quinta-feira, 27 de dezembro de 2007
Denninger e Grimm e os impasses da teoria constitucional
sábado, 15 de dezembro de 2007
O olhar dos advogados a respeito da judicialização política
sexta-feira, 14 de dezembro de 2007
A insegurança jurídica e o STJ
quarta-feira, 12 de dezembro de 2007
As diferenças da Reforma do Judiciário na França
segunda-feira, 10 de dezembro de 2007
O Republicanismo na concepção de Zagrebelsky
Zagrebelsky e Neoconstitucionalismo
1. Importância do direito comparado
Na contemporaneidade podemos torna-se notória uma propensão ultra-nacional, quiçá universal das funções nacionais da justiça constitucional. Apesar do Estado Constitucional não coincidir em toda a parte, no entanto, há muita convergência prática no julgamento em matéria constitucional entre os países.
Zagrebelsky ressalta que nos últimos tempos o intercâmbio de experiências tem obtido foco justamente no direito constitucional devido à citação e utilização, por parte das cortes, de doutrina e jurisprudência estrangeiras[1].
São dois os extremos desta discussão: por um lado temos o artigo 39 da Constituição da República da África do Sul de 1996, segundo o qual, ao interpretar o rol de direitos , os tribunais “devem levar em consideração o direito internacional e podem levar em consideração o direito estrangeiro”. Em contrapartida, temos a idéia de quem defende a manutenção das características originais da Constituição sob pena desta se tornar parte de um constitucionalismo genérico sem fronteiras e sem características.
O significado da contestação de um nascente “cosmopolitismo judicial” está bem representado por um projeto de lei apresentado em 2004 nos EUA, intitulado Constitution Restoration Act. Tal projeto inibe os juizes de interpretarem a Constituição levando em consideração documentos distintos dos nacionais incluindo as decisões de Cortes Constitucionais ou Supremas de outros Estados e os tribunais internacionais de Direitos Humanos. Tal medida é defendida para a suposta manutenção da identidade da constituição nacional.
Na Europa tal fato não ocorre, pois, a comparação é considerada o quinto método de interpretação constitucional depois dos quatro de Savigny (métodos gramatical, histórico, sistemático e teleológico).
A doutrina do direito natural alega que existem princípios que devem necessariamente informar o direito positivo e tais são universais, pois devem ser encontrados tanto no próprio ordenamento quanto nos demais ordenamentos. O consenso seria, portanto, uma forma de legitimação e fundamentação de cada uma das decisões judiciais.
Exemplo de aspiração da universalidade são as normas que tipificam a dignidade e igualdade de todos os seres humanos e os direitos fundamentais. Sua interpretação não é a interpretação de um contrato, de uma decisão administrativa, ou de uma lei, tal interpretação constitucional é um ato de adesão ou de ruptura a tradições histórico-culturais compreensivas da qual as Constituições particulares fazem parte.
A relevância para a jurisprudência nacional da jurisprudência estrangeira ou supra-nacional é que estas são um plano de fundo que agregam um significado preciso do momento histórico pelo qual as Constituições nacionais estão passando.
O direito interno deve ser sempre priorizado em detrimento do direito estrangeiro mas como afirma Zagrebelsky, é como se recorrêssemos a um “amigo com grande experiência” que nos faz pensar melhor, que amplia as perspectivas e enriquece as argumentações. Ou seja, “o direito comparado me serve como um espelho: me permite observar-me e compreender-me melhor”[2].
Não há o menor prejuízo da soberania nacional, pois os juízos de homogeneidade e de congruência dos textos e dos contextos continuam sendo das Cortes nacionais. Portanto, as Cortes têm raízes que as assentam em condições político-constitucionais nacionais, no entanto, têm a cabeça sempre direcionada para princípios de alcance universal. Se manter na clausura nacional significa de acordo com o autor “ficarem predispostas a políticas constitucionais e de direitos humanos voltadas apenas aos interesse nacionais”[3].
A comunicação entre jurisprudência pressupõe a existência, na interpretação, de uma margem de elasticidade, ou seja, de discricionariedade das cortes. A denominada constituição viva deve ser sensível as exigências constitucionais que mudam com o tempo.
A discricionariedade é um dado irrefutável. Zagrebelsky afirma que a melhor prova está nos projetos de reforma que tentam redefinir o papel das Cortes baseando-se na seguinte lógica: somos contra a discricionariedade, mas, como não a podemos eliminar, então ao menos que esta se oriente segundo as expectativas políticas, modificando com este objetivo os equilíbrios internos. Desse modo, se reforça o equívoco, golpeando a justiça constitucional em seu ponto essencial, a autonomia da política.
Tal alternativa não é uma questão entre constituição fixa e cristalizada e constituição viva e sim entre corte autônomas e cortes alinhadas com a política[4].
Uma característica não acidental da constituição é sua natureza principiológica, isto porque, os princípios são normas naturalmente abertas aos acontecimentos futuros. De acordo com Dworkin os princípios contêm conceitos (humanidade, dignidade, igualdade, liberdade e etc...) que vivem através de suas concepções mutantes com o tempo[5].
A Constituição, para o autor, não muda como uma lei qualquer nem prescreve em data determinada. Entre a geração constituinte e as gerações que a sucedem se institue uma relação como a que existe entre pais e seus filhos sucessores. Cada geração de herdeiros tenta melhorar e perpetuar a Constituição, e não deixar ao vento o legado recebido[6]. A lei da boa vida das constituições é seu desenrolar na continuidade. O instrumento normal para isto e a jurisprudência, o excepcional é a reforma.
De acordo com juiz Robert Jackson da U.S. Supreme Court no famoso caso do compulsory flag salute, West Virginia Board of Education versur Barnette, de 1943, a função da constituição é:
“O autêntico propósito de uma constituição é de subtrair certas matérias das vicissitudes das controvérsias políticas, colocá-las fora do alcance das maiorias e funcionários, sancioná-las como princípios legais aplicáveis por parte dos tribunais. O direito de cada um a vida, a liberdade, a propriedade, a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, a liberdade de culto e de reunião e os demais direitos fundamentais não podem ser submetidos ao voto; não dependem do êxito de alguma votação”[7].
A legislação é função sobre matéria que se vota enquanto que a justiça constitucional é função sobre matéria que não se vota, porque é res publica. A função da Corte Constitucional é inerente a forma republicana de Estado e não à democracia, daí tal distinção.
Portanto, nossos princípios constitucionais têm alcance universal e sua violação produz acima de tudo um julgamento moral em qualquer lugar da terra que aconteça. Para Zagrebelsky se não é uma forma institucional supranacional cosmopolita que está por vir ao menos existem contextos deliberativos comunicantes. A interação sempre levará a uma convergência de resultados.
Sendo assim, a abertura das jurisprudência a enlaces recíprocos não é uma moda nem uma pretensão de professores é uma exigência radicada na vocação contemporânea da justiça constitucional. É parte do processo de muitas facetas da “universalização do direito”, um fenômeno característico de nosso tempo jurídico[8].
[1] Zagrebelsky, Gustavo. Jueces Constitucionales in Teoria del neoconstitucionalismo (Edición de Miguel Carbonell). Madrid: Editorial Trotta, 2007, p. 92.
[2] Op. Cit., p. 94-95.
[3] Op. Cit., p. 95.
[4] Op. Cit., p. 97.
[5] Op. Cit., p. 98.
[6] Op. Cit., p. 99.
[7] Op. Cit., p. 101.
