sábado, 27 de outubro de 2007

A Revolução Silencionsa no Supremo Tribunal Federal

Dentro da perspectiva de compreendermos a redefinição da Jurisdição Constitucional em nossos dias o Jornal O Valor no dia 18 de outubro de 2007 publicou essa entrevista abaixo com o Ministro Gilmar Ferreira Mendes sob o título "A Revolução Silenciosan no Supremo Tribunal Federal"
Valor Econômico
18/10/2007
Em 24 de março de 2004, antes mesmo da promulgação da Emenda
Constitucional nº 45, em 8 de dezembro, que implementou a reforma do Judiciário, uma
decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) chamou a atenção pelo seu ineditismo
jurídico -
a despeito da grande repercussão política do caso. Os ministros da corte entenderam
que era preciso limitar o número de vereadores das câmaras municipais a partir de um
critério de proporcionalidade. O julgamento foi provocado por uma ação do Ministério
Público contra o município de Mira Estrela, no interior de São Paulo, que havia
aprovado uma lei aumentando o
número de vereadores. O que estava em jogo era a interpretação da Constituição
Federal e de suas emendas - tradicional papel do Supremo. A inovação veio quando os
ministros decidiram fixar o critério de proporcionalidade a ser aplicado -
legislando, portanto, no vácuo legal - e definir que a regra
valeria a partir da próxima legislatura - fixando, assim, uma data para a validade
da decisão.
Estavam lançadas as bases para o início da aplicação de dois
dispositivos inéditos na mais alta corte do país - que mais tarde passaram a ser
chamados de "sentença de perfil aditivo" e "modulação de efeitos da decisão". Pela
sentença de perfil aditivo, o Supremo extrapola sua função de guardião da
Constituição para regulamentar dispositivos que nela ainda estão em aberto.Pela
modulação de efeitos, impede a retroação da decisão e um possível caos
jurídico-institucional que isto poderia causar.
Veio a reforma do Judiciário e os holofotes se voltaram a dois dos novos
dispositivos por ela criados: a súmula vinculante e o critério de repercussão geral,
que objetivam contribuir para que o Supremo se transforme em uma corte
verdadeiramente constitucional ao replicar suas decisões a processos
repetitivos, que se multiplicam aos milhares no Judiciário, e reduzir o número de
ações por ela julgadas.
Internamente, no entanto, uma revolução silenciosa começou a ser desenhada no
Supremo. Em casos de repercussão julgados no pleno, os ministros passaram a debater
a aplicação dos dois novos mecanismos, somados a outros que surgiram ao longo do
tempo (veja quadro acima). Em comum, eles têm o fato de garantir maior eficácia às
suas decisões, economia processual ao Judiciário e segurança jurídica às partes
diante das constantes alterações na jurisprudência. Em comum, eles têm também o
ministro Gilmar Mendes.
Autor ou co-autor da maioria das inovações em curso no Supremo - e defensor de todas
-, o mato-grossense Gilmar Ferreira Mendes é um estudioso do chamado "controle de
constitucionalidade" no direito comparado desde muito antes de
assumir o cargo de ministro da corte, em junho de 2002. É apontado como conservador
e governista, em parte por ter atuado junto à Presidência da República e à Casa
Civil nos anos 90 e de ter estado à frente da Advocacia-Geral da União (AGU) de 2000
a 2002. Mas também por levar em conta, em seus votos, os efeitos práticos das
decisões do Supremo, em especial nos casos que envolvem o governo. Em maio de 2008,
Gilmar Mendes, que concedeu a seguinte entrevista ao Valor, assume a presidência do
Supremo em substituição à ministra Ellen Gracie.
Valor: Há vários novos mecanismos em discussão ou adotados de forma inédita no
Supremo que podem ter impacto em termos de celeridade processual e efetividade das
decisões - impacto até maior do que a reforma do Judiciário. De onde surgiram estas
novidades?
Gilmar Mendes: Nós temos uma reengenharia institucional do Poder Judiciário que vem
se fazendo de forma complexa, também com um diálogo entre o legislador e o
Judiciário. A lei da ação direta de inconstitucionalidade (Adin) - a Lei
nº 9.868, que trata também da ação declaratória de constitucionalidade
(ADC) - produziu mecanismos bastante modernos no que concerne à prática de uma
jurisdição constitucional. Ela introduziu o artigo 27, que permite a modulação dos
efeitos de decisões judiciais e a possibilidade de haver audiências
públicas para que o tribunal se informe sobre os fatos legislativos - e isto já
ocorreu no caso do uso de células-tronco de embriões em pesquisas. E introduziu
também a possibilidade, até então vedada, de participação de
terceiros interessados - o chamado "amicus curiae" -, que vem dando uma coloração
bastante plural ao processo constitucional.
Valor: Estes dois mecanismos vêm sendo bastante usados?
