terça-feira, 27 de janeiro de 2009

A rediscussão da Lei de Anistia

Dr. Marcelo Torelly assessor da Comissão de Anistia do MJ envia a seguinte notícia publica na Carta Maior de 27 de janeiro de 2009 a respeito da revisão da "anistia" dos crimes praticados por agentes públicos do Estado brasileiro pós-64.

Juízes defendem nova interpretação da Anistia

Documento aprovado no V Fórum Mundial de Juízes defende uma nova interpretação da
Lei de Anistia para que "se apurem efetivamente os crimes contra a humanidade,
perpetrados pelos agentes do Estado durante o período da Ditadura Militar". O que
quer dizer a "interpretação técnico-jurídica" da Lei de Anistia brasileira?

Edson Teles

Encerrou-se ontem, dia 25 de janeiro, o V Fórum Mundial de Juízes. O evento, que
contou com a participação de juízes, advogados e procuradores de vários países,
aprovou a "Carta de Belém", contendo a proposta de uma nova interpretação
"técnico-jurídica" da Lei de Anistia. O texto aprovado defende "que se apurem
efetivamente os crimes contra a humanidade, perpetrados pelos agentes do Estado
durante o período da Ditadura Militar".

Estiveram presentes, entre outros, o juiz chileno Juan Guzmán, um dos responsáveis
pelas apurações dos crimes cometidos durante o regime ditatorial de Pinochet; o juiz
italiano Giancarlo Capaldo, que tem denunciado militares e agentes policiais de
ditaduras latino-americanas envolvidos em mortes de cidadãos italianos; Eugênia
Fávero e Marlon Weichert, procuradores da República que têm denunciado e proposto
processos contra torturadores da ditadura brasileira.

Entretanto, o que quer dizer a "interpretação técnico-jurídica" da Lei de Anistia
brasileira? Para entendermos a questão é necessário refazermos brevemente o percurso
histórico do surgimento desta lei.

Em agosto de 1979, o Congresso Nacional brasileiro, ainda sob a vigência do regime
de exceção, aprovou a Lei de Anistia "a todos quantos, no período compreendido entre
02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos
com estes". Na época, após 15 anos de ditadura no país, os militares cederam às
pressões da opinião pública e dos movimentos de direitos humanos, especialmente dos
familiares de presos e desaparecidos políticos, e enviaram projeto de lei ao
Congresso Nacional. A oposição pressionou por mudanças no texto original e, por fim,
aceitou a anistia proposta pelo governo.

Apesar da luta dos comitês brasileiros pela anistia por uma "anistia ampla, geral e
irrestrita" para os perseguidos pela ditadura, parte dos presos e perseguidos
políticos não foi contemplada. A anistia não beneficiou os presos políticos
envolvidos em crimes de sangue, como se diz em seu parágrafo 2º, do artigo 1º: "os
que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e
atentado pessoal".

Sob a decisão de anistiar os crimes "conexos" aos crimes políticos se consideraram
anistiados os agentes da repressão. Os mortos e desaparecidos políticos não foram
considerados e o paradeiro de seus restos mortais nunca foi esclarecido. Era o marco
da transição da ditadura para o Estado de Direito, visando superar - e mais do que
isso, silenciar e esquecer, o que limita ou elimina a superação - o drama vivido
diante da violência estatal.

Contudo, as leis de anistias surgem em momentos de saída de graves conflitos, com o
objetivo de permitir que os perseguidos do momento sejam incluídos no processo de
reconciliação. Dessa forma, não teriam sido anistiados os torturadores que cometeram
crimes sem relação com causas políticas e recebendo salário como funcionários do
Estado. Além disso, como já dito na lei, os chamados "crimes de sangue" não foram
contemplados. Dentre estes crimes estão os atos de tortura e desaparecimento dos
opositores.

Durante a transição política para a nova democracia a anistia foi simbolizada como
um ato de perdão para os dois lados envolvidos no conflito. Esta interpretação
esteve vinculada ao momento político vivido pelo país, que não sofreu uma ruptura
entre os dois regimes, mas antes teve seu processo promovido desde o fim dos anos 70
pelos militares - a chamada "abertura lenta e gradual", controlando as mudanças e
impedindo uma maior participação popular e dos movimentos sociais. A transição foi
acordada entre o governo autoritário e os novos partidos políticos surgidos no
início dos anos 80 e culminou com a eleição no Colégio Eleitoral do primeiro
presidente civil após os governos militares (Tancredo Neves).

Nos anos 90 foram criadas as leis de reparação das vítimas e de reconhecimento da
responsabilidade coletiva do Estado na morte e desaparecimento de opositores. Tais
leis apresentaram limites a qualquer tentativa de apuração dos crimes e punição dos
responsáveis. Além disto, nas leis brasileiras de reparação, estaduais e nacional, o
ônus da prova dos sofrimentos ficou a cargo das vítimas, ainda que fosse o Estado o
responsável pelos arquivos e informações da repressão, elementos comprobatórios da
ação institucional. Além de a vítima ter sido obrigada a provar sua própria
condição, a democracia brasileira não criou uma esfera institucional para o
testemunho daquela experiência, seja na esfera pública e política, seja em processos
judiciais. De modo distinto à boa parte das novas democracias latino-americanas, não
houve, no Brasil, um único processo penal contra criminosos da ditadura.

Recentemente, iniciativas jurídicas pedindo a responsabilização individual dos
torturadores esbarraram na interpretação - elaborada nos anos 80 - de que a anistia
foi para os dois lados. Tais ações judiciais estão sendo encaminhadas pelo
judiciário brasileiro para o Supremo Tribunal Federal. Nesta instância, o presidente
do Supremo, Gilmar Mendes, já adiantou sua posição de que uma nova interpretação da
lei implicaria em prejuízo para as instituições democráticas. Ora, não seria
prejudicial justamente o ato de empurrar a justiça para debaixo do tapete,
juntamente com toda a sujeira dos aparelhos de repressão da ditadura?

A importância da apuração da violência política encontra-se na compreensão de que
tais eventos não são traumas restritos ao passado, mas fatos produtores de valores
que resultam em responsabilidade e compromisso, como uma promessa para o futuro. E
isto apenas seria possível se o passado fosse tomado como herança da dimensão
pública, gerando conceitos, reflexões e valores para uma vida em democracia.

Assim como não é possível pensarmos a violência da ditadura, sem assumirmos o
compromisso de responder aos atos de violência e tortura dos dias atuais. Não
eliminaremos as "balas perdidas" se não apurarmos a verdade dos anos de chumbo e,
assim, ultrapassarmos certa cultura da impunidade vigente no país. Afinal, a "bala
perdida" é, tal qual o silêncio sobre os crimes da ditadura, o ato sem assinatura,
pelo qual ninguém se responsabiliza.



Professor de Ética e Direitos Humanos do curso de Pós-Graduação da Universidade
Bandeirante de São Paulo e doutor em filosofia política pela Universidade de São
Paulo. Email: edsonteles@gmail.com.

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