[8] Op. Cit., p. 103.
terça-feira, 4 de dezembro de 2007
Constituição: ordem marco ou ordem fundamental?
Um dos pontos centrais da teoria do direito constitucional – e da própria crise da constituição neste início de século – consiste na concepção de constituição que deve ser adotada pela doutrina e tribunais. Em outras palavras, a questão é definir se a constituição deve ser vista como uma ordem fundamental ou ordem marco.
A constituição como ordem jurídica fundamental é uma idéia cara aos juristas. Kägi (A constituição como ordenamento fundamental..., 1945) defendia que a constituição deveria ter caráter normativo e duradouro, rechaçando o seu contínuo “câmbio”. Para Kägi, “como ordenamento normativo legal, a constituição é o fundamento de toda a ordem jurídica estatal”, e sua estabilidade está relacionada com uma ordem de valores fundamentais da sociedade (“a norma estável é a expressão de um valor fundamental duradouro”). Na contínua tensão entre política e constituição, esta última deveria prevalecer. Kägi exerce influência sobre vários autores, entre os quais Garcia de Enterria (A constituição como norma..., 1981), para quem a constituição teria não somente uma “superlegalidade formal”, mas também uma “superlegalidade material”. Muito divulgada entre nós foi a concepção de constituição dirigente do “primeiro” Canotilho, que manteve seus seguidores mesmo após a revisão da tese pelo constitucionalista português. Eros Grau, em 2002, assim escreveu: “a Constituição do Brasil não é um mero 'instrumento de governo', enunciador de competências e regulador de processos, mas, além disso, enuncia diretrizes, fins e programas a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Não compreende tão-somente um 'estatuto jurídico do político', mas sim um plano global normativo da sociedade e, por isso mesmo, do Estado brasileiro”(Canotilho e a constituição dirigente, 2003).
Não obstante, teóricos como Bockenförde e Forsthoff defendem um maior espaço para o legislador e para o administrador na ordem jurídica. Na obra escrita durante a II Guerra Mundial (Tratado de direito administrativo), Forsthoff vê a constituição como algo, por sua natureza, permanente e estático, enquanto a administração significa atividade, movimento e câmbio. Isto seria explicado, segundo o autor alemão, pelo fato de “a matéria de que é feita a administração ser muito mais dúctil do que a da constituição”. E, mais tarde, ao comentar o estado social na Lei Fundamental, Forsthoff coloca que o estado social e estado de direito são diferentes e, em determinadas circunstâncias, antagônicos. Preocupado com a expansão da constituição sobre matérias que considerava próprias da administração e da legislação, Forsthoff afirma que “uma constituição não é uma lei social; ela se dirige à coletividade”, sendo “função do legislador concretizar a norma constitucional de tal modo que a sua execução seja possível com a aplicação mesma da lei assim elaborada”. Forsthoff critica a concepção da constituição como um “ovo jurídico originário”, do qual tudo surge, desde o Código Penal até a Lei sobre fabricação de termômetros. Semelhante crítica é feita por Bockenförde (Origem e câmbio do estado de direito, 1991), para quem a liberdade e a autonomia individuais estariam submetidas ao domínio daqueles que exercem o monopólio da interpretação das normas constitucionais, caso a constituição fosse considerada uma ordem fundamental de valores vinculantes de toda a ordem jurídica. Como questiona Bockenförde, “não se abriria então a porta para um totalitarismo constitucional”?
Embora sejam válidas as preocupações de Bockenförde, o fato é que as constituições pós-1945, e especialmente a Constituição brasileira contêm um amplo leque de disposições a respeito da administração e da regulamentação da vida pública e privada, invadindo espaços classicamente pertencentes ao legislador e ao administrador, bem como atribuindo extensas competências ao judiciário, as quais vêm sendo gradativamente expandidas nas últimas reformas constitucionais. Como acentua Zagrebelsky (Il diritto mite..., 1992), o novo constitucionalismo surgido no pós-guerra tornou necessária a concordância da antiga “face” do Direito – as regras jurídicas colocadas à disposição do legislador – com a outra “face” – a dos princípios contidos na Constituição. Com isto, alterou-se o papel da legislação e da jurisdição na determinação do Direito, deixando de haver entre ambas uma relação de hierarquia. O Estado-legislador, que durante um século foi considerado, na tradição européia, o depositário exclusivo de todo o poder de determinação do Direito, viu seu papel se redimensionar de “senhor do Direito” para apenas “senhor da Lei”. Também de acordo com Luis Pietro Sanchís (Neoconstitucionalismo y ponderación judicial, 2000), a idéia de princípios e o método de ponderação que aparecem indissociavelmente unidos “representam um risco para a democracia e para a supremacia do legislador, e, com isso, para a regra da maioria que é o fundamento da democracia”. Este, porém, segundo o próprio Sanchís, é um “risco inevitável” quando se quer manter uma versão “forte” de constitucionalismo, onde a própria Constituição estabelece diretamente alguns direitos e não simplesmente define “a regra do jogo”.
Mas é importante ressaltar que, longe de atribuir um caráter absoluto à constituição, Zagrebelsky, prega a coexistência de valores e princípios, sobre os quais a constituição deve se orientar para se manter compatível com a base material pluralística que lhe dá fundamento. Na “mitezza” constitucional, Zagrebelsky defende a coexistência do jurídico e do político na constituição, o que não deixa de ser uma idéia de ordem marco. Veja-se que o próprio Zagreblesky afirma que “à Lei deve se reconhecer um valor em si mesma”, com independência de seus conteúdos e de seus vínculos de derivação a partir dos preceitos constitucionais. O reconhecimento da legislação como função originária, para Zagrebelsky, depende necessariamente que a Constituição não seja concebida como um sistema fechado, mas sim como um contexto aberto de elementos cuja concretização, dentro de certos limites, seja deixada ao legislador.
Na mesma linha de Zagrebelsky, Alexy (Epílogo a la teoría de los derechos fundamentales, 2002) defende um modelo intermediário entre a ordem fundamental de Kägi e a ordem marco (de cunho liberal) de Bockenförde e Forsthoff. Para Alexy, a disjuntiva entre Estado jurisdicional e Estado de legislação tem paralelo com duas diferentes concepções de Constituição. A Constituição pode ser vista como uma ordem fundamental, se considerarmos nela incluídos todos os princípios jurídicos e possibilidades de configuração da ordem jurídica. Sob esta ótica, segundo Alexy, a Constituição seria equivalente ao “ovo jurídico originário” de Forsthoff, e o legislador estaria limitado a somente declarar – sob o controle do judiciário – o que já fora decidido pela Constituição. Esta concepção de Constituição certamente não seria compatível com o princípio democrático e o princípio da divisão dos poderes. Mas a Constituição também pode ser vista como uma ordem marco, em que existe um espaço no qual o legislador não está obrigado a agir nem proibido de agir; um espaço em que o legislador tem permissão para atuar ou para se omitir, ou seja, um espaço de discricionariedade. A metáfora do marco, conforme Alexy, pode ser precisada do seguinte modo: “o marco é o que está ordenado e proibido. O que se confia à discricionariedade do Legislador, ou seja, o que não está ordenado ou proibido, é o que se encontra no interior do marco”. A Constituição como ordem marco preserva margens de ação para o legislador que podem ser de dois tipos: estrutural e epistêmica. O que as normas da Constituição não ordenam nem proíbem se enquadra dentro da margem de ação estrutural do legislador, que, por sua vez, pode ser de três tipos: a margem para fixação de fins, a margem para a eleição de meios e a margem para a ponderação. Alexy também chama a atenção para a existência de margens epistêmicas, que aparecem “quando são incertos os conhecimentos acerca do que está ordenado, proibido ou confiado à discricionariedade do Legislador pelos direitos fundamentais”. A causa dessa incerteza pode residir tanto no conhecimento impreciso sobre as premissas empíricas quanto sobre as premissas normativas.
