso muda as relações políticas, traz desafios e, acima de tudo, a dificuldade de reconstruir as instituições a partir de valores que não serão necessariamente valores dos acionistas. É preciso redimensionar o trabalho político para manter as preocupações com a inclusão social, a solidariedade e a justiça distributiva.
A própria política tradicional perdeu patamar, não é?
Nesse panorama sim, se começa a perceber o enfraquecimento de sindicatos e partidos políticos. Isso não anuncia a morte da política, pois ela se reabre do ponto de vista de outras práticas que ainda engatinham, mas vão mostrando rumos a partir de movimentos transnacionais, por ONGs, por grupos de pressão e por uma crescente presença desses organismos, num primeiro momento em termos de confronto, mas num segundo momento sendo aceitas como interlocutores ou observadores em encontros internacionais. São movimentos importantes, com capacidade de se articular via internet, que criam uma série de situações e buscam ser aceitas como interlocutores. Então o desafio é reconstruir as instituições políticas a partir de um outro patamar.
Esse patamar seria um Estado acima de todos os países?
Não, não haverá uma caminhada rumo a uma linha de transposição dos estados nacionais para o plano internacional. Sou cético quanto à possibilidade de um Estado mundial, um Judiciário mundial, um Legislativo mundial. Essa projeção é flagrantemente inviável. A integração de mercados é, acima de tudo, assimétrica. Há uma distribuição desigual do poder econômico. E também há o custo o custo social decorrente dessa assimetria, expresso, por exemplo, pela exclusão da África e de parte da América Latina na economia globalizada. Quando lemos nos jornais da Espanha sobre a chegada dos toscos barcos de imigrantes – as chamadas "pateras" – vindos da África, ou o episódio da revolta dos jovens franceses de origem argelina, ou o que acontece com os turcos na Alemanha ou com cabo-verdianos em Portugal, percebemos que, a médio prazo, temos uma bomba de efeito retardado. Xenofobia, fascismo e radicalismos religiosos são três facetas dessa granada.
A globalização trouxe a imposição da rentabilidade, o que supõe tanto a mão-de-obra explorada em países autoritários quanto o desemprego para baixar custo. No caso de uma montadora, reduzir custos pode significar 8 mil empregados na rua.
Por trás do processo de demissão há uma série de questões. Na medida em que a flexibilização da produção traz a possibilidade de trocar as fábricas de cidades, países ou continentes com muita facilidade, os grandes conglomerados, na busca de vantagens comparativas, se deixam explorar docemente pelo dumping social dos países autoritários, principalmente os asiáticos, mas também os do Leste Europeu. As empresas pressionam cada vez mais no sentido de impor sua vontade, e no caso de ela ser recusada ameaçam deslocar a fábrica para outra área, deixando verdadeiros cemitérios industriais e reabrindo esses empregos em outros países, nem sempre com qualidade do ponto de vista das relações trabalhistas. O salário industrial por hora na Lituânia é de 1,4 euro; 2 euros na Hungria, 3 euros na República Tcheca. Na Alemanha, é de 27 euros por hora, na França de 20,7 euros e na Inglaterra de 20 euros. Então, ocorre um processo maciço de deslocamento desses empregos da Europa Ocidental, com tradição democrática de conquistas de direitos, para países necessitados de investimentos industriais, com bom nível de escolaridade e salários baixos. Quanto maior é o dumping social, mais intensas são as pressões pela revogação de direitos conquistados democraticamente. Quando se fala em desregulamentação e abertura comercial também se fala de desconstitucionalização e deslegalização de direitos.
Como fica a China nessa tabela?
Ela é o caso mais impressionante. Há cerca de seis anos a Fundação Abrinq realizou uma pesquisa sobre a média do custo-hora de mão-de-obra na área de brinquedos. Na época, um operário brasileiro ganhava 8,26 dólares, contra 32 centavos na China. Um mecânico ganhava 7,52 dólares contra 66 centavos na China; e um engenheiro, 18 dólares contra 85 centavos, na China. De lá para cá pode ter havido uma variação de câmbio, mas a distância dos valores em termos absolutos continua alta. Mas esse dado não é tão impressionante quanto os que se referem à carga efetiva mensal trabalhada nos dois países. No Brasil, o número gira em torno de 153 horas mensais. Na China, o operário trabalha 218 horas, o mecânico 212 e o engenheiro 207 horas. Então além da diferença do custo médio para a empresa em termos salariais mais encargos, há ainda a questão do trabalho efetivo. Isso mostra claramente que no Brasil existe democracia, Estado de Direito e Constituição, e que essas três coisas representam, do ponto de vista do preço final do bem e do serviço, uma elevação de custo que a ditadura asiática não repassa. É curioso verificar como os estudantes de direito têm tido dificuldade de perceber isso.
