quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Modulação Invertida

A Corte continua seu movimento ativista. Sem chamar muita atenção, foi publicado no último Informativo STF (nº 485) o resultado do julgamento da ação direta de inconstitucionalidade nº 3756, movida pela Câmara Legislativa do DF contra dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal. O que a Câmara do DF pretendia era que o Distrito Federal fosse considerado um município para os fins de limites de gastos de pessoal do poder legislativo. Com isso, seus gastos poderiam chegar a 6% da receita líquida do DF, ao invés de 3%, que é o percentual fixado pela LRF aos Estados. A LRF, no entanto, diz expressamente: “nas referências [...] a Estados entende-se considerado o Distrito Federal” (art. 3º).

Ao julgar a ação, o STF acabou criando um novo instituto, que provisoriamente vou chamar de “modulação invertida”, já que essa figura, pelo que sei, ainda não foi batizada. Mas antes de explicar o que é a modulação invertida, vamos recordar o que é a modulação das declarações de inconstitucionalidade de lei pelo STF.

A modulação, ou modulação temporal, foi trazida ao ordenamento jurídico brasileiro pela Lei 9868 de 1999, que autorizou o STF, ao “declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, [...] restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado” (art. 27). A lei também fixou as razões que autorizariam a modulação: segurança jurídica ou excepcional interesse social. Ao largo de várias controvérsias sobre o instituto, inclusive com o questionamento da própria constitucionalidade da Lei 9868, o STF vem reiteradamente utilizando a modulação, inclusive em casos de controle de constitucionalidade incidental (vide RE 442683/RS, Informativo STF nº 419).

Pois bem, o que é, então, a modulação invertida? Como vimos, na modulação simples, o STF declara a inconstitucionalidade de um dispositivo legal, retirando-o do mundo jurídico, mas, por razões de segurança jurídica ou interesse público, os atos praticados com base no ato normativo inconstitucional são considerados válidos. Na modulação invertida – que foi o caso da Câmara Legislativa do DF - o Tribunal diz que a lei é constitucional, porém os atos contrários a essa lei devem ser mantidos porque o requerente, de boa-fé, entendia que a lei era inconstitucional.

Mas qual, afinal de contas, é a diferença? Bem, na modulação, ao declarar a inconstitucionalidade da lei, o Tribunal altera a ordem jurídica positiva, daí o porquê de resguardar a segurança jurídica ou o interesse público. Na modulação invertida, porém, a ordem jurídica permanece inalterada. A lei é considerada constitucional, mas isso não muda seu status vinculativo. Toda lei já nasce com presunção de constitucionalidade e não depende de declaração do STF para ter vigência e eficácia.

Assim, como poderíamos dizer que a modulação invertida estaria amparada na segurança jurídica ou no interesse público? Como um comportamento manifestamente contrário à lei pode ser amparado pela segurança jurídica ou pelo interesse público?

A modulação invertida não está prevista na Lei 9868, cujo art. 27 só trata das hipóteses de declaração de inconstitucionalidade. Também não consigo vislumbrar uma fundamentação constitucional para modulação invertida, pois nenhum dispositivo ou princípio da Constituição autoriza o descumprimento antecipado da lei.

A questão da legitimidade democrática na modulação temporal das decisões do STF já é, em si, complicada. No caso da modulação invertida, o problema é ainda mais intrincado, pois o Tribunal chama para si a competência de estabelecer exceções a leis constitucionais.

2 comentários:

Daniel Ferreira disse...

O problema principal da modulação invertida é a discricionariedade que gera. Assim poderá haver o descumprimento de uma lei constitucional alegando que se achava que era inconstitucional. Acho que isso só enfraquece o nosso ordenamento pois não cabe a ninguém julgar por si só que uma lei é inconstitucional, por isso temos medidas próprias a serem seguidas perante nossa Corte Constitucional.

Vanice Lírio disse...

argumento apresentado pelo STF para aplicar a "modulação invertida", como se lê do Informativo 485, é o da existência de orientação da Corte de Contas, autorizando a prática (depois reputada inconstitucional) de aplicação do limite próprio aos Municípios. Ocorre que essa afirmação envolve um juízo de constitucionalidade de preceito da LC 101/00, o que estaria a evidenciar ausência de competência legal do próprio TC para formular a mencionada orientação.
Como vislumbrar, portanto, boa-fé na prática a ser protegida - se a inversão da presunção de constitucionalidade se deu a partir de pronunciamento de órgão que não se reveste dessa competência constitucional?
Mais ainda; há uma posição já tradicional na doutrina brasileira (que parece equivocada, mas que encontra prestigiados autores, dentre eles despontando Almiro do Couto e Silva) no sentido de que segurança jurídica não seja de se reconhecer em favor do Poder Público - e portanto, uma vez mais, temos uma mudança de premissa, aparentemente, sem maior enfrentamento.
As mudanças de comopreensão da Corte Constitucional são bem vindas, mas sem a devida fundamentação e contrução teórica, culminam por contribuir para uma fragmentação absoluta do sistema de jurisdição constitucional.