Alexy, enfim, propõe a compatibilização das idéias de ordem fundamental e ordem marco, distinguindo duas idéias de ordem fundamental: quantitativa e qualitativa. Na concepção de ordem fundamental quantitativa, a constituição não estabelece posições discricionárias, ou seja, para tudo prevê um mandado ou uma proibição. Já na concepção qualitativa de ordem fundamental, a constituição procura resolver os problemas fundamentais da sociedade que podem – e devem – ser solucionadas pela constituição, mas deixa muitas outras perguntas a serem respondidas no debate político. Esta última concepção, segundo Alexy, é compatível com a idéia de ordem marco.
Essa também é a leitura do último Canotilho (Direito constitucional..., 2001), que busca harmonizar a idéia da constituição como fundamento do ordenamento jurídico (Kägi) com uma leitura mais pluralística, caracterizando a constituição como ordem-quadro: “para ser uma ordem aberta a constituição terá de ser também uma ordem-quadro, uma ordem fundamental e não um código constitucional exaustivamente regulador”. Chegamos a semelhante conclusão ao analisar a revisão judicial das escolhas orçamentárias.
Resta então questionar como o nosso Supremo Tribunal Federal vê a constituição: uma ordem fundamental ou uma ordem marco? Esta pergunta merece certamente um post específico em nosso blog, mas é possível adiantar que a idéia de ordem fundamental parece avançar no STF, porém, paradoxalmente, não necessariamente para a extensão dos direitos fundamentais. Na década de 1990, assistimos em várias ocasiões ao STF reconhecer a precedência do legislador no desenvolvimento de certas normas constitucionais. Atualmente, o STF parece estar encontrando todas as respostas aos problemas da política no próprio texto constitucional, como no já famoso caso da fidelidade partidária.
sábado, 1 de dezembro de 2007
Instrumentos de análise para a Jurisdição Constitucional
domingo, 25 de novembro de 2007
O caso Grootboom e o controle judicial "intermediário"
Como tive oportunidade de ressaltar no comentário ao último post, uma das questões subjacentes (assim entendo) à idéia de controle judicial "fraco" ou "forte" é a constitucionalização dos direitos sociais. Por certo, poucos acadêmicos norte-americanos teriam coragem de levantar a idéia de "não-justiciablidade" da 1ª Emenda, algo próximo de uma religião para os constitucionalistas daque país. Quanto aos direitos sociais, porém, tanto conservadores quanto progressistas têm receio em entregar à Suprema Corte a tarefa de definir a extensão dos deveres do Estado na prestação dessas garantias.
Para enriquecer essse debate, trago à discussão a jurisprudência da Corte Sul-Africana, e em especial o caso Grootboom, altamente elogiado por Sustein como uma forma intermediária de judicialização das políticas públicas.
Além da semelhança entre as propostas constitucionais, Brasil e África do Sul compartilham uma realidade social nada invejável, marcada pela profunda desigualdade. A África do Sul, após anos sob o regime do apartheid, encontrava-se com enorme contingente populacional na linha da pobreza ou abaixo desta. Mesmo após anos do término do regime discriminatório e da implementação da nova e progressista Constituição, a África do Sul continuava entre as nações com maior desigualdade social do mundo, e o motivo era bem simples: o Estado simplesmente não tinha recursos para atender a todas as necessidades da população.
Nesse contexto, englobando, de um lado, a existência de uma Constituição consagradora de direitos prestacionais dotados de justiciabilidade, e, de outro, uma extensa parcela da população ainda padecendo das mazelas da pobreza, não seria estranho que alguns casos chegassem à Corte Constitucional daquele país. Desses, um dos que tem sido destacados como paradigma da intervenção estatal nas políticas públicas é o caso Government of Republic of South Africa and others v Grootboom and others, que já encontra razoável repercussão na doutrina jurídica.
A questão básica em Grootboom era o direito a uma residência adequada, previsto no art. 26 da Constituição sul-africana. A senhora Grootboom e outros autores moravam em acampamentos informais em uma região sujeita a alagamentos. Muitos deles se candidataram a programas governamentais de habitação popular, mas esperavam na lista há algum tempo e não tinham previsão de disponibilidade de residências. Com a proximidade da estação das chuvas, mudaram-se para um terreno com maior drenagem que, todavia, pertencia a um particular. Despejados judicialmente, tentaram voltar para o antigo acampamento, mas este já se encontrava ocupado por outras pessoas. Moveram, então, uma ação perante a High Court sul-africana, a qual não entendeu haver violação do art. 26 da Constituição, mas sim violação do art. 28, que confere às crianças o direito a um abrigo, dentre outros. Dessa forma, a High Court determinou o imediato atendimento da pretensão dos autores, determinando ao governo prover refúgio às famílias com crianças, fixando ainda condições mínimas como a existência de sanitários e fornecimento regular de água.
O governo recorreu então à Corte Constitucional, alegando questões ligadas à reserva do possível, firmando-se no precedente estabelecido no caso Sobramoney. O ponto central em Grootboom era estabelecer o alcance das “medidas razoáveis” impostas pela Constituição. A Corte fixou que a razoabilidade constitucional requeria que um programa implementado para a realização de direitos socioeconômicos deveria ser abrangente, coerente, equilibrado e flexível, insistindo que um programa que exclui parcela relevante da sociedade não poderia ser assim considerado. Dessa forma, o programa governamental de habitação não poderia ser considerado válido na medida em que falhou ao prover as necessidades de pessoas em imediata e desesperada necessidade, devendo ser modificado para atender a essas pessoas, mesmo em prejuízo de objetivos de longo prazo ou da construção de residências permanentes. A Corte, então, determinou que parcela razoável do orçamento para moradia fosse alocada para atender aquela situação emergencial, não aceitando, porém, a solução adotada pela High Court.
Em Grootboom, a Corte Constitucional não rejeitou completamente o programa governamental de habitação, chegando a afirmar que a quantidade de recursos a ele destinada era substancial. O problema, como já destacamos, é que ele falhava quanto à demanda das pessoas urgentemente necessitadas. Mas para resolver esse problema, a Corte evitou determinar quais prestações eram devidas e como deveriam ser fornecidas, preferindo apenas intervir através da realocação de recursos no orçamento da habitação, deixando, todavia, que a implementação específica ficasse a cargo das autoridades administrativas, a quem em primeira instância incumbe tratar dessas questões.
Outro ponto interessante é que, para a fiscalização do cumprimento da decisão, a Corte nomeou um órgão independente, no caso a Comissão de Direitos Humanos. Como medidas de implementação de direitos prestacionais não se esgotam em único ato, exigindo uma contínua relação do Judiciário com a instituição controlada, essa estratégia da Corte Constitucional sul-africana parece uma boa opção para evitar a personificação do processo e a perda da imparcialidade judicial, observadas por Owen Fiss na experiência com a structural injunction norte-americana.