Ou seja, na globalização, a democracia representa custo.
Sim, e, portanto, um produto de um país asiático que não respeita as garantias fundamentais, as liberdades públicas e os direitos sociais acaba tendo vantagem comparativa. Isso gera problemas para regimes como o do Brasil, democracias em consolidação, com constituições razoavelmente generosas ou ao menos preocupadas com o reconhecimento de direitos elementares. Porque essa situação global dá às empresas flexibilidade para barganhar concessões e vantagens sob pena de transferir suas fábricas ou para o Leste Europeu ou para a Ásia. Isso fragiliza algumas democracias, que tentam manter os direitos democraticamente constituídos, ao mesmo tempo em que precisam lidar com o fato da menor eficiência e maior custo do que as ditaduras asiáticas.
Como o senhor analisa as últimas demissões na Volks de São Bernardo?
Na questão da fábrica da Volkswagen em São Bernardo, há o problema do real excessivamente valorizado com relação ao dólar e de sucateamento tecnológico tanto de produtos quanto da própria planta industrial. Os dados mostram que de 1997 a 2000 houve um corte de pessoal em torno de 36%. No entanto, a produtividade cresceu significativamente com o aumento da robotização, ou seja, à custa da substituição do trabalho pelo robô. É um processo que leva a uma rodada de negociação muito dura para o Sindicato dos Metalúrgicos. Há uns oito ou dez anos, quando o presidente do sindicato era o atual ministro do Trabalho, Luiz Marinho, acompanhei pelo menos uma negociação. Na época, a resistência foi mais local, dos metalúrgicos do ABC com apoio da CUT. Nos últimos anos, houve uma internacionalização da atividade sindical. Marinho e outros líderes sindicais passaram a viajar para Wolfsburg, para conversar com a cúpula do grupo e articular apoio sindical internacional. Em alguns momentos, a Volkswagen chegou a suspender parte das demissões e aceitou retomar uma nova rodada de negociações. Reabrir as negociações é uma vitória sindical que se dá no contexto de uma luta transnacionalizada por parte dos sindicatos. É um dado significativo dessas novas redes de resistência e solidariedade que se contrapoem ao dumping social.
Mas hoje até o peso específico do operário metalúrgico é outro.
E isso leva a outra discussão interessante, sobre a possibilidade de recolocação da mão-de-obra do setor industrial, demitida pelo avanço da tecnologia, no setor de serviços. Mas, além de levar tempo, esse processo é política, social e economicamente muito mais complicado e difícil do que parece. Por causa da concentração de renda e da não-democratização do acesso aos equipamentos públicos, o nível médio de escolaridade dos trabalhadores é baixo. Muitos deles simplesmente não têm condições de se transferirem para áreas que exigem compreensão de manuais e operação com máquinas de leitura digital. Pois se o trabalhador brasileiro tem um baixo nível de formação, para complicar não existem escolas públicas em número suficiente que o requalifique rapidamente para atuar no setor de serviços. O processo de realocar o trabalhador egresso do sistema industrial para o setor de serviços passa por essa limitação: a falta de qualificação, por um lado, e a inexistência de um sistema educacional capaz de produzir capital humano. O resultado acaba sendo a expansão do analfabetismo funcional, como revelam os indicadores sociais.
Algum país opera esse projeto de requalificação?
Alguns países já fazem isso, como China, Japão, Chile, Uruguai ou Argentina. É um processo de capacitação das novas gerações, não apenas no sentido de estimular a chegada dos jovens ao ensino superior, mas de direcioná-los a atividades técnicas que não necessariamente demandam ensino superior. Isso é feito de maneira mais planejada, com metas claramente definidas, e não como acontece no Brasil, em que há o chamado "sistema S", as escolas do Senai, Sesc, que parecem funcionar bem mas têm um custo caro e não conseguem atender a toda a demanda. O mesmo ocorre com as Fatecs, que cresceram em alguns Estados, também não dão conta da demanda. No debate sobre políticas públicas no campo educacional, atualmente, parece-me haver uma excessiva de valorização da discussão do ensino superior sem que se pense o suficiente sobre a elevação do nível de qualidade do ensino básico. E é justamente aí onde reside o problema.
