sábado, 27 de outubro de 2007
A política de facção do Poder Judiciário
A política de facção do Poder Judiciário
Wanderley Guilherme dos Santos. Valor Econômico. São Paulo: Oct 26, 2007.
A resolução de conflitos por via judiciária antes que parlamentar constitui a essência do que vem sendo considerada a judicialização da política. Legítima área de investigação, requer, por completude, reflexão sobre seu complemento: a politização da Justiça. As dimensões jurídicas e políticas dos conflitos são entrelaçadas o suficiente para só permitir que se destaquem umas das outras para efeitos de análise, não de conseqüências. Forçar a mão equivaleria, em um atropelamento, imaginar que existam aspectos policiais irrelevantes em suas complicações médicas e vice-versa. Às vezes, um ato jurídico produz efeitos de potente trombada política, e não menos vice e versa.
A consagrada classificação sintática das políticas em distributivas, regulatórias e redistributivas ajuda, mediante conveniente tradução semântica, a revelar o denominador comum do jurídico e do político. Resoluções jurídicas e políticas distributivas são aquelas em que há alocação de bens sem exclusão ou extorsão de terceiros - a instalação de fontes de água saudável em diversos logradouros, por exemplo, não pressupõe o confisco sistemático dos recursos de nenhum grupo, nem a instalação em um logradouro exclui a possibilidade de repeti-la em outros. Regulatórias seriam as que alocam bens e valores sem retirá-los sistematicamente de ninguém, mas excluindo terceiros de seus benefícios; por exemplo, a concessão de licença para a prestação de serviço público, antes inexistente, não expropria nenhum segmento da atividade, mas exclui potenciais candidatos à prestação do mesmo serviço. Finalmente, decisões jurídicas e políticas redistributivas são reconhecidas por seu caráter expropriatório de recursos de algum grupo para alocá-los a outro, e com exclusão de terceiros; por exemplo, a criação de impostos específicos sobre algum tipo de transação, ou renda, destinada ao financiamento da educação pública. Não é fácil, em muitos casos, discriminar se a decisão jurídica não foi também um ato político e o mesmo se dá no caminho inverso.
Os profissionais costumam criar dialetos para diferenciar suas atividades. Com isso presumem estar fazendo algo substancialmente distinto, o que quase nunca é verdadeiro. Os politólogos, por exemplo, falam em "grupos de interesse" para designar sujeitos coletivos, assim tratados nos cartapácios jurídicos. Não é incomum que os dialetos escondam sub-reptícia captura de funções entre profissões ou instituições assemelhadas. A entrevista do ministro Gilmar Mendes ao Valor (18/10/2007, página A20), tratando da importante reforma em curso no sistema judiciário, pouco conhecida pelo público, traz um claro exemplo do fenômeno de apropriação substantiva por via de enriquecimento dialetal.
Segundo o ministro, o Supremo Tribunal Federal expede uma sentença de perfil aditivo quando decide regular uma matéria em que há vácuo legal, criando regras ou aplicando legislação similar até que uma lei seja criada. Teria sido o caso da imposição de fidelidade partidária, tal como entendida pelo STF. Ora, "sentença de perfil aditivo" quer dizer pura e simplesmente, no caso, definir uma legislação inédita sobre a vida política que, no Legislativo, seria tratada como novo artigo sobre a lei orgânica dos partidos, atribuindo ou não aos próprios partidos a liberdade de definir, para seu uso, o que consideraria a fidelidade. Com a "sentença de perfil aditivo" o Supremo substituiu-se politicamente ao Legislativo na pressuposição de estar somente agregando hermenêutica jurídica a um corpo preexistente.
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O extraordinário consenso exibido pela opinião impressa não corresponde ao que se passa na vida política real
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A tese do vácuo legal sobre a reforma política é unanimemente aceita por juristas, comentaristas e diversos líderes partidários. Fiquei espantado quando vi a indevida interferência do Judiciário defendida e, em conseqüência, apoiada por cientistas sociais profissionais, sob pretexto do vazio legal. É legítimo pretender uma reforma, mas de modo algum justificá-la por putativa existência de algum vácuo, jurídico, newtoniano, político ou saturnal, dada a pouca transparência do diagnóstico.
O trabalho dos parlamentos se inscreve em duas grandes áreas: as áreas de decisão e as áreas de não-decisão. Nenhum parlamento trata de tudo simultaneamente. As decisões efetivas, aprovando ou rejeitando algum projeto de lei, são de conhecimento direto, assim como direta pode ser a investigação sobre os motivos que as fizerem ser como são. Diferente é o que ocorre na área de não-decisão. No mínimo, há que se distinguir aquilo que não é decidido por indiferença do que não recebe legislação por ser precisamente esse o desejo do corpo parlamentar. Neste caso, há uma decisão implícita de manter o status quo, nenhuma indiferença. Exemplo clássico em diversos parlamentos, e também no brasileiro, é a ausência de legislação sobre reforma agrária. Entre 1950 e 1964 foram apresentados mais de 200 projetos de reforma agrária no Congresso e somente nos últimos dias do regime é que os parlamentares decidiram votar alguns deles. O resultado, aliás, foi negativo, não sendo aprovado nenhum dos projetos. Até então, não se poderia dizer que o Congresso era indiferente à matéria ou que existisse algum vácuo a sorvê-la. Simplesmente os parlamentares decidiram não tocar no assunto. A ecologia, ao contrário, foi durante décadas um tópico ausente do debate parlamentar por conta da indiferença dos legisladores. Não houve da parte deles, ao que eu saiba, nenhuma decisão positiva de não discuti-la.
Ora bem, com a reforma política trata-se de algo mais próximo da reforma agrária do que da ecologia. Os parlamentares não são indiferentes à matéria. O que, sim, ocorre, é que as sucessivas maiorias nas diversas legislaturas não foram convencidas por nenhuma proposta em circulação na sociedade. Decidir manter o status quo na ausência de consenso sobre que mudança promover está longe de configurar qualquer tipo de vácuo que autorize outro poder a ocupá-lo. Afirmar dogmaticamente que o Legislativo não age em matéria de reforma política por indiferença ou incompetência não enobrece a argumentação dos reformistas. Trata-se de atribuir caráter perverso a uma suposta inação pela capciosa razão de que a ação que desejariam não encontra apoio majoritário no Congresso. O extraordinário consenso exibido pela opinião impressa, sob cuja influência têm vivido os juízes, pois compartilham do mesmo sistema de crenças, não corresponde ao que se passa na vida política real do país.
Não é impossível que a opinião impressa mereça crédito quando se apresenta como intérprete da opinião pública, mas isso não está nem ficará provado enquanto as pesquisas de opinião se sustentem em questionários claramente enviesados. Segundo os perguntadores e analistas, não cabe dúvida de que o mundo inteiro clama pela reforma política no Brasil e a questão consistiria em afinar os detalhes, por um lado, e, por outro, extrair julgamentos condenatórios das instituições representativas por não se submeterem a tamanho anseio por mudanças. Argumento pífio. Com um bom questionário sou capaz de extrair da opinião pública até a condenação da Padroeira do Brasil sem, com isso, comprometer a fé católica de ninguém. Atenção: não estou atribuindo má-fé às pesquisas, mas sim que as premissas tomadas por axiomáticas e dão coerência aos questionários necessitam de comprovação mais segura do que imputar à totalidade da população a preferência institucional dos colunistas. Os instrumentos da democracia são, simultaneamente, delicados e poderosos. No momento, usa-se a sua força para estremecer os seus desvãos mais sofisticados. Não é boa política.
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