Como Sunstein ressalta, a Corte em Grootboom teve o mérito de trilhar um caminho intermediário entre as duas posições diametralmente opostas, que normalmente são apresentadas para a solução de casos envolvendo direitos socioeconômicos: ou bem esses direitos são colocados como não justiciáveis; ou bem eles são vistos como fonte de dever absoluto para o Estado, para assegurar proteção a todos aqueles que necessitam dessas prestações. Em Grootboom, a Corte impôs o direito constitucional à habitação ao governo não de forma a garantir que todos recebam abrigo, mas determinando que sejam alocados mais recursos do que ordinariamente seriam destinados ao problema da insuficiência de residências para os pobres, notadamente exigindo a manutenção de um plano para atender pessoas em situação de emergência.
Certas críticas foram dirigidas à decisão em Grootboom, notadamente quanto ao não reconhecimento de um núcleo básico dos direitos sociais constitucionais, exigível de forma direta e individual, mas, como disse Sunstein, a solução adotada pela Corte Constitucional sul-africana permitiu a possibilidade de prover proteção judicial a certas prestações sociais ligadas ao mínimo existencial em um modo que respeita as prerrogativas democráticas e o fato de existirem limitações orçamentárias. Em Grootboom, garantiu-se respeito às prioridades constitucionais e especial atenção a necessidades particulares sem menosprezar os julgamentos democráticos sobre como definir essas prioridades. Enfim, ao exigir o estabelecimento de programas razoáveis, com cuidadosa atenção às limitações orçamentárias, a Corte assentou a possibilidade de prestações estatais serem justiciáveis sem que se menospreze a reserva do possível.
sábado, 24 de novembro de 2007
O modelo canadense e a consituição
sexta-feira, 23 de novembro de 2007
O paradigma de Denninger na jurisprudência do STF
A passagem da igualdade para diversidade ocorre em função de um novo ideal constitucional que deixa de ser direcionado à síntese de um todo universal para a coexistência de uma pluralidade de identidades étnicas, culturais e lingüísticas visando a proteção de minorias e dispositivos sustentando interesses minoritários, frequentemente incompatíveis.
Esse desejo por diversidade é compensado no principio da solidariedade, que “não é usado apenas para decorar preâmbulos”, mas que ganhou expressão em dispositivos constitucionais suplementares e protetivos. Inobstante reconhecer Denninger que a substancia jurídica e ética da solidariedade permanece indeterminada, a seu ver, solidariedade significa uma vínculo de sentimento racionalmente guiado, limitado e autodeterminado que nos compele a oferecer ajuda, enquanto se apóia na similitude de certos interesses e objetivos de forma a, não obstante, manter a diferença entre os parceiros na solidariedade. Significa também, em termos jurídicos, uma rejeição do caráter vinculante de sistemas de valor universais, e a renúncia da exigência de ser igual ao outro tanto em posse quanto em consciência. Segundo Denninger, “o caráter vinculante geral de uma postura solidária repousa no conhecimento da subjetividade relativa de toda experiência de valor e na renúncia ao desejo de forçar os outros a serem felizes”. Antes e acima de tudo, a solidariedade também exige uma constante transcendência dos próprios pequenos preconceitos nascidos de um etnocentrismo primitivo.
Já a segurança não possui mais o mesmo significado que lhe emprestou a Revolução Francesa e o Estado de Direito formal, ou seja, de uma segurança garantida pelo direito, de viver pacificamente, sem armas, sem violência, e no sentido jurídico do termo, a ação limitada e calculável da ação do Estado e a certeza do direito fundada na sua clara e inequívoca cognição. Segurança significa agora o prospecto da atividade ilimitada e infindável patrocinada pelo Estado em favor da proteção dos cidadãos contra perigos sociais, técnicos e ambientais. Isto deve ser reconhecido como a face do “estado preventivo” (sobre essa noção, consulte-se por todos, Dieter Grimm, Constitucionalismo y derechos fundamentales, Madrid: Trotta, 2006). O estado de prevenção de Denninger é inspirado pela máxima segurança, de cuja evolução decorre duas conseqüências: o direito fundamental como dever positivo de proteção do estado; o direito fundamental à segurança.
Esse novo paradigma de Denninger, ainda que passível de crítica no contexto de outros sistemas jurídicos constitucionais (consulte-se Michel Rosenfeld, O Constitucionalismo americano confronta o novo paradigma constitucional de Denninger, Revista Brasileira de Estudos Políticos, v. 88, dez/2003) tem encontrado na jurisprudência do STF um reconhecimento implícito, como por exemplo, no HC 83.554-6/PR, em que o Relator Min. Gilmar Mendes refere o problema da sociedade de risco nos atos lesivos ao meio ambiente, bem como na discussão sobre o caráter solidário e contributivo do regime de previdência dos servidores públicos (ADI 3105/DF e ADI 3128/DF).
sábado, 17 de novembro de 2007
As contradiçoes do Supremo Tribunal Federal
A obviedade do neoconstitucionalismo
quinta-feira, 15 de novembro de 2007
Billy Budd e as Decisões Consequencialistas
Neste post, comentamos um artigo publicado pelo Prof. Daniel Solove na Cardozo Law Review (http://ssrn.com/abstract=587121), procurando estabelecer uma comparação com as chamadas decisões consequencialistas tomadas pelo nosso Supremo Tribunal. Concordando com o Prof. da GWU, entendemos que a obra de Melville (Billy Budd) nos convida a examinar com mais detalhes as justificativas apresentadas pelos governantes para excepcionar as regras legais em situações de emergência.
Billy Budd, personagem de Herman Melville, era um marinheiro da armada inglesa durante as guerras napoleônicas. Acusado de ser um potencial conspirador, Billy Budd mata acidentalmente um oficial e é levado a julgamento por uma comissão de oficiais e marinheiros, presidida pelo comandante do navio, capitão Vere. Apesar de alguns integrantes da comissão entenderem que o crime não foi intencional, Vere argumenta que, em tempo de guerra, o homicídio deveria ser punido com a morte, independentemente da intenção do agente. Assim, Billy Budd acaba sendo condenado e enforcado no mastro principal.
Mas o que a história do marinheiro Billy Budd tem a ver com o Direito e, principalmente, com as decisões do nosso Supremo Tribunal?
A obra de Melville serve de matéria-prima para um interessante artigo do Prof. Daniel Solove. Por trás da história de Billy Budd, aparenta existir um velho dilema que de tempos em tempos ressurge no Direito. Em certos casos excepcionais, o que deve prevalecer: a justiça ou o direito estabelecido? As normas devem ser flexibilizadas em prol da justiça ou esta deve ser sacrificada para assegurar um bem maior? Solove, no entanto, vai além dessa questão. Baseado na interpretação que Weisberg fez da obra de Melville, o professor da GWU aponta que, de fato, o capitão Vere falha na aplicação do regra de direito. Por conta de uma série de vícios procedimentais – além do fato de Vere ter sido ao mesmo tempo a principal testemunha e condutor do julgamento – o processo é erroneamente acelerado, resultando na indevida execução de Billy Budd.
A execução de Billy Budd ultrapassa o simples debate utilitarista ou o problema do legalismo exagerado. O marinheiro é executado não porque representa em si uma ameaça, mas pela imagem que sua absolvição representaria perante o resto da tripulação. A execução de Billy Budd, conclui Solove, “tem a qualidade de um sacrifício ritual”; é feita em nome das aparências.