Hoje, o grande organismo mundial é a OMC, mais que a ONU. Nesse panorama, como fica a atuação do direito? Se os economistas dão as cartas, há espaço para os operadores do direito?
Há espaço, sim. Os organismos multilaterais cada vez se diferenciam funcionalmente, exigindo profissionais com formações específicas. Banco Mundial, FMI, OIT, BID, União Européia, OCDE – todos esses organismos têm postos e cargos para operadores jurídicos. Mas o que se exige deles é uma visão-de-mundo cosmopolita, uma sólida bagagem cultural, uma boa formação teórica e uma predisposição ao diálogo interdisciplinar, características que não estão presentes na maioria esmagadora dos cursos jurídicos no Brasil. Neles, o que prevalece é um distanciamento da realidade social e econômica, um apego inadmissível às tradições emboloradas, falta de rigor analítico, um deplorável ecletismo e uma confusão entre prática jurídica e prática forense. Isso é incompatível com o tipo de operador jurídico de que empresas, instituições financeiras e escritórios necessitam. Há importantes pesquisas feitas por Bryant Garth, John Flood e Yves Dezalay sobre o futuro das profissões jurídicas, os riscos do que chamam de "dolarização do conhecimento jurídico" e as práticas profissionais valorizadas pelos grandes escritórios americanos e ingleses. Se as empresas são mundiais, dizem esses pesquisadores, é natural que queiram ter uma assessoria jurídica de escritórios com alcance mundial, como o Backer & Mackenzie. Ora, isso está levando a OMC a discutir a questão da abertura dos serviços jurídicos nos países em desenvolvimento. Mais dia, menos dia, a abertura do mercado brasileiro de serviços jurídicos estará na agenda das discussões da OMC. Em 2002, o Itamaraty identificou a chegada desse problema e promoveu uma reunião no prédio do BNDES no Rio de Janeiro com representantes dos 100 maiores escritórios brasileiros de advocacia. Simplificando muito a discussão, o Itamaraty perguntou a eles se estavam ou não preparados para a abertura dos serviços legais e disse que tentaria resistir às pressões durante algum tempo, até que esses escritórios ganhassem musculatura e know how para resistir às grandes firmas americanas e inglesas. A abertura dos serviços advocatícios provocará no Brasil o que ocorreu em alguns países da Europa e no Japão: ali, escritórios tradicionais foram varridos pelas firmas americanas e inglesas. Recentemente, em Lisboa, pude assistir a um debate sobre reestruturação dos velhos escritórios portugueses, a maioria tendo de substituir a tradição coimbrã por uma formação wallstreetiana, como condição de sobrevivência.
Parece sensato o Itamaraty pedir prazo, para preparar o país para essa abertura.
Sim, a iniciativa do Itamaraty merece aplauso. Mas é preciso ver o que acontecerá do lado corporativo. A OAB, até onde sei, recusa qualquer tipo de abertura do mercado de serviços legais, resistindo nos planos formal, jurídico, constitucional. Uma postura de defesa, compreensível por tentar defender o mercado de trabalho para os 560 mil advogados do Brasil. Mas existem problemas. Os escritórios que poderiam vir ao Brasil com a abertura dos serviços legais não irão necessariamente competir com advogados brasileiros no nosso contexto, e nem o advogado de família de Bauru irá protocolar uma petição num fórum distrital americano. Eles virão num contexto de trabalho em equipe, buscando formular, com criatividade jurídica, contratos relacionais de longa duração entre as empresas mundiais e seus diferentes parceiros locais, como fornecedores de suprimento e prestadoras de serviços. Eles vêm dentro de uma lógica de contratos altamente sofisticados, que envolvem parcerias de risco, inovações tecnológicas, novas formas de controle, etc. São atividades com as quais os advogados brasileiros dos pequenos e médios escritórios não lidam, nem estão preparados para fazê-lo, até porque as faculdades de direito não preenchem esse tipo de lacuna no mercado. Muitas delas continuam com os olhos voltados ao passado, sem compreender o que está acontecendo ao seu redor. Seus alunos são até capazes de citar alguma passagem da "Oração aos Moços", de Ruy Barbosa, mas não sabem o que é a Rodada de Doha, não conhecem o debate germano-americano em matéria de direito, não têm a menor idéia do que é o processo schumpeteriano de destruição criadora e o impacto que hoje ele causa para a cidadania,a para a democracia e para o Estado de Direito.
