quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Billy Budd e as Decisões Consequencialistas


Neste post, comentamos um artigo publicado pelo Prof. Daniel Solove na Cardozo Law Review (http://ssrn.com/abstract=587121), procurando estabelecer uma comparação com as chamadas decisões consequencialistas tomadas pelo nosso Supremo Tribunal. Concordando com o Prof. da GWU, entendemos que a obra de Melville (Billy Budd) nos convida a examinar com mais detalhes as justificativas apresentadas pelos governantes para excepcionar as regras legais em situações de emergência.


Billy Budd, personagem de Herman Melville, era um marinheiro da armada inglesa durante as guerras napoleônicas. Acusado de ser um potencial conspirador, Billy Budd mata acidentalmente um oficial e é levado a julgamento por uma comissão de oficiais e marinheiros, presidida pelo comandante do navio, capitão Vere. Apesar de alguns integrantes da comissão entenderem que o crime não foi intencional, Vere argumenta que, em tempo de guerra, o homicídio deveria ser punido com a morte, independentemente da intenção do agente. Assim, Billy Budd acaba sendo condenado e enforcado no mastro principal.

Mas o que a história do marinheiro Billy Budd tem a ver com o Direito e, principalmente, com as decisões do nosso Supremo Tribunal?

A obra de Melville serve de matéria-prima para um interessante artigo do Prof. Daniel Solove. Por trás da história de Billy Budd, aparenta existir um velho dilema que de tempos em tempos ressurge no Direito. Em certos casos excepcionais, o que deve prevalecer: a justiça ou o direito estabelecido? As normas devem ser flexibilizadas em prol da justiça ou esta deve ser sacrificada para assegurar um bem maior? Solove, no entanto, vai além dessa questão. Baseado na interpretação que Weisberg fez da obra de Melville, o professor da GWU aponta que, de fato, o capitão Vere falha na aplicação do regra de direito. Por conta de uma série de vícios procedimentais – além do fato de Vere ter sido ao mesmo tempo a principal testemunha e condutor do julgamento – o processo é erroneamente acelerado, resultando na indevida execução de Billy Budd.

A execução de Billy Budd ultrapassa o simples debate utilitarista ou o problema do legalismo exagerado. O marinheiro é executado não porque representa em si uma ameaça, mas pela imagem que sua absolvição representaria perante o resto da tripulação. A execução de Billy Budd, conclui Solove, “tem a qualidade de um sacrifício ritual”; é feita em nome das aparências.

Solove procura chamar a atenção para as semelhanças entre o julgamento de Billy Budd e o argumento da emergência, que não raro leva governos e tribunais a tomarem ações precipitadas, que não raro são compreendidas como equivocadas no futuro. Assim, por exemplo, no caso da internação forçada dos nipo-descendentes durante a II Guerra Mundial, que foi sancionada pela Suprema Corte Americana no caso Korematsu v. United States, e, recentemente, nos atos anti-terroristas editados após o ataque de 11 de setembro. A história de Billy Budd , conclui Solove, pode ser lida como uma poderosa demonstração do porquê devemos resistir à tendência de prontamente aceitar argumentos de nossos líderes no sentido de que devemos fazer certos sacrifícios em tempos de crise. Pra o autor, “o direito é frequentemente comprometido ou manipulado para legitimar sacrifícios severos em tempos de crise, os quais frequentemente são desnecessários”.

Em nosso Supremo Tribunal, a emergência figura no discurso jurídico através dos argumentos consequencialistas. No Brasil, ao contrário dos EUA, guerra e terrorismo não são ameaças atuais na agenda governamental, mas isso não quer dizer que estejamos a salvo das situações de emergência. Na história recente, as situações de emergência têm surgido no campo econômico. Na visão governamental, as políticas econômicas e fiscais precisavam ficar “protegidas” do direito, o que resultou em uma considerável expansão das medidas de Suspensão de Segurança, especialmente com base na legislação introduzida na virada da década, atualmente corporificada na MP 2.180 de 2001.

A Suspensão de Segurança é um mecanismo que merece maior atenção porque ele não bloqueia uma decisão judicial por conta de um erro in procedendo ou in judicando. Diferentemente dos recursos, a Suspensão de Segurança tem por objeto apenas as possíveis consequências da decisão, e não seu conteúdo. Ela é concedida “para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas” (art. 4º da Lei nº 8.437/1992). Não há, na Suspensão de Segurança, espaço para contraditório ou produção de provas. O julgamento é feito com base nas aparências apresentadas. Da mesma forma, a Suspensão não tem por objetivo manter a integridade do direito, mas evitar que se produzam as consequências indicadas pelas aparências.

Os exemplos de Suspensão de Segurança são muitos, mas vamos nos deter no caso da SS nº 3.154-6/RS. Nesse procedimento, o Estado do RS procurou suspender a execução de liminar deferida contra o parcelamento do pagamento de funcionários públicos. A liminar do Tribunal de Justiça estava baseada no art. 35 da Constituição estadual, que fixa data certa para o pagamento dos servidores públicos, o que tornava o caso ainda mais interessante, porque o próprio STF já havia afirmado a constitucionalidade daquela norma em uma ação direta de inconstitucionalidade. Não obstante, a suspensão foi deferida pelo Vice-Presidente da Corte, “tendo em vista a situação excepcional em que se encontram as contas públicas estaduais”.

A SS nº 3.154-6/RS traz um perfeito exemplo de julgamento consequencialista. A decisão judicial atacada não merecia reparos do ponto de vista jurídico, pois foi a aplicação de uma regra constitucional, semanticamente simples e de perfeito enquadramento ao caso concreto. O fundamento para a suspensão residia unicamente nos efeitos daquela decisão na ordem econômica do Estado.

Não há como, neste momento, adentrarmos no mérito da SS nº 3.154-6/RS. Nem nos parece incorreto, a princípio, considerar que as consequências devam exercer algum papel na argumentação desenvolvida perante os tribunais. O ponto crítico, em nossa opinião, é saber até que ponto podemos confiar nas aparências apresentadas pelo Estado para criar exceções à garantias dos direitos.

Até o presente momento, a grande maioria das exceções tem sido construída em detrimento dos direitos individuais que se refletem na órbita patrimonial. Não podemos nos esquecer, contudo, que uma onda de exceções também vem sendo criada em torno da questão da segurança pública. Será que, em nome da segurança pública, os direitos individuais dos moradores de comunidades carentes podem ser sacrificados? O combate à criminalidade justifica a flexibilização dos sigilos das comunicações? Pelo que parece, a história de Billy Budd também tem algumas lições a nos ensinar.

Um comentário:

Prof. Ribas disse...

Devemos reconhecer a importância da análise efetuada sobre o caso relatado pelo Professor David J.Solve, de matriz teórica pragmática, de uma personagem do autor da obra Moby Dick. Pois, acentua uma reflexão sobre o estado de exceção. Vale lembrar, reforçando o foco de nosso blog, a Recl-Agr-3034 com o voto vista do Ministro Eros Grau. No citado voto vista, o Ministro Eros Grau define o que entende por estado de exceção fundamentado na obra Estado de Exceção de Giorgio Agamben (S.Paulo: Editora Boitempo, 2005). Culmina a fundamentação do Ministro Eros Grau com a seguinte frase para ponderarmos as suas consequências:"...não estamos no Supremo Tribunal Federal para prestar contas nem para Montesquieu e nem para Kelsen". José Ribas Vieira