Mendes: Vêm sendo muito usados e com reflexos inclusive nos
processos do chamado controle incidental de constitucionalidade (sobre um fato
concreto), e não apenas no controle abstrato (por uma ação própria, como a Adin). No
Supremo, ocorreu uma situação interessante. A primeira vez que a modulação de
efeitos foi usada, não se tratava de um processo em Adin. Foi o caso da redução do
número de vereadores nas câmaras municipais, em que o tribunal
entendeu que deveria estabelecer uma orientação no sentido de reduzir o número de
vereadores, mas que esta decisão impactaria as câmaras de forma bastante radical,
porque retiraria dois, três vereadores de uma câmara, com
conseqüências inclusive no processo legislativo e em discussões sobre se determinada
lei que foi votada com o auxílio daqueles vereadores seria válida ou não. Então o
tribunal optou por declarar a inconstitucionalidade no caso,
mas aplicá-la somente para a próxima legislatura, em função destes impactos. O
segundo caso em que a modulação foi aplicada foi o da progressão de regime de pena
em crime hediondo, quando a situação era outra: o tribunal havia
declarado a lei como constitucional. E agora, com uma nova composição, entendeu que
a lei é inconstitucional. Se o tribunal nada dissesse provavelmente teríamos um
número infindável de pleitos de caráter indenizatório: pessoas que diriam que
cumpriram pena em regime integralmente fechado porque não fora contemplada a
inconstitucionalidade da não-progressão de pena. Então optou por dizer que ele
estava certo à época em que declarou a lei constitucional, e que estava certo agora,
quando declarou a lei inconstitucional, e portanto não permitiu a retroação da
decisão.
Valor: Esta é uma questão bastante discutida na área tributária: a análise dos
efeitos das decisões pelo Supremo. Por que o tribunal começou, de repente, a pensar
nestes efeitos, buscando uma saída prática?
Mendes: Nós trabalhávamos com uma idéia básica, que é uma ficção, de muitos modelos
de jurisdição constitucional, de que a lei inconstitucional há de ser considerada
nula. Na prática sabemos que as coisas não se passam bem assim e que é muito difícil
fazer esta depuração total, que o próprio sistema cria
mecanismos de proteção dos atos já realizados, da coisa julgada, da prescrição e da
decadência, que surgem muito em matéria tributária. Portanto, a retroação nunca se
deu de forma absoluta. O tribunal está, portanto, obrigado a fazer
esta ponderação em vários casos. E em vários casos ela é fundamental, sob pena de
não se viabilizar sequer a declaração de inconstitucionalidade. Se se tiver que
provocar um caos jurídico ou uma hecatombe econômica, muito provavelmente
o tribunal poderia fingir que a lei é constitucional, porque não quer assumir as
conseqüências de uma decisão em sentido contrário. Se nós pensarmos isso em
perspectiva histórica, sana-se o problema para o futuro, ainda que contemple-se os
efeitos verificados no passado. Em questões tributárias, isto
ocorre no mundo todo. A amplitude da jurisdição constitucional brasileira - talvez a
mais ampla do mundo - com tantas possibilidades de provocação, torna quase
inevitável a modulação de efeitos, sob pena de a toda hora nós podermos
produzir impasses institucionais.
Valor: A modulação começou a ser usada recentemente. Ela está ligada à mudança de
composição do Supremo ou a uma evolução do tribunal no sentido de passar a pensar no
impacto de suas decisões?
Mendes: É preciso analisar o conjunto da obra. Já na constituinte de 1988
discutiu-se a introdução de um dispositivo semelhante ao do artigo 27 da lei da
Adin. Isto não ocorreu e o tribunal, depois disso, decidiu vários casos em
que contemplou os efeitos das decisões, mas acabou mantendo o princípio da nulidade.
Aí veio o artigo 27 da lei da Adin e, a partir daí, o tribunal passou a enfrentar os
vários casos. De um lado, a própria iniciativa legislativa contribui para esta nova
reflexão. De outro, a nova composição e o novo pensamento que passou a imperar no
tribunal, e esta noção específica de
responsabilidade institucional da corte quanto à eficácia de suas decisões. Declarar
que é constitucional a demissão de funcionário público sem concurso é fácil, mas
dizer que isto vai envolver a dispensa de centenas de servidores e
desestruturar o serviço público é muito mais difícil. Esta nova técnica da modulação
hoje está pacificada.
Valor: Foi pacificada no caso da fidelidade partidária?
Para que se profira a decisão de caráter cassatório, tem que se
produzir uma lei até que venha a futura"
Mendes: A fidelidade partidária é uma outra técnica que também o tribunal vem
desenvolvendo e que já se manifestou de alguma forma no julgamento iniciado da greve
dos servidores públicos e no caso dos vereadores, que eu tenho chamado de sentenças
de perfil aditivo - em que o tribunal rompe um pouco com a
postura que tradicionalmente chamávamos de legislador negativo e passa a ser também,
ainda que provisoriamente, um legislador positivo, permitindo uma regulação
provisória de uma dada situação que reclama disciplina normativa ou regulação. No
caso das câmaras, o tribunal, de alguma forma, já avançou para
este aspecto ao concitar o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a fixar o número de
vereadores para a legislatura seguinte. E agora, no caso da fidelidade partidária,
não se limitou a fixar a fidelidade, mas criou um procedimento para sua aferição no
âmbito do TSE, indicando as bases deste procedimento. É uma típica sentença de
perfil aditivo.