Solove procura chamar a atenção para as semelhanças entre o julgamento de Billy Budd e o argumento da emergência, que não raro leva governos e tribunais a tomarem ações precipitadas, que não raro são compreendidas como equivocadas no futuro. Assim, por exemplo, no caso da internação forçada dos nipo-descendentes durante a II Guerra Mundial, que foi sancionada pela Suprema Corte Americana no caso Korematsu v. United States, e, recentemente, nos atos anti-terroristas editados após o ataque de 11 de setembro. A história de Billy Budd , conclui Solove, pode ser lida como uma poderosa demonstração do porquê devemos resistir à tendência de prontamente aceitar argumentos de nossos líderes no sentido de que devemos fazer certos sacrifícios em tempos de crise. Pra o autor, “o direito é frequentemente comprometido ou manipulado para legitimar sacrifícios severos em tempos de crise, os quais frequentemente são desnecessários”.
Em nosso Supremo Tribunal, a emergência figura no discurso jurídico através dos argumentos consequencialistas. No Brasil, ao contrário dos EUA, guerra e terrorismo não são ameaças atuais na agenda governamental, mas isso não quer dizer que estejamos a salvo das situações de emergência. Na história recente, as situações de emergência têm surgido no campo econômico. Na visão governamental, as políticas econômicas e fiscais precisavam ficar “protegidas” do direito, o que resultou em uma considerável expansão das medidas de Suspensão de Segurança, especialmente com base na legislação introduzida na virada da década, atualmente corporificada na MP 2.180 de 2001.
A Suspensão de Segurança é um mecanismo que merece maior atenção porque ele não bloqueia uma decisão judicial por conta de um erro in procedendo ou in judicando. Diferentemente dos recursos, a Suspensão de Segurança tem por objeto apenas as possíveis consequências da decisão, e não seu conteúdo. Ela é concedida “para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas” (art. 4º da Lei nº 8.437/1992). Não há, na Suspensão de Segurança, espaço para contraditório ou produção de provas. O julgamento é feito com base nas aparências apresentadas. Da mesma forma, a Suspensão não tem por objetivo manter a integridade do direito, mas evitar que se produzam as consequências indicadas pelas aparências.
Os exemplos de Suspensão de Segurança são muitos, mas vamos nos deter no caso da SS nº 3.154-6/RS. Nesse procedimento, o Estado do RS procurou suspender a execução de liminar deferida contra o parcelamento do pagamento de funcionários públicos. A liminar do Tribunal de Justiça estava baseada no art. 35 da Constituição estadual, que fixa data certa para o pagamento dos servidores públicos, o que tornava o caso ainda mais interessante, porque o próprio STF já havia afirmado a constitucionalidade daquela norma em uma ação direta de inconstitucionalidade. Não obstante, a suspensão foi deferida pelo Vice-Presidente da Corte, “tendo em vista a situação excepcional em que se encontram as contas públicas estaduais”.
A SS nº 3.154-6/RS traz um perfeito exemplo de julgamento consequencialista. A decisão judicial atacada não merecia reparos do ponto de vista jurídico, pois foi a aplicação de uma regra constitucional, semanticamente simples e de perfeito enquadramento ao caso concreto. O fundamento para a suspensão residia unicamente nos efeitos daquela decisão na ordem econômica do Estado.
Não há como, neste momento, adentrarmos no mérito da SS nº 3.154-6/RS. Nem nos parece incorreto, a princípio, considerar que as consequências devam exercer algum papel na argumentação desenvolvida perante os tribunais. O ponto crítico, em nossa opinião, é saber até que ponto podemos confiar nas aparências apresentadas pelo Estado para criar exceções à garantias dos direitos.
Até o presente momento, a grande maioria das exceções tem sido construída em detrimento dos direitos individuais que se refletem na órbita patrimonial. Não podemos nos esquecer, contudo, que uma onda de exceções também vem sendo criada em torno da questão da segurança pública. Será que, em nome da segurança pública, os direitos individuais dos moradores de comunidades carentes podem ser sacrificados? O combate à criminalidade justifica a flexibilização dos sigilos das comunicações? Pelo que parece, a história de Billy Budd também tem algumas lições a nos ensinar.
domingo, 11 de novembro de 2007
A omissão legislativa e a responsabilização do Estado
Desde a entrada em vigor da atual Constituição Federal até o ano de 1995, o Governo Federal, por intermédio de diplomas legais diversos, garantia aos servidores da União, no mínimo, a revisão geral anual de suas remunerações, implementada sistematicamente no mês de janeiro de cada ano. Entretanto, a partir do mês de janeiro de 1995, cessaram tais revisões, fato este que acarretou uma significativa defasagem salarial para a categoria.
A Emenda Constitucional nº 19, de 04 de junho de 1998, buscou reparar tal situação e, entre outras modificações, alterou o teor do inciso X, do artigo 37, da Constituição Federal, inserindo a obrigatoriedade de revisão geral anual da remuneração dos servidores da União, determinando, ainda, segundo o entendimento majoritário, que esta fosse fixada ou alterada por lei específica, observada a competência privativa em cada caso, verbis:
“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
X - a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4º do art. 39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998);” (grifo nosso)
Com essa alteração, a obrigatoriedade de revisar anualmente os vencimentos dos servidores da União ganhou hierarquia Constitucional, uma vez que expressamente assegurou ao servidor público o “princípio da periodicidade”, ou seja, garantiu anualmente ao funcionalismo público, no mínimo, uma revisão geral, diferentemente da redação anterior do citado inciso X, do art. 37, que estipulava que “a revisão geral da remuneração dos servidores públicos, sem distinção de índices entre servidores públicos civis e militares far-se-á sempre na mesma data”, garantindo-se, tão somente, a simultaneidade de revisão, mas não a periodicidade.[1]
Em virtude da redação anterior, entendia o Supremo Tribunal Federal que inexistia obrigatoriedade de envio do projeto de lei pelo Presidente da República, detentor de iniciativa privativa de leis que disponham sobre aumento da remuneração dos servidores públicos (CF, art. 61, § 1º, II, “a”), justamente em face da ausência do princípio da periodicidade para revisão do funcionalismo. Com a nova redação, obviamente, a obrigatoriedade do envio de pelo menos um projeto de lei anual, tratando da reposição do poder aquisitivo do subsídio do servidor público, deriva do próprio texto constitucional.
Porém, apesar da iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo, o Sr. Presidente da República continuou inerte no tocante à matéria, ignorando o novo preceito constitucional. Tal inércia viria a ser sanada somente com o advento da Lei nº 10.331/2001, a qual regulamentou o artigo 37, X, da Constituição Federal, isto é, dispôs sobre a revisão geral e anual da remuneração e subsídio dos servidores públicos federais dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário da União, das Autarquias e Fundações Públicas Federais.
Ocorre que, durante o inegável e representativo lapso temporal existente entre o advento da Emenda Constitucional nº 19, de 1998, e a posterior regulamentação pela Lei nº 10.331, de 2001, os servidores que seriam beneficiados por tais revisões viram seu direito constitucionalmente garantido ser desrespeitado, fato este que lhes gerou considerável prejuízo financeiro.
Desta forma, buscaram, através de associações ou de iniciativas individuais, a tutela jurisdicional do Estado-juiz, ingressando com inúmeras ações objetivando, através de indenizações por danos morais e materiais, a recomposição das perdas que sofreram em decorrência do descaso do poder público.
O presente trabalho busca, através de estudos de nosso ordenamento jurídico, da doutrina pátria especializada e da jurisprudência dos Tribunais responsáveis pelo julgamento de tal matéria, analisar o posicionamento da comunidade jurídica nacional diante de tais ações. É nossa intenção, portanto, observar como os aplicadores do Direito se colocam diante de um tema ainda pouco desenvolvido por nossos juristas que seria a responsabilidade civil do Estado diante de omissão legislativa por parte do poder público, focados, principalmente, sobre a temática da revisão geral anual dos servidores públicos.