A chegada desses escritórios ensinaria novos procedimentos, como ocorreu no mercado de publicidade?
No caso dos escritórios de advocacia, esse salto já foi dado há algum tempo. Quando se olha a trajetória de um Pinheiro Neto, de um Demarest & Almeida, de um Mattos Filho, de um Trench, Rossi e Watanabe, de um Machado, Meyer, Sendacz e Ópice e outros grandes escritórios, todos são organizados nos moldes das grandes firmas americanas ou inglesas. O problema dos escritórios brasileiros é escala, até porque não têm a possibilidade de se converter, a curto e médio prazo, em mundiais.
Ocorreu algo a partir daquela reunião em 2002, no BNDES?
Muitos daqueles escritórios passaram a agir conjuntamente e outros procuraram a Fundação Getulio Vargas, o IBMEC e centros de capacitação, estabelecendo bons canais para eventuais associações. Alguns esperam autorização legal para fechar acordos. Poderá ocorrer com os escritórios brasileiros o que aconteceu com o setor de autopeças. Havia empresas nacionais altamente competitivas e rentáveis, como é o caso da MetalLeve, que não tiveram condições financeiras de competir em escala mundial. Em determinado momento, os acionistas preferiram vender a empresa do que partir para uma luta insana em que seriam derrotados por empresas mundiais. Os escritórios brasileiros terão de se fundir e ganhar escala, associar-se com firmas latino-americanas e com escritórios mundiais. Isso é inevitável em quase todos os setores econômicos. Os escritórios que quiserem sobreviver como players internacionais têm de agir internacionalmente, e alguns já fazem isso. O professor Luis Olavo Batista, representante brasileiro no órgão de Apelação da OMC, disse-me há algum tempo que a pressão diminuiu um pouco nos últimos anos.Mas é evidente que ela poderá ressurgir com vigor mais à frente.
A Academia se mobiliza em relação a essa questão?
Não. O ensino jurídico brasileiro vive uma situação autista. Por um lado ele identifica e até compreende os riscos e as conseqüências da substituição de uma formação profissional baseada em valores morais e éticos por uma formação economicista e acrítica, que enfatiza a competitividade extrema, produtividade levada ao máximo e a canonização de que a função da empresa é assegurar dividendos cada vez mais generosos aos acionistas. Por outro lado, contudo, não tem capacidade analítica nem preparo teórico que lhe permitam modernizar-se a partir dessas transformações. O ensino jurídico não foi capaz de perceber alterações significativas sofridas pelo país, do ponto de vista da economia, do direito, do estado e das instituições, continuando excessivamente forense e preso a uma visão de mundo e de sociedade distanciada da realidade. Nos tempos em que integrei os comitês do CNPq e da Fapesp, ficava espantado quando, por exemplo, via professores de direito civil lecionando e desenvolvendo projetos de pesquisa partindo da idéia de que o Brasil é uma sociedade integrada, estável e pouco conflitiva. Não é por acaso que, nos últimos anos, aumentou significativamente a procura pelos cursos de pós-graduação, por parte dos alunos de direito. Aumentou também, o número de alunos de direito com uma segunda formação universitária, como economia, administração e engenharia. Na São Francisco, é impressionante notar como os alunos do curso noturno são de uma faixa etária bem mais velha do que alunos do curso matutino. Muitos já dispõem de diploma universitário e há até quem já tenha feito mestrado ou doutorado em outra área do conhecimento. Na GVlaw, vejo muita gente com segunda formação ou pós-graduação. Essa movimentação discente em busca de informação interdisciplinar ocorre por uma razão simples: os cursos jurídicos são formalistas e monodisciplinares, retóricos, pouco rigorosos e distanciados da realidade . Esses cursos não conseguem e nem querem trabalhar com um diálogo interdisciplinar e partem de uma visão caricatural de que o economista é um tecnocrata e o advogado um porta-voz da liberdade e da democracia.
Por Carlos Costa e Emerson Fabiani
quinta-feira, 1 de novembro de 2007
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Um comentário:
Como o autor disse, nos mercados globalizados a democracia representa um custo. No último exemplar da revista Foreign Policy,foi publicado um artigo apontando exatamente o mesmo problema. Apesar da mensagem que tem sido vendida (economia de mercado promove a democracia), o que se tem observado é que a economia global está erodindo o poder do povo nas democracias existentes.
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