Valor: É legislar?
Mendes: Ou regular, o nome que você queira dar.
Valor: Mas não está na competência do Supremo legislar, sua
competência é julgar. Por que o Judiciário está legislando?
Mendes: A gente não pode ver este tema por uma perspectiva isolada e nem fora do
contexto do direito comparado. Esta é uma prática hoje vigente na jurisdição
constitucional no mundo. Não se trata de uma invenção brasileira. É
uma tendência. Em geral estas atuações se dão em contextos de eventual faltas,
lacunas ou omissões do próprio legislador. Ou às vezes em um certo estado de
necessidade. A declaração de inconstitucionalidade reclama uma regulação provisória.
Para que se profira a decisão de caráter cassatório, tem que se
produzir também uma lei para que se faça a transição entre o passado e o presente e
regule o presente eventualmente, até que venha a legislação futura. Pode se
perguntar se esta atitude pode ser banalizada. Eu diria que não,mas é
um dado inevitável do novo contexto institucional que experimentamos.
Valor: Quando o sr. fala que é uma tendência no mundo, está se
referindo a que países? Que experiências existem neste sentido?
Mendes: O das cortes constitucionais alemã, italiana e espanhola. Os italianos
produziram ao longo do tempo essas chamadas sentenças atípicas, ou sentenças de
perfil manipulativo ou aditivo - como é a situação que o tribunal está a desenhar no
caso do julgamento sobre o direito de greve do servidor público, que é uma situação
muito específica. O que se tem hoje é a possibilidade de regular isto mandando
aplicar a lei de greve; uma omissão continuada do Poder
Legislativo; e a existência de greve, dentro de um quadro de lei da selva!
Este contexto tem levado o tribunal a fazer estas intervenções minimalistas.
Valor: Todas essas inovações no Supremo acompanham uma recente
alteração na jurisprudência da corte. O sr. diria que o tribunal era mais
conservador e hoje, com a nova composição, é mais liberal? Mudanças de
jurisprudência diante
de novas composições são comuns em outras cortes constitucionais?
Mendes: Tenho a impressão de que muitas questões já estavam em
curso. Não podemos esquecer que um voto vencido é um germe eventual de uma mudança
da jurisprudência. Também não podemos perder de vista que o modelo constitucional
brasileiro passou por uma verdadeira revolução sobre a Constituição de 1988.
Isto mudou o perfil do próprio processo constitucional como um todo e a corte foi
percebendo este novo contexto. A nova composição do Supremo acaba por concluir este
processo e a perceber a necessidade de introdução destas inovações. Hoje não conheço
nenhuma corte de perfil constitucional no mundo
que não pratique a modulação de efeitos. Nós éramos, até aqui, entre as jurisdições
constitucionais importantes, talvez o único tribunal que não a conhecia.
Valor: Muitas destas inovações foram levadas pelo sr. ao Supremo. Há um trabalho de
convencimento dos ministros para discuti-las?
Mendes: Não se trata de um trabalho pessoal ou individual. Há algum tempo estudo
este tema, antes mesmo de ser juiz da corte, onde passei a sustentar estas posições.
Mas houve também dificuldade no tribunal. A própria constitucionalidade da lei da
Adin teve parte de sua regulação questionada -
como o artigo 27, que o tribunal já vem aplicando, mas que tem uma argüição de
inconstitucionalidade pendente, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Hoje se
percebe que isto é um instrumento universal, que interessa a todos. Por ironia, a
própria OAB pode vir a pedir a modulação no caso da Cofins dos
prestadores de serviço, o que mostra que tudo depende de como as pessoas estão no
filme. A modulação não é um instrumento de um dos lados da controvérsia, é um
instrumento universal da jurisdição constitucional. Acredito que hoje a nova
composição do Supremo é mais aberta a essas inovações menos formalistas.
Valor: Como no caso da adoção do efeito vinculante imediato, que o sr. sugeriu?
Mendes: Propus que nós encerrássemos esta fórmula vetusta, a meu ver, da suspensão
de execução da lei inconstitucional pelo Senado. No controle incidental, o Supremo
comunica a decisão ao Senado e o Senado suspende a parte considerada
inconstitucional da lei - e aí sim, a decisão passa a valer para todos. Esta foi uma
fórmula engenhosa adotada em 1934, mas que está totalmente ultrapassada no atual
contexto constitucional, em que uma cautelar em Adin tem eficácia "erga omnes"
(validade para todos) e uma decisão do pleno do Supremo,
às vezes por unanimidade, depois de anos de tramitação do recurso extraordinário e
do processo na Justiça, não tem. Sugeri que nós passássemos a adotar a idéia de que
ao Senado só cabe publicar a decisão, mas que ela valeria a partir da declaração de
inconstitucionalidade do Supremo.
Valor: O sr. assume a presidência do Supremo em maio do ano que vem.
Já tem alguma proposta de mudar regras internas?
Mendes: Já há vários estudos em andamento e uma reforma regimental já está sendo
discutida na gestão da ministra Ellen Gracie. Este é um processo que terá
continuidade.

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