Assim, a Emenda Constitucional nº 19, de 04 de junho de 1998, entre outras modificações, alterou o teor do inciso X, do artigo 37, da Constituição da República, inserindo a obrigatoriedade de revisão geral anual da remuneração dos servidores da União, determinando, ainda, segundo o entendimento majoritário, que esta fosse fixada ou alterada por lei específica, observada a competência privativa em cada caso.
Ocorre que, durante o inegável e representativo lapso temporal existente entre o advento da Emenda Constitucional nº 19, de 1998, e a posterior regulamentação pela Lei nº 10.331, de 2001, os servidores que seriam beneficiados por tais revisões viram seu direito constitucionalmente garantido ser desrespeitado, fato este que lhes gerou considerável prejuízo financeiro.
Nessa linha de raciocínio, nesta pesquisa, buscamos analisar o posicionamento da comunidade jurídica nacional diante de um tema ainda pouco desenvolvido por nossos juristas que seria a responsabilidade civil do Estado diante de omissão legislativa por parte do poder público, focados, principalmente, sobre a temática da revisão geral anual dos servidores públicos.
Inicialmente, traçamos uma sintética análise sobre a evolução da responsabilidade civil do Estado no Direito brasileiro. Em breves linhas, restaram demonstradas as diversas alterações operadas no ordenamento jurídico pátrio, as quais culminaram no modelo atual, onde se verifica que, nos dispositivos constitucional e legal em vigor, estão compreendidas duas regras: a da responsabilidade objetiva do Estado e a da responsabilidade subjetiva do funcionário, em regra, em ação regressiva.
Ademais, adentrando especificamente a questão da responsabilidade civil do Estado por omissão legislativa, foi indagado se a ausência de produção legislativa poderia gerar a responsabilização civil do Estado. Tal questionamento foi positivamente respondido, sendo certo que, em casos de omissão própria, ou seja, quando existe um dever jurídico de produzir a lei, como ocorre, por exemplo, no dispositivo constitucional ora analisado, a omissão representará uma infração à ordem jurídica, gerando obrigação de indenizar.
Neste sentido, foram apresentados precedentes do Supremo Tribunal Federal e da Corte das Comunidades Européias, afirmando a possibilidade de a omissão legislativa acarretar a responsabilidade patrimonial do Estado.
Prosseguindo a construção textual, buscou-se demonstrar o verdadeiro conteúdo da revisão geral anual dos servidores públicos. Após discussão sobre as principais controvérsias que circundam o tema, conceituamos a revisão geral anual dos servidores públicos como um instituto constitucionalmente previsto, o qual atua como verdadeira correção monetária, restabelecendo o status quo ante, através da recomposição das perdas inflacionárias. Tal instituto requer lei específica, a ser desencadeada anualmente pelo Presidente da República, e prévia dotação orçamentária, atingindo a todos os servidores indistintamente e recompondo o valor real dos respectivos vencimentos.
Invadindo o tema propriamente dito, observou-se intensa divergência jurisprudencial acerca do cabimento do pleito indenizatório a título de danos materiais. Nos posicionamos favoravelmente a tal pretensão, tendo em vista a presença dos elementos nucleares da responsabilidade civil, quais sejam, conduta (omissiva, no caso em tela), dano e nexo de causalidade. Além disto, tal entendimento se encontra respaldado por ideais basilares da ciência jurídica, como a busca pela efetividade constitucional e a vedação ao enriquecimento sem causa.
Cumpre observar que, na presente hipótese, o Judiciário não estaria substituindo a função do legislador, nem tampouco usurpando a competência exclusiva do Presidente da República para iniciar o processo legislativo referente ao aumento da remuneração dos servidores públicos. Simplesmente, estaria este cuidando de apreciar lesão causada ao poder aquisitivo dos servidores em face de reiterada omissão dos demais Poderes de cumprirem imperativo de ordem constitucional.
A atuação voltada para reparar o dano configura justamente a tentativa de dar efetividade ao sistema de freios e contrapesos que deve permear a atuação dos três Poderes da República, o qual se justifica não somente pela necessidade de frear os abusos que, eventualmente, possam ser cometidos por um dos Poderes em face dos demais, senão também para evitar omissões no tratamento dos direitos e das garantias fundamentais dos cidadãos, como a constatada na situação em apreço.
Ademais, este entendimento não afronta o enunciado nº 339, das súmulas do Supremo Tribunal Federal, uma vez que por aumento se entende determinado acréscimo que irá se agregar definitivamente ao subsídio percebido mensalmente, enquanto que a indenização se apresenta como uma prestação independente, isto é, que não se incluiria na remuneração mensal, mas sim se realizaria de maneira autônoma e estritamente dentro dos limites do dano causado.
Destaque-se que a indenização em questão deve ser quantificada de acordo com o INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor), sendo respeitada a prescrição qüinqüenal prevista no Decreto nº 20.910/32.
Por fim, abordando a questão envolvendo o ressarcimento a título de danos morais, corroboramos o entendimento praticamente unânime dos Tribunais. O dano moral, à luz da ordem constitucional vigente, nada mais é do que violação do direito à dignidade. Contudo, tal critério se apresenta deveras subjetivo, tornando a configuração do dano moral, ainda, uma questão extremamente tormentosa para a doutrina e para a jurisprudência. Logo, se torna mais necessária a observância das regras da boa prudência, da razoabilidade e da criteriosa ponderação das realidades da vida, devendo ser trilhada a lógica do razoável, em busca da concepção ético-jurídica dominante na sociedade.
Neste sentido, entendemos que o simples prejuízo econômico, conforme o sentido pelos servidores em relação à perda do poder aquisitivo da moeda, em virtude da mora legislativa quanto à revisão anual de vencimentos do funcionalismo público, não configura, por si só, o dano moral, pois não agride a dignidade humana. Os eventuais aborrecimentos dele decorrentes ficam subsumidos pelo dano material que consideramos existente, salvo se os efeitos do inadimplemento, por sua natureza ou gravidade, exorbitarem o aborrecimento normalmente decorrente de uma perda patrimonial e também repercutirem na esfera da dignidade da vítima, quando, então, configurarão o dano moral.
Do exposto, concluímos, portanto, que os servidores prejudicados pelo vácuo legislativo existente entre o advento da Emenda Constitucional nº 19 e a posterior regulamentação da matéria, ocorrida pela Lei nº 10.331/01, devem ser ressarcidos dos danos materiais existentes, não havendo, contudo, em regra, que se falar em danos morais.
[1] Moraes, Alexandre. Direito Constitucional. 14ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2003, p. 334.
terça-feira, 6 de novembro de 2007
Os penduricalhos do Supremo Tribunal Federal
Supremocracia: vícios e virtudes republicanas
Por Oscar V. Vieira
06/11/2007
Difícil pensar um tema relevante em nossa vida política que não venha a
exigir, mais dia menos dia, a intervenção do STF: troca-troca de
partidos, cláusula de barreira partidária, julgamento de altas
autoridades (vide Collor e mensalão), limites de atuação das CPIs, do
Ministério Público e do Conselho Nacional de Justiça, sessões secretas
do Senado, direito de greve dos servidores públicos, guerra fiscal,
aposentadorias de governadores, reforma administrativa, previdenciária
e do próprio Judiciário, pesquisa com células-tronco, quotas nas
universidades, desarmamento, distribuição de medicamentos, aborto,
direito adquirido - sem falar em milhares de habeas corpus, como o
concedido para Salvatore Cacciola. Tudo parece exigir uma última
palavra do STF. Se por um lado isto demonstra a grande fortaleza desta
instituição, por outro é sintoma de uma forte crise, para não dizer
degradação, de nosso sistema democrático, que hoje depende deste novo
"Poder Moderador" para funcionar.
Múltiplas são as razões para esta proeminência do STF em nosso
sistema político. A primeira delas decorre da própria ambição da
Constituição de 1988 que, corretamente desconfiada do legislador, sobre
tudo legislou. O efeito colateral do compromisso maximizador assumido
pelo texto de 1988, no entanto, foi a criação de uma enorme esfera de
tensão constitucional. A equação é simples: se tudo é matéria
constitucional, o campo de liberdade dado ao corpo político é muito
pequeno. Assim, qualquer movimento mais brusco gera um incidente de
inconstitucionalidade e, conseqüentemente, a judicialização de uma
contenda política.
A segunda razão está ligada à própria arquitetura do STF. A
Constituição de 1988 conferiu ao STF amplos poderes de guardião
constitucional. Ao Tribunal foram atribuídas funções que na maioria das
democracias contemporâneas estão divididas em pelo menos três tipos de
instituições: tribunais constitucionais, foros judiciais especializados
e cortes de última instância.
Na condição de tribunal constitucional, o STF tem por obrigação julgar
ações diretas voltadas a verificar a constitucionalidade de leis e atos
normativos produzidos pela esfera federal e estadual, assim como
apreciar a omissão dos poderes Legislativo e Executivo na implementação
de programas ou diretrizes constitucionais. Dada a total falta de
cerimônia de nossos políticos em agredir a Constituição, o STF tem sido
obrigado a declarar inconstitucionais cerca de três quartos de todas
leis a ele submetidas. Mais recentemente tem substituído o legislador
omisso, criando novas regras para o nosso sistema político. Isto
demonstra a enorme fragilidade das instituições de representação
política, o que certamente não é um bom sinal.
No exercício da função de foro especializado, o Tribunal foi
colocado em uma delicada posição. Em primeiro lugar cumpre-lhe julgar
criminalmente altas autoridades. Em função da elevada taxa de
criminalidade no escalão superior de nossa triste República, o Supremo
passou a agir como juízo de primeira instância, como vimos no caso da
recém-aceitação da denúncia contra os mensaleiros. Só para ter uma
dimensão do problema, há mais de 250 denúncias contra políticos
aguardando manifestação do Supremo. O Tribunal não está equipado para
isto e mesmo que estivesse, seu escasso tempo seria consumido em
intermináveis instruções criminais, desviando-o de suas
responsabilidades essenciais. A segunda pedra no caminho do STF é ter
que apreciar, às vezes em caráter imediato, como ocorreu no caso Renan
Calheiros, atos secundários do parlamento. Desconheço qualquer outro
tribunal supremo do mundo que faça plantão judiciário para solucionar
quizílias que os parlamentares não são capazes de resolver por si
mesmos, de maneira racional e compatível com a Constituição.
Por fim, o STF serve como última instância judicial, revisando
centenas de milhares de casos resolvidos pelos tribunais inferiores,
todos os anos. De 1988 para cá, foram mais de um milhão de recursos
extraordinários e agravos de instrumento apreciados por 11 juízes, isto
sem falar nos milhares de habeas corpus, pedidos de extradição e outros
processos que chegam ao protocolo do Tribunal todos os dias. Além de
desumano com os ministros, é absolutamente irracional fazer com que
milhões de jurisdicionados fiquem aguardando uma decisão do Tribunal,
enquanto seus devedores se beneficiam da demora na solução destes
casos. Desnecessário dizer que o maior beneficiário deste sistema
irracional é o próprio Estado brasileiro. Neste sentido, a argüição de
repercussão geral e a própria súmula vinculante, se bem empregadas,
podem contribuir para desanuviar o Tribunal.
A questão fundamental é saber até quando o STF poderá suportar esta
enorme pressão decorrente da incapacidade de nosso sistema político de
deliberar dentro de parâmetros legais e racionais. Como a função de
interpretar a Constituição é em grande medida política, dada as
ambigüidades e a alta carga de valores morais abrigada pelo texto
constitucional, corre-se o risco de um processo de fadiga, que leve ao
esgarçamento da preciosa autoridade do STF. Não há aqui nenhuma
sugestão de que o Supremo deva abster-se num momento como este. Antes o
contrário: é momento de resistir. Mas certamente deve o Tribunal ser
desonerado, no futuro, de inúmeras funções que podem ser absorvidas por
outras instâncias judiciais. O fim do foro privilegiado, a
transferência de competências recursais, a eliminação do varejo de
liminares e habeas corpus, entre outras medidas, poderiam contribuir
para preservar a autoridade do STF. É uma ilusão achar que as virtudes
do STF possam suprir ilimitadamente os vícios da participação política.
Ainda que isto fosse possível, seria desejável?
Oscar Vilhena Vieira, professor de Direito Constitucional da Escola
de Direito da Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, onde coordena o
Programa de Pós- Graduação em Direito e Desenvolvimento; diretor
jurídico da organização Conectas Direitos Humanos; mestre em direito
pela Universidade de Columbia, Nova York, e doutor em Ciência Política
pela Universidade de São Paulo; autor de "Direitos Fundamentais: uma da
jurisprudência do STF", Malheiros editores, 2006.
O ativismo judicial versus o formalismo jurídico
STF decide se deve julgar Cunha Lima
Valor Econômico
06/11/2007 08:44
BRASÍLIA - O Supremo Tribunal Federal (STF) deverá julgar o ex-deputado, ex-senador
e ex-governador da Paraíba Ronaldo Cunha Lima (PSDB) por tentativa de homicídio,
mesmo depois de ele ter renunciado ao seu último mandato na Câmara dos Deputados
para perder o foro privilegiado e, com isso, evitar a realização do julgamento pela
Corte.
Ontem, quatro ministros do STF (Joaquim Barbosa, Cezar Peluso, Carlos Ayres Britto e
Eros Grau) manifestaram-se a favor da realização do julgamento, mesmo após a
renúncia de Cunha Lima. Eles consideraram que o então deputado quis " driblar " o
STF com a sua renúncia, anunciada na quarta-feira, às vésperas de o Supremo
julgá-lo.
O Supremo só não iniciou o julgamento de Cunha Lima ontem porque a ministra Cármen
Lúcia Antunes Rocha pediu vista do processo para examinar melhor a questão. Ao pedir
vista, a ministra quis dar tempo para que outros ministros possam se manifestar
sobre esta que será mais uma tese inovadora no STF. Ontem, a Corte não contava com
cinco de seus onze integrantes. Celso de Mello, Marco Aurélio Mello, Gilmar Mendes,
Ricardo Lewandowski e Menezes Direito estavam ausentes. A presidente do tribunal,
ministra Ellen Gracie, concordou com o adiamento: " Será oportuno para ouvirmos os
demais colegas " .
O novo avanço do STF será o de considerar que: nenhum político detentor de mandato
eletivo poderá renunciar, se iniciado o processo contra ele no Supremo, para perder
o foro privilegiado e, com isso, evitar o julgamento pela Corte, tendo seu processo
adiado. O assunto está sendo discutido pelo STF dentro de um contexto maior. O
tribunal tem demonstrado em suas últimas decisões que não pretende mais tolerar
abusos da classe política, nem omissões por parte do Congresso Nacional.
Essa tendência, que vem sendo definida nos meios jurídicos como um ativismo judicial
do STF, foi deflagrada no julgamento do mensalão, realizado no final de agosto
passado, quando o tribunal transformou os 40 indiciados em réus e, com isso, se
afirmou contra a impunidade na classe política. Em outubro, o STF definiu, no
julgamento da fidelidade partidária, que os parlamentares que trocarem de partido
estão sujeitos à perda de seus mandatos, numa interpretação inovadora da legislação.
Foi um freio do STF ao troca-troca partidário e uma alteração à regra que prevalecia
até então, permitindo as constantes mudanças de legenda. E, na semana passada, o
Supremo tomou uma decisão também inovadora ao decidir que o funcionalismo deve
seguir, em suas greves, a legislação imposta ao setor privado. Nessa última decisão,
os ministros não apenas criticaram o fato de o Congresso não ter aprovado lei para
regulamentar a greve no setor público, como indicaram qual lei deve ser aplicada.
Agora, no caso de Ronaldo Cunha Lima, os ministros deverão passar por cima da
renúncia dele e julgá-lo.
Antes dessa fase, a tendência no STF era a de considerar que, se a autoridade
renunciasse ao mandato, perderia, com isso, o foro privilegiado e o seu processo
iria para a 1ª instância da Justiça. Mas, os quatro ministros que votaram ontem
foram além e reconheceram na renúncia de Cunha Lima a intenção de evitar o
julgamento. " Essa renúncia teve como objetivo exclusivo impedir que a jurisdição
deste tribunal se exercesse " , acusou o ministro Joaquim Barbosa, relator da ação
penal contra o ex-deputado.
Barbosa lembrou que o processo tramita há 14 anos. Cunha Lima atirou em seu
adversário político na Paraíba, o também ex-governador do Estado, Tarcísio Buriti,
em 5 de dezembro de 1993, num restaurante em João Pessoa. Na época, ele era
governador e tinha direito a foro privilegiado no Superior Tribunal de Justiça. Em
1994, Cunha Lima foi eleito senador e, a partir de 1995, quando tomou posse, passou
a ter foro no STF. Mas, na época, era preciso autorização do Senado para que ele
fosse processado. O Senado negou essa autorização em 1999. Só que, em 2001, o
Congresso aprovou emenda retirando essa necessidade de autorização. Com isso, o
processo chegou ao STF em 2002. Barbosa marcou a data do julgamento para ontem, mas
Cunha Lima renunciou cinco dias antes, na tentativa de fazer com que o caso voltasse
à 1ª instância, onde seria reiniciado na Justiça da Paraíba e demoraria mais 15 anos
para chegar a uma sentença final.
Ontem, Barbosa defendeu que o STF fizesse uma analogia ao que acontece no Congresso.
Lá, uma vez iniciado o processo de cassação de mandato, o parlamentar não pode mais
renunciar. A proposta foi aceita pelos três ministros que votaram ontem.
" Acho que a renúncia, na circunstância em que se deu, às vésperas do julgamento,
propõe um problema de ordem jurídico a esta Corte " , apontou o ministro Cezar
Peluso. Ele explicou que o deputado tem o direito a renunciar, mas que não poderia
fazê-lo para evitar a realização de um julgamento. Se o fizer, a renúncia adquire,
segundo Peluso, um " caráter de fraude " . " A ordem jurídica não pressupõe que se
possa dela fazer uso para fraudar o exercício da jurisdição do STF " , completou o
ministro Eros Grau.
Carlos Britto enfatizou que se, no Congresso, o parlamentar não pode renunciar após
iniciado o processo de cassação de seu mandato, então, também não poderia fazê-lo
para evitar o julgamento no Supremo. " A renúncia não valeria para obstruir o
exercício da competência da Suprema Corte do país " , afirmou Britto.
Mesmo pedindo vista, Cármen Lúcia também criticou o fato de Cunha Lima usar uma
formalidade da lei - a possibilidade de renúncia - para atentar contra o seu
espírito, contrário à impunidade. " A letra formal, isolada da lei poderia levar a
um resultado oposto ao que quer a Constituição. " O julgamento deverá ser retomado
amanhã.
segunda-feira, 5 de novembro de 2007
Editorial do Jornal Folha de São Paulo e o Ativismo Judiciário
Ativismo judiciário
Dentro de sua atribuição, Supremo muda atitude e passa a intervir mais na sociedade
e a suprir a omissão do Legislativo
NO ESPAÇO de poucas semanas, o Supremo Tribunal Federal (STF) ganhou manchetes ao
tomar decisões polêmicas que implicaram a criação de regras não-explícitas na
legislação. A primeira foi o estabelecimento da fidelidade partidária. Agora a corte
impôs limites às greves de servidores públicos. Outras decisões do mesmo tipo podem
estar a caminho.
Esse novo ativismo judiciário contrasta com a história da corte. Até recentemente,
quando se deparava com a ausência de norma jurídica, o STF limitava-se a declarar a
omissão do Legislativo, sem definir regras.
Embora grupos conservadores torçam o nariz, essa não é uma tarefa estranha ao
Judiciário. Interpretar já é em alguma medida reescrever a lei. No mais, a
jurisprudência constitui em todos os sistemas judiciais do Ocidente fonte legítima
de inovação.
No caso específico do ordenamento jurídico brasileiro, o inciso LXXI do artigo 5º da
Constituição estabelece: "Conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de
norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades
constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à
cidadania".
Tal mecanismo, importado do direito anglo-saxão, que permite a magistrados criar
normas provisórias quando o Legislativo deixa de fazê-lo, chegou a ser apontado como
uma das grandes novidades da Carta de 88. Na prática, porém, muito por timidez das
cortes superiores, o mandado de injunção vinha sendo utilizado com parcimônia.
Mas a decisão do Supremo sobre a greve de servidores ocorreu no curso de um pedido
de injunção. Tramitam no STF 53 dessas ações. Em breve deverão ser julgados o aviso
prévio superior a 30 dias e a aposentadoria especial de servidores, para os quais
faltam normas legais.
A nova atitude da corte tem origem política. Além de ter passado por grande
renovação -nos últimos cinco anos, o presidente Lula indicou 7 dos 11 ministros-,
consolidou-se na sociedade a percepção de que o Legislativo se furta à sua
responsabilidade de produzir leis. De fato. Passados 19 anos da promulgação da
Carta, que exige a regulamentação do direito de greve de servidores, o Congresso não
o fez.
Como a sociedade não pode funcionar sem determinadas normas, o vácuo legal começa a
ser preenchido pelo Supremo -o que é em princípio positivo. A concorrência tende a
pôr o Legislativo para trabalhar.
Daí não segue que as decisões das cortes serão sempre consonantes com os anseios da
população -o Judiciário não é um Poder eleito. Há até mesmo o risco de o ativismo do
STF contaminar outras cortes e produzir monstrengos como a decisão da Justiça
Eleitoral fluminense de vetar candidatos vagamente acusados de "crimes graves" no
pleito do ano que vem.
Diga-se, a propósito, que o excesso de declarações públicas sobre todo e qualquer
assunto por parte de alguns magistrados não contribui para que se crie o clima
adequado a uma Justiça mais ativa. Se a corte máxima está falando com mais ímpeto
nos autos, deveria redobrar o cuidado e portar-se com maior continência fora deles.